domingo, 17 de dezembro de 2017

SUFOCADOS PELO PRÓPRIO LIXO



COMUNHÃO
Milton Nascimento e Fernando Brant 

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  Quero o sonho, a fantasia Quero o amor e a poesia Quero cantar, quero companhia Eu quero sempre a utopia O homem tem de ser comunhão A vida tem de ser comunhão O mundo tem de ser comunhão A alegria do vinho e pão O pão e o vinho enfim repartidos 
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                                                                   Fotos: Fábio Brito 


SUFOCADOS PELO PRÓPRIO LIXO
Por Fábio Brito


          
Em 1854, o então Presidente dos Estados Unidos propôs comprar grande parte das terras de uma tribo indígena. Em contrapartida, ele oferecia a concessão de outra "reserva". Indignado com tal proposta, Seatle, o cacique dessa tribo, enviou ao “senhor Presidente” uma carta-resposta, que é, até hoje, um dos mais belos textos em defesa da natureza.
Sempre que saio para caminhar, lembro vários fragmentos dessa “carta”, em especial o que diz que, com suas camas contaminadas, o homem branco será sufocado pelos próprios dejetos. No trecho que percorro, que fica entre dois bairros bem populosos de minha cidade, é raro eu encontrar um pedacinho de chão, mesmo que mínimo, limpo (há duas exceções, que, ao fim deste texto, receberão os comentários devidos). Devo caminhar, mais ou menos, uns oito quilômetros, contando ida e volta. Só dá lixo em meu horizonte!  Um detalhe importante é que esse lixo não fica concentrado em determinado lugar (um cantinho, por exemplo). Ele se espalha pelas ruas. Vou tentar descrever o que encontro pela frente: fraldas descartáveis abertas, absorventes higiênicos, latas "de tudo", sacolas plásticas (aproveitam as que vêm do supermercado) com restos de comida, papelões (rasgados e, às vezes, caixas inteiras), pedaços de madeira, o que sobrou de sofás e armários, animais mortos, pedaços de paredes que saíram de alguma reforma ("disk-caçamba" não existe)... Depois de alguns dias de chuva, então, a situação fica calamitosa. Se eu não buscar atalhos, chafurdo, literalmente, numa mistura de lama podre com lixo. E o cheiro que vem dessa lama? Nada menos que insuportável. Para driblar tanta sujeira, atravessar a rua incontáveis vezes é outra saída que encontro. Todavia, só recorro a isso quando não sou barrado por outros obstáculos além do lixo-lama, como os carros dos fiéis das muitas igrejas erguidas no pequeno trecho de minha caminhada, que estão sempre estacionados no acostamento ou nas calçadas. Mais falta de educação... e de REPEITO! Calçada e acostamento não são estacionamento.
Na raiz disso tudo, está a falta de educação, é claro. Se perguntarmos às pessoas o que deve ser feito para que essa situação do lixo seja resolvida, garanto que a maioria dirá que o poder público - a Prefeitura, no caso - é que "não mexe uma palha" para resolver esse tipo de problema. Por isso, assistimos ao triunfo da imundície. Dirão mais: entra prefeito, sai prefeito, e o lixo continua aí, do mesmo "jeitim". Do mesmo "jeitim" não! O lixo só aumenta, meus amigos! Sabem por quê? Porque a falta de educação aumenta na mesma proporção e reina absoluta. Parece crônica. Será que é necessário um manual que ensine as pessoas a não atirarem suas sacolas de lixo no meio da rua? Será que é necessário um manual que ensine as pessoas a respeitarem o espaço público? Pensando bem, ainda que existissem esses manuais, eles não teriam muita "serventia"...
Sabe de que tipo de lixo espalhado pelas ruas as prefeituras deveriam incumbir-se? Dos que a natureza produz. Só! Terra que caiu de um barranco que cedeu, folhas secas, mato que cresceu... e por aí vai. Isso é lixo que a prefeitura deve retirar das ruas (lixo caseiro, devidamente ensacado e depositado em local próprio é outra história). Volto a frisar: o lixo que as pessoas, inadvertidamente, vão jogando pelas ruas provém da falta de educação. Inúmeras vezes, já presenciei cenas que, aos olhos de muitos, são comuns, corriqueiras. Uma bem do dia a dia é quando as pessoas atiram ao chão a embalagem de algum produto que estão comendo logo assim que terminam de comê-lo. Por que não seguram essa bendita embalagem até que possam depositá-la nalgum lugar? Ah, não há lixeiras suficientes pela cidade, muitas alegam. Concordo! Não há mesmo! No entanto, não é por isso que vou transformar a cidade num lixão a céu aberto.
