domingo, 23 de outubro de 2011

"SAMPAIEMOS", POIS, A VIDA INTEIRA





                                                                                                                                                    Sérgio Sampaio no traço de Batistão
                                                                                   http://www.nordesteweb.com/not01_0306/ne_not_20060318a.htm

Esta postagem é, em especial, para duas pessoas. Uma delas é minha amiga Therezinha Fassarela, que, há poucos anos, quando coordenou o curso de Letras do Centro Universitário São Camilo/ES, teve a ideia - mais que brilhante - de escrever e dirigir um espetáculo sobre Sérgio Sampaio. Mais tarde, grupos de alunos redesenharam esse espetáculo e seguiram homenageando nosso Sampaio. Produziram, inclusive, documentário premiadíssimo. Por aqui, muita gente, por intermédio da Therezinha, passou a conhecer Sérgio Sampaio. A outra pessoa a quem dedico a postagem é o amigo Lucimar Carletti, que me deu a "dica" para postar/publicar algo sobre o Sérgio. Valeu, amigo! Está aí a homenagem.
Em 1997, Zeca Baleiro participou do cd/tributo "Balaio do Sampaio"; em 2005, o mesmo Zeca - sempre Baleiro! - produziu Cruel, nome do disco que, no início de 94, Sampaio se preparava para gravar; há pouco, Sinceramente, o último disco de Sampaio, lançado em 1982, saiu em CD (Baleiro novamente!): http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/989353-disco-obscuro-de-sergio-sampaio-volta-as-lojas-depois-de-29-anos.shtml

"Um livro de poesia na gaveta / Não adianta nada / Lugar de poesia é na calçada (...)"
Sérgio Sampaio, "Cada lugar na sua coisa"


              É PARA 'SAMPAIAR'? 'SAMPAIEMOS', POIS, HOJE E SEMPRE
              Por Fábio Brito
             
            Em 1972, Nara Leão era a  presidente do júri do VII Festival Internacional da Canção Popular. Porque, entre as dez canções classificadas para a final nacional, não estava "Eu quero é botar meu bloco na rua", do ilustre cachoeirense Sérgio Sampaio, Nara, inconformada, pressionou tanto até que mudaram as regras: em vez de dez, passou a ser doze o número de canções finalistas. Assim, todos puderam "botar o bloco" na lista das mais belas canções brasileiras de qualquer tempo. Nara Leão, uma das intérpretes mais importantes deste país, estava certíssima: o "Bloco" era a canção mais vigorosa desse festival.
              Pois é, depois desse "Bloco" catártico, todos passamos a conhecer um novo verbo: "sampaiar", totalmente intransitivo, mas não só. Segundo as gramáticas normativas da língua portuguesa, o verbo intransitivo é aquele que, devido à sua significação, não requer algum complemento para que a 'frase' tenha sentido. Taí: "sampaiar" é um verbo que realmente não precisa de quaisquer complementos. Além de intransitivo, "sampaiar" é abundante, porque transborda, não cabe em si, não cabe no mundo, não cabe em nenhum lugar que escolheram para ele. Nunca vai caber. Seu espaço é mais: é a amplidão, é o vazio, é o pleno, é o oco, é o completo. "Sampaiar" é também copulativo: sua transa maior é com a vida, é com o prazer. É um verbo que liga o denso ao mais denso, o intenso ao mais intenso. "Sampaiar", em sua inteireza, significa existência liberta. Vai além: é desrepressão, coabitação de contraditórios, transgressão do código social vigente. É pura catarse.
               Sérgio Sampaio, nosso músico-poeta-menino, escolheu - como ninguém e sem qualquer temor - a liberdade pessoal levada ao extremo. Pagou por isso, claro!, mas não conseguiram algemá-lo. Pareço ouvi-lo: - Não me ponham grilhões! Não suporto amarras! Sem qualquer temor, nosso Sampaio deu de ombros a um mundinho certinho e reacionariozinho e burguesinho. Preferiu ser ele e pronto. Preferiu transgredir. Iconoclasta é pouco! Quer algo mais contestador e transgressor do que, em plena ditadura militar, "botar o bloco na rua"? Poucos "botaram". Sérgio foi um deles. Para ele, ou era azul, ou era encarnado. Não ficava tentando agradar a uns ou a outros.
              As limitaçõezinhas de uma vidinha ordinariazinha não têm vez na nobreza de Sampaio, em quem prevaleceu a ingenuidade alerta, própria de quem não abre mão de seus desejos e de sua liberdade, de quem não aceita o real - bem mentiroso, por sinal - que está aí. Ê... realidadezinha mentirosa! Não a aceitando, restou a nosso moleque levado a marginalidade. O modelito outono/inverno (ou o primavera/verão) não lhe caiu bem. O corte não lhe agradou... porque era muito "prima-dona". Ele preferiu seguir sendo "marginal". Mesmo depois do sucesso do "Bloco", não fez concessões. Fez o que quis. Fez só o que quis. 
             Ainda hoje, em espaços vazios que ainda há por aí, choramos ouvindo sua voz solitária no cenário da Música Popular Brasileira (com iniciais maiúsculas), que, de uns tempos para cá, tem reprovado muita gente, que não consegue sair sequer do ensino fundamental. Por quê? Porque não é qualquer fariseu que consegue conjugar o verbo "sampaiar" em todos os modos, em todos os tempos. Esse verbo é difícil mesmo. Poucos o conhecem. O que mais vimos por aí é a invasão de alguns verbos bem chulos: "pular", "gritar", "berrar", "saltar", "sertanejar-universitarizar" (assim mesmo) e muitos outros. Ah! São verbos abundantes também: extrapolam os limites do mau gosto. Conseguem ir além da indigência. Conseguem ser totalmente minúsculos. Poucos - raríssimos! - ousam "sampaiar". "Sampaiemos", pois, agora, daqui a pouco, hoje, amanhã, depois, depois, depois..


