domingo, 2 de outubro de 2011

AI, QUEM ME DERA...



NA PISTA DO SONHO
Joaquim Ferreira dos Santos
JB, 22-07-2001

            Aquele homem com o peixe nas costas assombrou a infância de milhares de crianças, vítimas de mães bem intencionadas, coitadas, todas crentes que o óleo de fígado de bacalhau daria mais memória e muque aos seus filhotes. Tomei aos litros e hoje pode-se medir o resultado: nem uma coisa nem outra. Nem Wilson Figueiredo nem Zulu. O homem com o bacalhau nas costas, o rótulo do vitamínico revigorante, uma espécie de viagra para menores, tinha gosto insuportável e, como sabem todos os maiores de 40 anos, era o mal em sua forma, argh!, gosmenta.
            O elenco de vilões na minha infância querida era formado ainda pelo lutador de catch Verdugo, pelo homem que laçava cachorros para a carrocinha e pelo Dary Reis, o ator que fazia os bandidos no Falcão Negro, da Tupi. Com o passar dos tempos, a trinca foi se transformando em nostalgia simpática. O óleo de fígado não. Sem muito esforço ainda sinto a colher da Dona Hilda andando goela abaixo aquela repugnância que me faria o Dida ou o Primo Rico ou o Samuel Wainer ou o próximo Tarzan a substituir o John Weissmuller. A intenção era boa, mas não deu certo. Só pode ter sido porque eu sempre comia manga depois de tomar leite.
            Aos meus olhinhos infantis, o mundo se dividia entre as forças bandidas exaladas pelo fígado do bacalhau – só a ingenuidade das mães para acreditar em fígado num animal que sequer cabeça tinha – e, do outro lado do ringue, capitaneando as noites de lua romântica que um dia iluminariam de felicidade minha existência, lá estava o casal dançarino do rótulo do Sonho de Valsa. Uma vida é feita de gente, livros, músicas, cenas – e produtos do armazém da esquina. O casal elegante e apaixonado, o violino, o sax e o bongô desenhados ao redor deles, aquilo era mais que um papel defendendo o bombom das formigas. Era um projeto de vida.
            Havia quem dividisse o mundo em Marlene e Emilinha. O Cruzeiro e Manchete, Mayrink Veia e Nacional, mas nada deixava muito claro o que era Flamengo e o que era Vasco. No balcão do armazém a mensagem vinha clara. O bombom era o bem. O bacalhau, o mal. Mais tarde eu li o “Vou-me embora pra Pasárgada” do Bandeira, ouvi o Caetano cantando o “caminhando contra o vento” – e dei linhas finais ao projeto desta vida, ainda tão mal cumprida e já tão mais comprida que a restinga de Marambaia. Mas foi ali, na vertigem enamorada do casal que rodopiava, que eu senti primeiro – é por aqui. Sem muito esforço ainda dá pra olhar o rótulo e ouvir Sinatra cantando ao fundo – it’s my way. Eu entrava na pista com o sonho.    
            O óleo de fígado de bacalhau reapareceu agora nos mercados em sabor laranja, e é bom que sua mãe não esteja lendo isso – elas continuam as mesmas e querem filhos cada vez mais espertos e fortões. Vão acabar te convencendo que o Gianecchini tomou. Tenho escorregado na pomada Minancora da saudade, corrido sebos atrás de estampas Eucalol e de uma certa Revista do Esporte em que aparece formado o ataque do Flamengo com Joel, Moacir, Henrique, Dida e Babá.
            Gostaria ainda de recuperar o jingle do “Bom mesmo é Café Capital” cantado pela Dóris Monteiro. Sugeriria por fim que a Piraquê relançasse o biscoito Boa Tarde. Só. O fígado de bacalhau laranja até que poderia funcionar como uma madeleine perversa e me reconstituir os pântanos infantis. Mas, não, obrigado – o analista já me convenceu de que o jacaré que os pesadelos me botavam embaixo da cama não eram oníricos. Eram jacarés de verdade, numa época em que a Vila da Penha não tinha a pista de cooper nem o reconhecimento da ONU. Melhor assim. O mertiolate também já se foi – e esta parte da infância vai ficando apenas como aquele quadro na parede do Drummond: cada vez arde menos.
            Até mesmo o sonho, que o John Lennon, sempre na padaria errada, tinha dado como morto, está novinho. Renascido. Fresco. A Lacta mexeu na fórmula e diz que deixou o bombom do Sonho de Valsa mais cremoso. Não sei, não provei ainda. Os designers deram uma guaribada no rótulo – ampliaram a marca, tiraram o bongô e o sax – mas graças a Deus, e é isso que importa, respeitaram o casal, respeitaram a infância de milhões.
            A moça continua loura, linda, parecendo noiva, parecendo usar Pond’s. O smoking dele, com o mesmo caimento impecável. Quando bombom tiver áudio vai dar para ouvir o que eles estão pensando: o amor – não deu certo com Marta e Eduardo, mas e daí? – vale tentar sempre. O brasileiro anda inspirando seu projeto de romance a partir do beijo no final da novela das oito. Não é o óleo de fígado, mas é vulgar – sai dessa. O casal em celofane maravilha está ensinando o país a se comportar desde 1942 e agora, a orquestra tocando My way só com violinos, nos dá nova oportunidade de acertar o passo com a elegância amorosa. É simples: um pé na valsa, outro pé no sonho e, nhac! – a boca bem aberta para não deixar escapar mais uma vez o bombom cremoso da felicidade.   

 MEMÓRIA 

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
 essas ficarão.  

ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. São Paulo: Círculo do Livro, 1991.
             
MEMÓRIAou um pouco.um rato.

2 comentários:

  1. Apesar de estar longe do 40...
    O texto é muito nostálgico; irônico e sagaz.
    É bem provável que os brasileiros ainda prefiram os beijo final da novela, mas, que ainda temos muitos Sonhos de Valsa para saborear, isso temos!

    Abração, Fábio; muito bacana essa postagem!

    Rodrigo Davel

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  2. Muito obrigado, Rodrigo.
    Sempre fico muito feliz com suas visitas.
    Abração,
    Fábio

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