Bom, no meio da lama e do caos, há flores. Ou seja, nem tudo está perdido, como ensina o senso comum. Um exemplo de flor no meio do caos é este: apaixonado por plantas, um morador do bairro IBC (em Cachoeiro, ES) resolveu “adotar” um pequeno espaço público e transformá-lo num jardim (é possível que, outrora, esse espaço tenha sido mesmo um... jardim) lindo e bem cuidado. Lá, podemos ver, por exemplo, rosa, boa-noite, cravo, ipê ainda pequeno, onze-horas, entre outras pequenas plantas. O espaço é pequeno, mas o suficiente para ficarmos encantados. Sempre que saio para caminhar, paro um pouquinho, sento-me perto desse jardim e fico contemplando-o. Outro dia, conversando com o senhor que criou esse espaço para nosso “doce deleite” (e elogiando-o pela atitude, pelo cuidado, pelo zelo e pelo amor às plantas), ele me contou – não desanimado, vale frisar – que tem sido uma luta manter esse jardim, uma vez que há pessoas que insistem em destruí-lo. Para ilustrar, ele me contou que uma casa para passarinhos (com direito a “comedouro” e tudo), que ele mesmo construiu no centro desse jardim, não mais está lá. À noite (nem foi "na calada da noite"), um rapaz estacionou o carro, escancarou as portas, arrancou a casa e “guardou-a”. Simples assim. É público, “né”! Outra história é esta: um senhor, munido de faca, cortou vários galhos das roseiras (com muitas rosas, claro!) e “guardou-os” em seu carro. Ele não deve saber que existem floriculturas na cidade. Mais uma história: duas moças pararam um carro e também carregaram galhos das roseiras que ficam perto do asfalto, mais para cima um pouco (também plantadas pelo mesmo "jardineiro"). 
Pois é, que noção essas pessoas que insistem em destruir um jardim que está em espaço público têm acerca do que é... público? Devem imaginar que só certos políticos são “tortos”, corruptos e desprezíveis. Elas não! Elas são cidadãs acima de qualquer suspeita,  têm honra ilibada e não conhecem quaisquer atos que possam depor contra sua conduta. Não duvidemos: devem sair por aí bradando contra a corrupção, o desrespeito e outras pragas que infestam não só o Brasil, mas o mundo todo. Devem ser muito caridosas também. Garanto que não deixam de ajudar os pobres sempre que há o "dia do quilo" em alguma instituição de caridade ou na escola em que os filhos estudam. 
O segundo exemplo de flor no meio do caos vem de um bairro próximo ao que citei anteriormente. Também no mesmo trecho de minha caminhada, tenho o privilégio de passar por um segundo oásis: outro senhor, também fã de plantas, cuida - com o maior esmero - não só de canteiros que ele criou em espaço público (em frente à sua casa e do outro lado), mas da rua também, que ele varre com o mesmo capricho com que deve cuidar de sua casa. Ao vê-lo, dias atrás, podando algumas plantas, não me contive: parei para conversar  e dizer que o admiro muito. Sua história não é diferente da do senhor do bairro IBC: há pessoas que passam (ele, de longe, já viu) e simplesmente arrancam as flores. Às vezes, arrancam-nas e nem as levam, como ele disse. Só destroem. Entretanto, ele não desiste. Continua plantando mais flores e continua limpando a rua, que, em instantes, recebe mais sujeira. Esse senhor me confidenciou que, devido aos muitos contatos que tem como membro da associação de moradores do bairro, ele sai em busca de cadeiras de rodas, fraldas descartáveis para doentes e cestas básicas. Ou seja, a cabeça desse senhor (e a do outro também) trabalha para o bem de todos. O mundo, diferentemente do que pensam os egoístas de plantão, não está construído em torno do umbigo de alguns. Pensar no bem-estar de todos ainda não é, infelizmente, tarefa para muitos.
Sem pieguices, posso dizer que são pessoas como os dois senhores que citei que "fazem" um país... e não certas criaturas que se dizem caridosas, mas, em verdade, estão muito mais para a rapinagem do que para o bem comum. Poupem-me desses falsos bem-intencionados! Quero é estar o mais próximo possível dos "jardineiros" que encontro em minhas caminhadas. Pessoas assim me interessam.