  MAIÚSCULO
Sérgio Sampaio

como é maiúsculo
o artista e a sua canção
relação entre deus e o músculo
que faz poderosa a sua criação
pensando bem é um mistério
como é misterioso o coração
como é minúsculo
o olhar de quem vive no escuro
um sujeito malvado e duro
alguém machucado por não ter um bem
não tem porém mas tem o tédio
não ser vítima do assédio de ninguém
quase não dorme vive ao avesso
medo conhece bem
sem endereço como é que pode
não faz mal também

tenho meus vícios
vivem dentro de mim
esses bichos
são o pai e a mãe dos meus lixos
e às vezes me levam de mal a pior
pergunto quem não sabe disso
dos momentos em que a vida não tem dó
solto meus bichos
pelas músicas quando me aflijo
mas um homem sem esse feitiço
e sem um carinho a que recorrer
pode matar querer morrer
pois perdeu todo o sentido de viver

CD: "Cruel". Sérgio Sampaio, Maiúsculo, Saravá Discos, Ceará, 2005.

sábado, 22 de outubro de 2011

A EXCELENTÍSSIMA SENHORA...



DEVOÇÃO
Por Fábio Brito
Não há quem não prenda a respiração quando Fernanda Montenegro está no palco, na “telona” ou na “telinha”.  Tudo nela exala requinte, sofisticação, nobreza e talento.
Quando Dona Doida, um interlúdio estreou, há um tempinho, fiquei louco para ver. Trata-se, pois, de um espetáculo solo com texto da Adélia Prado, outra de minhas paixões. A direção ficou a cargo de Naum Alves de Souza. Pronto!, pensei, não me falta mais nada: Fernanda e Adélia. Adélia por Fernanda; Fernanda por Adélia. Resistir? Quem há de? Não resisti, é evidente! Porque a peça viajou, pude vê-la no cine-teatro Glória, em Vitória, que, apesar de seu peculiar cheiro de mofo, proporcionou-me um prazer que, até hoje, é indescritível. Fui acompanhado de uma amiga que, a certa altura do espetáculo, não resistiu: “Mas você sabe todo o texto da peça?” Confessei-lhe que sim. A obra da Adélia está – e sempre esteve - toda em mim. As atuações de Fernanda também estão todas em mim... até as que não vi. Como evitar o choro? Impossível. Chorei do começo ao fim do espetáculo.
Em 1998, nossa Fernanda concorreu ao Oscar de melhor atriz por sua atuação no filme Central do Brasil, dirigido por Walter Salles. Desde o momento em que fiquei sabendo da indicação, inédita para nós, não parei de ler tudo o que saía sobre a premiação. Claro que os textos que mais me interessavam eram os que diziam respeito à atuação da Fernanda. Vasculhei tudo, li tudo, fiquei atento a tudo. Se não me engano, foi o Jornal do Brasil (que saudade da edição impressa...) que publicou, no sábado da premiação, várias matérias sobre o assunto. Em uma delas, um jornalista, cuja nacionalidade não lembro (só sei que não era brasileiro), teceu elogios e mais elogios à atuação de nossa Fernanda. Disse, inclusive, que ela é das poucas atrizes que conseguem definir uma cena com um olhar. No entanto, afirmou que ela não levaria o prêmio, uma vez que o Oscar é uma academia e, como tal, tem seus conchavos. Infelizmente, tive de concordar com ele. Mesmo assim, fiquei acordado até o momento da premiação. A esperança não é a última que morre? Pois, nesse dia, fiquei até altas horas com os olhos "grudados" na TV, à espera da cerimônia - mais do que brega - de entrega do Oscar.
Pois é, até hoje, não engoli o Oscar de melhor atriz daquele ano. Quem levou a estatueta foi... faço questão de não repetir o nome. A moça foi indicada por sua atuação em Shakespeare apaixonado. Eu disse atuação? Nunca vi nada mais insosso, mais insignificante. Para mim, ficou comprovado o que o jornalista havia dito: os conchavos não permitiriam que a melhor atriz levasse o prêmio. Ainda por cima, ela era latina. Tudo bem. Entre os inúmeros prêmios que recebeu por causa dessa atuação, nossa Fernanda levou um - se minha memória não estiver muito falha - que é importantíssimo: o da Associação de Críticos de Cinema dos Estados Unidos, formada por pessoas que entendem, de fato, de cinema. Minha alma estava lavada e leve, leve.
Não faz muito tempo, tive o privilégio de assistir à peça Viver sem tempos mortos, outro espetáculo solo em que nossa primeira dama mergulha, agora, no universo de cartas de Simone de Beauvoir. Do início ao fim, a atuação é irretocável. É pura catarse. Chorei à beça nesse espetáculo. Aliás, choro sempre que assisto a uma atuação de Fernandona, como dizem seus colegas de ofício. Choro até ouvindo suas entrevistas. É incrível, mas até sendo entrevistada, ela me comove. “Ponho reparo”, como dizem os mineiros, até nos gestos. Quanta fineza, meu Deus! Ninguém consegue ser mais chique que Fernanda Montenegro. Parafraseando Cora Rónai*, não sou fã, mas devoto, dessa atriz única que é Fernanda Montenegro.
Antes, porém, de Viver sem tempos mortos, há outra atuação estupenda de Fernanda: Queridos amigos, minissérie de Maria Adelaide Amaral exibida pela Globo em 2008. Iraci, sua personagem, já está na galeria das grandes personagens da televisão brasileira. Em uma das muitas cenas inesquecíveis [Pausa: todas as cenas com Fernanda são inesquecíveis. Por que, então, dizer isso? Porque não tenho medo dos pleonasmos], ela se encontra com um dos torturadores de sua filha, morta durante a ditadura militar. Só vendo a cena. Ou melhor, só revendo – inúmeras vezes – a cena. 
Desnecessário tecer comentários sobre sua atuação em Passione, novela de Sílvio de Abreu. Fernanda foi, simplesmente, a dona de todas as cenas. Eu só olhava para ela. Que magnetismo! Fernanda não precisa de gritos e histerias. Fernanda não precisa de muitos gestos. Fernanda só precisa olhar. E nós precisamos muito do olhar de Fernanda Montenegro. Muito mesmo. “Ah! Se todos fossem iguais a você”, Fernanda...  
VIAJANTE DAS ALMAS**
Fernanda Montenegro, Francis Hime e Herbert Richers Junior
É um ofício lento, fugidio
Buscar o outro, confundir-se com o outro
Morrer sob um rosto que não é seu
É um ofício lento, fugidio
Lentamente percorrer os séculos
E os espíritos imitando o homem
Como pode ser, tal como é
É um ofício lento, fugidio
Ofício de visionários, de loucos
Pousados na lucidez
De viajantes do tempo
De viajantes das almas
É um ofício lento, fugidio
Absoluta tolerância
Nenhuma negligência
Ah, o nosso ofício é nossa festa
O suor do nosso rosto
O nosso prêmio
CD: "Álbum musical 2". Francis Hime, Viajante das almas, Biscoito Fino, BF 860, Rio de Janeiro, 2008.

** Considerando texto de Fernanda Montenegro, "Viajante das almas" foi organizado em forma de letra de canção por    Herbert Richers Jr. e musicado por Francis Hime.

* "Devo dizer que sou devota de Maria Bethânia, que divide o altar da minha máxima admiração com Fernanda Montenegro. Gosto muito de inúmeros artistas, sou fã sincera de vários deles mas, diante de Bethânia e de Fernanda, tenho sempre a sensação de estar na presença de seres de outra dimensão, habitantes talvez de um planeta diferente, onde as pessoas já evoluíram o suficiente para descobrir a verdadeira essência das coisas. Agradeço à minha boa estrela o privilégio de ter nascido no tempo dessas duas mulheres extraordinárias, para além do talento curiosamente tão parecidas também na sabedoria, no recato e na elegância." 
                                                                                                   Cora Rónai, O Globo, Rio de Janeiro, 2 de setembro de 2004.

PESSOA = PESSOAS





POEMA EM LINHA RETA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideus!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo em ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
[...]
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
[...]

'MUITOS' PESSOAS...

Façam do meu coração uma flâmula de almirante
Na hora de guerra dos velhos navios!

O que quero é levar pra Morte
Uma alma a transbordar de Mar...

Esgotou-se a alma, ficou só um eco dentro de mim.

E há em cada canto da minha alma
um altar a um deus diferente.

E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

E há um só caminho para a vida, que é a vida...

Fui educado pela Imaginação,
Viajei pela mão dela sempre...

Não não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!

Como os que invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.

Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Para, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento...

Tenho que arrumar a mala de ser.

Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...

Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.

Hoje não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho.
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Álvaro de Campos


Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio,
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

O ódio e o amor iguais nos buscam; ambos,
Cada um com seu modo, nos oprimem.

PARA SER GRANDE
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

COROAI-ME DE ROSAS
Coroai-me de rosas.
Coroai-me em verdade
De rosas -
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!
coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta
Ricardo Reis


Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...

Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.

Todo eu sou qualquer força que me abandona.

Basta existir para se ser completo.

Nunca tive um desejo que não pudesse realizar,
Porque nunca ceguei.

Sentir é estar distraído.
Alberto Caeiro


O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos...

A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece...

A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.

Meu coração é um pórtico partido
Dando excessivamente sobre o mar.

O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é...

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio...