                    
Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra?
Essa ideia nos parece estranha. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los?
Cada pedaço desta terra é sagrado para meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada punhado de areia da praia, a penumbra na floresta densa, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência de meu povo. A seiva que percorre o corpo das árvores carrega consigo as lembranças do homem vermelho.
Os mortos do homem branco esquecem sua terra de origem quando vão caminhar entre as estrelas. Nossos mortos jamais esquecem essa bela terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela faz parte de nós.
Portanto, quando o Grande Chefe em Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, pede muito de nós.
Essa água brilhante que escorre nos riachos e nos rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. Se lhes vendermos a terra, vocês devem lembrar-se de que ela é sagrada, e devem ensinar às suas crianças que ela é sagrada e que cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz de meus ancestrais.
Os rios são nossos irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem lembrar e ensinar a seus filhos que os rios são nossos irmãos, e seus também. E, portanto, vocês devem dar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão.
Sabemos que o homem branco não compreende nossos costumes. Uma porção de terra, para ele, tem o mesmo significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que vem à noite e extrai da terra aquilo de que necessita. A terra não é sua irmã, mas sua inimiga, e quando ele a conquista, prossegue seu caminho. Deixa pra trás os túmulos de seus antepassados e não se incomoda. Rapta da terra aquilo que seria de seus filhos e não se importa. A sepultura de seu pai e o direito de seus filhos são esquecidos. Trata sua mãe, a terra, e seu irmão, o céu, como coisas que possam ser compradas, saqueadas, vendidas como carneiros, como enfeites coloridos. Seu apetite devorará a terra, deixando somente um deserto.
Eu não sei, nossos costumes são diferentes dos seus. A visão de suas cidades fere os olhos do homem vermelho. Talvez seja porque o homem vermelho é um selvagem e não compreenda.
Não há um lugar quieto nas cidades do homem branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o desabrochar de folhas a primavera ou o bater das asas de um inseto. Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreendo. O ruído parece somente insultar os ouvidos. E o que resta da vida se um homem não pode ouvir um choro solitário de uma ave ou o debate dos sapos ao redor de uma lagoa, à noite? Eu sou um homem vermelho e não compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento encrespando a face do lago, e o próprio vento, limpo por uma chuva diurna ou perfumado pelos pinheiros.
O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo sopro - o animal, a árvore, o homem, todos compartilham o mesmo sopro. Parece que o homem branco não sente o ar que respira. Como um homem agonizante há vários dias, é insensível ao mau cheiro. Mas se vendermos nossa terra ao homem branco, ele deve lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar compartilha seu espírito com toda vida que mantém.
Portanto, vamos meditar sobre sua oferta de comprar nossa terra. Se decidirmos aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve tratar os animais dessa terra como seus irmãos.
O que é o homem sem os animais? Se todos os animais se fossem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Pois o que ocorre com os animais breve ocorre com o homem. Há uma ligação em tudo.
Ensinem às suas crianças o que ensinamos às nossas: que a terra é nossa mãe. Tudo que acontecer à terra acontecerá aos filhos da terra. Se os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos.
Isto sabemos: a terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra. Isto sabemos: todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo.
O que ocorrer com a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não tramou o tecido da vida: ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido fará a si mesmo.
É possível que sejamos irmãos, apesar de tudo, veremos. De uma coisa estamos certo – e o homem branco poderá vir a descobrir um dia: nosso Deus é o mesmo Deus. Ele é Deus do homem, e Sua compaixão é igual para o homem vermelho e para o homem branco. A terra lhe é preciosa, e feri-la é desprezar seu criador. Os brancos também passarão; talvez mais cedo do que todas as outras tribos. Contaminem suas camas e uma noite serão sufocados pelos próprios dejetos.
Mas quando de sua desaparição, vocês brilharão intensamente, iluminados pela força do Deus que os trouxe a esta terra e, por alguma razão especial, lhes deu o domínio sobre a terra e sobre o homem vermelho. Este destino é um mistério para nós, pois não compreendemos que todos os búfalos sejam exterminados, os cavalos bravios sejam todos domados, os recantos secretos da floresta densa impregnados do cheiro de muitos homens, e a visão dos morros obstruída por fios que falam.
Onde está o arvoredo? Desapareceu. Onde está a águia? Desapareceu. É o fim da vida e o início da sobrevivência.

Carta distribuída pela ONU e escrita pelo cacique Seatle, em 1954, quando o presidente dos EUA propôs comprar as terras de sua gente.