Há um poeta e mim que Deus me disse...
Fernando Pessoa

PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus: seleção poética; seleção e nota editorial [de] Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

BIZARRICES E CELULAR



          BIZARRICES E CELULAR
          Por Fábio Brito

         
        Tive o ímpeto de começar este texto assim: “Desconfio de que...”, mas mudei de ideia! O início tem de ser este: "Tenho certeza de" que há mais pessoas viciadas em celular do que em cocaína, maconha, crack e afins. Diariamente, assisto a situações bizarras até o osso envolvendo o uso desse aparelhinho que classifico de “a invenção mais irritante de todas”, embora útil. E se a telefonia celular “desse uma folga” durante, pelo menos, um dia? Talvez assim as pessoas tivessem a chance de reaprender princípios básicos de educação...  
          Dia desses, na sala de espera de um consultório médico, senti-me um ET. Eu estava tentando ler um livro (sempre tenho um na bolsa), mas o local, por causa da balbúrdia e da histeria, era parecido com tudo, menos com uma sala de espera de um consultório. Impossível ler qualquer texto em ambiente assim, que chamo de "malucódromo". A meu lado, uma senhora não parava de telefonar um minuto sequer: mal saía de uma ligação, engatava em outra. Ela deve ter ligado para a cidade inteira e só para falar bobagens (infelizmente, não pude deixar de ouvir trechos das "conversas", das lenga-lengas). Na cadeira em frente à minha, um rapaz com um uniforme fosforescente (não precisava de mais nada para chamar a atenção!) tinha um microfone acoplado a seu aparelho. Ele olhava em minha direção, falava sem parar e fazia inúmeras caretas (as mais feias que já vi). Porque não segurava qualquer aparelho, ele parecia mais maluco ainda que os demais. Cruzes! Ao lado desse rapaz, outro moço, irritadíssimo com seu interlocutor, "que não entregou todas as cadeiras" que ele havia pedido para uma festa, não parava de gesticular. Em segundos, ele não se conteve: levantou-se e foi até a janela, de onde passou a gesticular ainda mais. Faltou pouco sentar-se no chão e, com as pernas para o alto, "pedalar", como um grande bebê chorão. Parecia um helicóptero o pobre moço. Em segundos, consegui imaginá-lo voando janela afora.
          Como se não bastasse essa maluquice toda, a secretária do médico também atende a seu celular. Pronto!, eu disse, é um "sanatório geral" mesmo. Para completar a festa, o televisor também estava ligado e transmitindo um desenho em que ninguém estava interessado. Isolado, tentei recomeçar,  em vão, minha leitura. Acho mesmo que, nessa história toda, o maluco sou eu, viu? Como posso querer sobreviver em ambiente assim? Como posso querer encontrar refúgio em alguma leitura se o ambiente é alucinante? Gente, na sala de espera do tal consultório, eu só queria ler meu livro... mais nada.
          Para locais em que temos de treinar (e muito!) nossa capacidade de esperar (consultórios médicos, em especial), tenho sempre um “kit sala de espera”: água, livro, lápis com borracha e apontador. Entretanto, já faz um bom tempo que, enquanto espero uma consulta, não consigo um minuto que seja de paz, em qualquer sala de espera, tamanha é a algazarra dos deseducados e seus aparelhinhos infernais. Essas pessoas parecem um bando de gralhas neuróticas. Jesus! Quando querem - e sempre querem! - usar o celular, as pessoas não respeitam nada nem ninguém. Avisos para que não sejam usados esses "benditos" aparelhos não são lidos. São totalmente ignorados. Besteira afixá-los. É... acho que preciso acrescentar calmante (remédio mesmo!) a meu "kit sala de espera".    
          Saindo dos consultórios, vamos às ruas. Ih! Sobre esses locais, o que não falta é história para contar. Vamos a uma bem comum: não são poucas as pessoas que atravessam 'nas' faixas para pedestres falando ao celular. O pior é que não olham para os lados. Bem pior que essas criaturas é o povo que atravessa fora das faixas, mas falando ao celular também. Meu Deus! Elas devem 'se' achar imortais. Se já é perigoso atravessar uma rua olhando para todos os lados, imagine atravessá-la olhando para o chão ou para o alto. Muita gente está pedindo um atrapelamento, não está? Para tanto, basta juntarmos, como se dizia tempos atrás, "a fome com a vontade de comer": motoristas apressadinhos, irresponsáveis, falando ao celular também e pedestres no mundo da lua, ou melhor, no "mundo do celular". Combinação perfeita para um "caminho sem volta" para o céu ou...
          E por falar em trânsito, tenho visto, não sei se por falta de rigor na fiscalização, muitos "motoristas" que dirigem falando ao celular. Vejo-os aos montes! Será que é tão complicado estacionar o carro no momento em que o "bendito" aparelhinho toca? É bem simples: o telefone tocou? Ok. Estacione, fale o que tiver de falar e volte a dirigir. Melhor é deixar o "treco" desligado enquanto dirige, não é mesmo? Não faz muito tempo, um carro à minha frente estava, como dizem por aí, "comendo faixa". Em uma pista 'dupla', o motorista (?) estava exatamente no meio das 'duas'. Ele conseguiu uma divisão perfeita! Resultado: eu não conseguia ultrapassá-lo. Fiquei mais irritado ainda quando vi que a criatura estava... falando ao celular. O que fazer? Dei uma bela buzinada (daquelas bem longas) e, por meio de sinal, "disse-lhe" que falar ao celular, naquela situação, não era permitido. Ficou irritado o moço, tanto que fez outro sinal de volta (imaginemos qual terá sido o gesto do educadinho). Resumo da ópera: totalmente sem razão, ainda ficou irritado por causa da "bronca". Ah! Vá plantar batatas! Se tivesse tomado uma bela "duma" multa, garanto que alguma lição o engraçadinho teria aprendido. 
          Situações e mais situações envolvendo o uso - quase sempre indevido - do celular não faltam. Dias atrás, tive de esconder o celular de uma colega de trabalho que, durante seu horário de almoço, deixou o “amigo inseparável" sobre a mesa. Celular não é "telefone móvel"? Por que, então, certas pessoas insistem em não carregar essa "coisa"... na bolsa, no bolso, na sunga, no sutiã, na meia? Sei lá! Guardem esse troço onde quiserem, mas não o deixem sobre as mesas, principalmente quando a campainha tem um som insuportável. Não esqueçam essa "invenção dos infernos" perturbando a vida de outras pessoas. Se o negócio é móvel, carregue-o, por favor. Se gostam tanto assim desse aparelhinho, que tal uma cirurgia para implantá-lo sob a pele? Não é uma má ideia. Se, daqui a uns anos, isso for possível, garanto que muita gente vai aderir.
          Pois é, por causa desse inferno em que se tornou o uso do celular, um dia, alguém ainda terá de explicar ao rabugento aqui por que, de uns anos para cá, as pessoas passaram a ter tanta necessidade de falar, principalmente ao telefone. Que necessidade é essa? Qualquer um pode fazer um teste bem simples: ande pelas calçadas de qualquer cidade durante um tempo, que pode ser curto, e constate: ao passar, por exemplo, por dez pessoas, oito, certamente, estarão falando ao celular. Inacreditável! Por que isso? Não pode ser só vontade de aparecer. Tudo bem que, quando o aparelho é moderninho e cheio de recursos, a vontade de aparecer é incontrolável para a maioria. Por isso, muitos até dormem com o "amado coleguinha", que mais parece um brinco de pressão, grudado na orelha. Aqui, vale uma pausa: em uma loja, ouvi uma moça, irritada, dizer que, de madrugada, recebeu um "torpedo" de uma loja. Meu Deus, e por que o celular estava ligado de madrugada?
          Voltando à vontade de aparecer: se as pessoas valem pelo que têm, é hora de muita gente mostrar que vale muito, não é mesmo? Funciona mais ou menos assim: "Consegui ser poderoso. Olhe o celular que tenho". No entanto, a vontade de aparecer pode se manifestar de várias formas. Uma delas é quando alguém "dana" gritar suas intimidades no meio da rua. Desde quando estou interessado nas intimidades alheias? Acho que nem nas minhas! Poupem-me disso, por favor. Como sobremesa, para arte-finalizar, vale mais este exemplo, que é uma pérola: em frente à gôndola (não se trata de uma dos canais de Veneza!) de um supermercado, uma rapaz pergunta que marca de ervilha ele tem de comprar. Não acreditei quando presenciei essa cena. Incrível! É ou não é maluquice?
          Se, porventura, alguém tiver a brilhante ideia de perguntar se tenho celular, responderei, com muita calma e tranquilidade, que sim. Tenho esse bendito aparelhinho. No entanto, sei usá-lo. Ou seja, uso-o educadamente. No bolso ou na bolsa, ele sempre está no "vibra". Se tocar, confiro, antes, se se trata de ligação muitíssimo importante e se o local é adequado para eu atender. Se sim, afasto-me um pouco para falar; se não, mais tarde, "retorno a ligação". E nunca morri por isso. Exatamente por causa dessa minha maneira muito peculiar de lidar com o celular, dizem que nunca atendo a esse "trem" e que sou a pior pessoa do mundo para usá-lo. Talvez eu seja uma pessoa educada. Só isso.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

SACANAGEM NÃO PODE SER 'COISA' NORMAL



"(...) E me fala de coisas bonitas / Que eu acredito que não deixarão de existir / amizade, palavra, respeito, caráter, / bondade alegria e amor / Pois não posso, não devo, não quero / Viver como toda essa gente insiste em viver / E não posso aceitar sossegado / qualquer sacanagem ser coisa normal (...)"
                                                                                                                 Milton Nascimento / Fernando Brant

CD: "Bola de meia, bola de gude". Milton Nascimento, Orquestra Jazz Sinfônica, Rouxinóis Divinópolis, Crianças Programa Curumim, Amigo, Warner Music Brasil, M450998651-2, Rio de Janeiro, 1995.
 
            O DESONESTO MORA AO LADO
            Por Fábio Brito

            
            Tive o desprazer de assistir, dias atrás, a uma gravação em que um jovem senhor, na faixa dos 50 anos, furta um objeto, um aparelho eletrônico, esquecido na cadeira ao lado da sua. Isso em uma instituição pública onde ele seria atendido.
            A cena precisa ser detalhadamente narrada. Vamos lá! Em uma cadeira entre duas pessoas, está uma sacola com o tal objeto. De uma dessas cadeiras, levanta-se uma das pessoas. Segundos depois, a que permaneceu sentada verifica - com uma "olhadela" - o que há dentro da sacola. Sem titubear, puxa-a para perto de sua mochila. Com mais rapidez ainda, e sempre procurando agir com naturalidade, cobre - com a mesma mochila - o que ele pretende pegar. Depois, é bem simples: "guarda" o aparelho. Tudo isso em segundos. Pronto! Serviço concluído. Não demora, ele é chamado para ser atendido por um funcionário da instituição.
          Em pouquíssimo tempo, o tal senhor furtou algo cujo valor está em torno de mil e trezentos reais. Se conseguir vender por uns quinhentos, ou até menos, tenho certeza de que ele ficará muito satisfeito. Um décimo terceiro salário no meio do ano não é nada mal, deve ter pensado o jovem senhor. Não duvido de que não faltará gente para comprar o objeto por uma bagatela. Alguém duvida?
          Logo após assistir a essa cena triste, não me contive: “- Esse senhor deve ser um dos muitos cidadãos brasileiros que se revoltam diariamente quando ficam sabendo dos inúmeros, incontáveis casos de corrupção envolvendo políticos, por exemplo”. E é para ficar indignado mesmo! Ninguém suporta ser lesado sem ‘esbravejar’. Brincando um pouquinho com as palavras, uma “indigna ação”, seja ela qual for, deve, sim, merecer nossa indignação, nosso repúdio... sempre.
          No entanto, o que muitos pensam é que só os atos desonestos do vizinho merecem reprimenda, revolta e gritos de protesto. Quando atitudes desonestas "brotam" no quintal de suas casas, muitas pessoas se comportam naturalmente. Ou seja, quando elas podem 'se' beneficiar de alguma ação que deveria merecer repúdio, não pensam duas vezes: beneficiam-se. Um exemplo claro disso é o eterno ato de “furar fila”. Se, porventura, alguém “fura uma fila”, haverá muitos gritando. E devem gritar mesmo! Devem vociferar! Entretanto, se a um desses que gritam for dada a chance de ser atendido antes de alguém que “chegou primeiro”, não raro ele aceitará. Incrível, não?
           E tem muitos outros matizes essa erva daninha chamada desonestidade. Também é desonesto quem toma algo emprestado, por exemplo, mas não o devolve. Por isso, agora, depois de ser muito lesado, quando o assunto é empréstimo de dinheiro (ai... que tristeza!), se chego a "emprestar" (tenho andado bem "ruinzinho" ultimamente), procuro pôr em prática um ensinamento que está em Na sala com Danuza*: "Tenho um (...) amigo que, quando lhe pedem dinheiro emprestado, ele separa 20, 30%, e dá, dizendo claramente que é um presente. Assim, segundo ele,  não perde o dinheiro nem o amigo". Nossa! Já perdi a conta dos "amigos" que se afastaram por causa de dinheiro! "Mui" amiiiigos! Pior de tudo: quem empresta acaba ficando muitíssimo constrangido. É saia justa mesmo! Que esquisito isso, não? Quem lesa é que deveria ficar envergonhado! E a criatura, como eu já disse em outro texto, desaparece, some, evapora. Antes, porém, ela esbarrava em mim frequentemente. Feito mágica, surgia à minha frente em todos os lugares. Onipresença mesmo! Agora, sem aviso, ela desapareceu. Não a encontro mais. Sumiu! Que dó! Deve ser a vida corrida, não é mesmo? 
          Voltando à história do objeto furtado: por que o tal senhor não o entregou a um dos funcionários da repartição em que ele se encontrava? Seria tão simples. Nessa hora, o instinto – ou seja lá o que for! – desonesto gritou primeiro e bem alto. Beeeem alto! Imagino que, para esse senhor, o que ele fez não é nada extraordinário, não é nada que seja parecido com “desonestidade”. Se, por acaso, ele for encontrado e tiver de prestar esclarecimentos acerca do que fez, posso 'prever' algumas respostas. Uma é esta: - "Todo o mundo faz isso, não faz?" ("- Espere aí, meu senhor! 'Eu' não faço!"). Outra possível resposta: “- Achado não é roubado. Quem perdeu foi relaxado”. Não é isso que apregoam por aí? Não é isso que sopram aos quatro ventos? Para muitos, tudo o que é perdido deixa de ter dono. Ou melhor: o dono passa a ser o "sortudo" que encontra o que "relaxados" perdem. Nunca entendi isso... nem quero entender.
          É bem provável que pai e mãe nunca tenham dito a esse rapaz, quando pequeno, que ações como essa que ele praticou não são corretas. O que é do outro, quando perdido, continua sendo do outro. É muito simples esse ensinamento. A aprendizagem disso dispensa psicólogos ou profissionais afins. Sempre digo que as noções de ética, moral e bons costumes, por exemplo, foram transmitidas a mim por meus pais. E nem sempre os ensinamentos foram verbalizados. Em muitas ocasiões, o simples exemplo bastou. Muitos não sabem disso, mas deveriam saber.
          Há uns anos, garis de Vitória (ES) viraram notícia de jornal e foram destaque na TV quando encontraram dinheiro no lixo e devolveram o 'achado'. Vi muitas pessoas admiradas com isso. Só não entendi o porquê da admiração. Não entendi o estardalhaço que envolveu o episódio. Melhor dizendo: entendi! Ações assim, como a dos garis, são raras. Virou exceção o que deveria ser regra. Incrível! Atitudes honestas, hoje em dia, quase não são vistas ou praticadas. Ninguém deveria ficar espantado com a honestidade, meu Deus!
          E por falar em honestidade, ou em desonestidade, lembrei-me, agora, de "Onde está a honestidade?" (Noel Rosa e Francisco Alves), de 1933: "Você tem palacete reluzente, / Tem jóias e criados à vontade. / Sem ter nenhuma herança ou parente, /Só anda de automóvel na cidade... / E o povo já pergunta com maldade: / 'Onde está a honestidade? / Onde está a honestidade?' (...)".  Está por aí. Difícil é encontrá-la... Que pena!
          
*Leão, Danuza. Na sala com Danuza. São Paulo: Siciliano, 1992.
 
SEGREDO DE CORRUPÇÃO
“Quem não participa vira Francisco de Assis, santo mas pobre”

O penitente ajoelhou-se no confessionário. Impossível definir-lhe o rosto através da treliça de madeira. Tinha, porém, a voz nítida:
“Padre, há anos sou corrupto. Agora, estou arrependido.”
O arrependimento viera de um trauma de família: a filha adolescente aparecera com câncer. Ele fizera a promessa de virar a página das maracutaias. Narrou a sequência de notas frias, achaques, negociatas, propinas, paraísos fiscais, doleiros, evasão de divisas, sonegações e outros crimes do mundo em que vivia.
Perguntei-lhe se aceitava um café na casa paroquial. Não interessava a sua identidade. Queria saber como se faz um corrupto.
Na copa, detalhou como, ao longo dos anos, aprendera a mandar os escrúpulos as favas:
“Comecei numa empresa privada, para a qual eu fazia contatos com o poder público. No início, eu nem pensava em pegar dinheiro para o meu bolso. O patrão me convenceu de que os negócios têm regras que nem sempre condizem com a lei. E quem não participa vira Francisco de Assis, santo mas pobre".
“Eu acertava o contrato da obra, oferecia ao representante do poder público comissão de 10 a 15% do orçamento, marcava as cartas da licitação. Aprendi que, assim, certos políticos fazem seu caixa de campanha. O que custa 100 é aprovado para receber 500, e 200 vão para o caixa dois. Tudo sem nota fiscal, intermediação bancária, assinaturas. Vale o dinheiro vivo. Lucra a empresa, que ganha a obra; lucra o empresário, que superfaturou; lucra o político, pois as campanhas estão cada vez mais caras. E tudo pago pelo contribuinte”.
“Com o tempo, fiquei tentado a atuar do outro lado da banca. Entrei no serviço público por indicação de um político cuja hiena se alimentava na minha mão. Aprendi a fazer lobby, tráfico de influência, negociar intermediações, vender informações. Utilizava com frequência a triangulação: meu setor público conveniava-se com uma instituição aparentemente idônea através de projetos que, ditados por nós, eram preparados e enviados por ela. E a instituição contratava serviços a custos bem mais altos do que aqueles que o Estado paga diretamente. Nesse repasse ganham todos, onerando os cofres públicos.”
“Um dia me dei conta de que até nas pequenas coisas eu virara ladrão: carregava para casa caixas de lapiseiras e material de escritório e informática. O melhor eram as viagens, nas quais eu superfaturava contas de hotéis e restaurantes.”
“Meu único receio residia em meu padrão de vida. Morava em condições muito confortáveis para o meu nível salarial. Não chegava a ter medo, porque as pessoas são ingênuas, não prestam atenção na desproporção do cargo que ocupamos com o luxo de que desfrutamos. Nem sequer cobram dos políticos e dos partidos transparência nos gastos de campanha. É por isso que a reforma política não sai. E se sair duvido que acabe com o financiamento privado de candidaturas e obrigue todos os políticos eleitos a quebrarem seu sigilo bancário.”
“É muito dinheiro que vai para o ralo da corrupção. E há pessoas honestas que sabem disso, mas fazem vista grossa porque não ignoram que a corda rompe do lado mais fraco. Há também chefes e chefetes que não sujam as mãos com o dinheiro escuso, mas se apropriam das vantagens sociais e políticas das negociatas. Pagam a conivência com o seu silêncio”.
“Por que não existe um Disque Corrupção no qual o denunciante não tenha que se expor?”, perguntei.
"Poderia haver uma “caça as bruxas” alimentada por inescrupulosos interessados em manchar a honra de gente séria”, disse ele. “Mas garanto que, na peneira, muito graúdo não haveria de passar.”
Indaguei do penitente como pretendia agir daqui para a frente. Disse que enviara um relatório-denúncia ao Ministério Público e entregara cópias a jornalistas de sua confiança. E decidira se desfazer de tudo aquilo que fora adquirido em negociatas, favorecendo a manutenção de uma clínica para enfermos de baixa renda.
Ele me autorizou a publicar o relato. Dei-lhe a absolvição após meditarmos sobre o encontro de Jesus com o rico Zaqueu, que entregou metade de seus bens aos pobres e quatro vezes mais a quem havia fraudado (Lucas 19,1-10).

Frei Betto
“Caros Amigos”, nº 25, setembro 2005


domingo, 2 de outubro de 2011

AI, QUEM ME DERA...



NA PISTA DO SONHO
Joaquim Ferreira dos Santos
JB, 22-07-2001

            Aquele homem com o peixe nas costas assombrou a infância de milhares de crianças, vítimas de mães bem intencionadas, coitadas, todas crentes que o óleo de fígado de bacalhau daria mais memória e muque aos seus filhotes. Tomei aos litros e hoje pode-se medir o resultado: nem uma coisa nem outra. Nem Wilson Figueiredo nem Zulu. O homem com o bacalhau nas costas, o rótulo do vitamínico revigorante, uma espécie de viagra para menores, tinha gosto insuportável e, como sabem todos os maiores de 40 anos, era o mal em sua forma, argh!, gosmenta.
            O elenco de vilões na minha infância querida era formado ainda pelo lutador de catch Verdugo, pelo homem que laçava cachorros para a carrocinha e pelo Dary Reis, o ator que fazia os bandidos no Falcão Negro, da Tupi. Com o passar dos tempos, a trinca foi se transformando em nostalgia simpática. O óleo de fígado não. Sem muito esforço ainda sinto a colher da Dona Hilda andando goela abaixo aquela repugnância que me faria o Dida ou o Primo Rico ou o Samuel Wainer ou o próximo Tarzan a substituir o John Weissmuller. A intenção era boa, mas não deu certo. Só pode ter sido porque eu sempre comia manga depois de tomar leite.
            Aos meus olhinhos infantis, o mundo se dividia entre as forças bandidas exaladas pelo fígado do bacalhau – só a ingenuidade das mães para acreditar em fígado num animal que sequer cabeça tinha – e, do outro lado do ringue, capitaneando as noites de lua romântica que um dia iluminariam de felicidade minha existência, lá estava o casal dançarino do rótulo do Sonho de Valsa. Uma vida é feita de gente, livros, músicas, cenas – e produtos do armazém da esquina. O casal elegante e apaixonado, o violino, o sax e o bongô desenhados ao redor deles, aquilo era mais que um papel defendendo o bombom das formigas. Era um projeto de vida.
            Havia quem dividisse o mundo em Marlene e Emilinha. O Cruzeiro e Manchete, Mayrink Veia e Nacional, mas nada deixava muito claro o que era Flamengo e o que era Vasco. No balcão do armazém a mensagem vinha clara. O bombom era o bem. O bacalhau, o mal. Mais tarde eu li o “Vou-me embora pra Pasárgada” do Bandeira, ouvi o Caetano cantando o “caminhando contra o vento” – e dei linhas finais ao projeto desta vida, ainda tão mal cumprida e já tão mais comprida que a restinga de Marambaia. Mas foi ali, na vertigem enamorada do casal que rodopiava, que eu senti primeiro – é por aqui. Sem muito esforço ainda dá pra olhar o rótulo e ouvir Sinatra cantando ao fundo – it’s my way. Eu entrava na pista com o sonho.    
            O óleo de fígado de bacalhau reapareceu agora nos mercados em sabor laranja, e é bom que sua mãe não esteja lendo isso – elas continuam as mesmas e querem filhos cada vez mais espertos e fortões. Vão acabar te convencendo que o Gianecchini tomou. Tenho escorregado na pomada Minancora da saudade, corrido sebos atrás de estampas Eucalol e de uma certa Revista do Esporte em que aparece formado o ataque do Flamengo com Joel, Moacir, Henrique, Dida e Babá.
            Gostaria ainda de recuperar o jingle do “Bom mesmo é Café Capital” cantado pela Dóris Monteiro. Sugeriria por fim que a Piraquê relançasse o biscoito Boa Tarde. Só. O fígado de bacalhau laranja até que poderia funcionar como uma madeleine perversa e me reconstituir os pântanos infantis. Mas, não, obrigado – o analista já me convenceu de que o jacaré que os pesadelos me botavam embaixo da cama não eram oníricos. Eram jacarés de verdade, numa época em que a Vila da Penha não tinha a pista de cooper nem o reconhecimento da ONU. Melhor assim. O mertiolate também já se foi – e esta parte da infância vai ficando apenas como aquele quadro na parede do Drummond: cada vez arde menos.
            Até mesmo o sonho, que o John Lennon, sempre na padaria errada, tinha dado como morto, está novinho. Renascido. Fresco. A Lacta mexeu na fórmula e diz que deixou o bombom do Sonho de Valsa mais cremoso. Não sei, não provei ainda. Os designers deram uma guaribada no rótulo – ampliaram a marca, tiraram o bongô e o sax – mas graças a Deus, e é isso que importa, respeitaram o casal, respeitaram a infância de milhões.
            A moça continua loura, linda, parecendo noiva, parecendo usar Pond’s. O smoking dele, com o mesmo caimento impecável. Quando bombom tiver áudio vai dar para ouvir o que eles estão pensando: o amor – não deu certo com Marta e Eduardo, mas e daí? – vale tentar sempre. O brasileiro anda inspirando seu projeto de romance a partir do beijo no final da novela das oito. Não é o óleo de fígado, mas é vulgar – sai dessa. O casal em celofane maravilha está ensinando o país a se comportar desde 1942 e agora, a orquestra tocando My way só com violinos, nos dá nova oportunidade de acertar o passo com a elegância amorosa. É simples: um pé na valsa, outro pé no sonho e, nhac! – a boca bem aberta para não deixar escapar mais uma vez o bombom cremoso da felicidade.   

 MEMÓRIA 

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
 essas ficarão.  

ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. São Paulo: Círculo do Livro, 1991.
             
MEMÓRIAou um pouco.um rato.