terça-feira, 22 de janeiro de 2013

DE SUA GARGANTA AS CANÇÕES EXPLODEM...



DE SUA GARGANTA AS CANÇÕES EXPLODEM...¹
Por Fábio Brito

"Ela é ótima, espetacular como cantora e como intérprete. Se eu estivesse numa fase da minha vida que pudesse fazer alguma coisa por ela, eu faria."²

Elizeth Cardoso, madrinha musical de Ithamara
    

          Conversando, há uns dias, com uma amiga, comentamos sobre a diferença que há entre ouvir um CD e assistir a um show. Não raro, os cantores ficam mais soltos no palco, mais à vontade, mas a voz tem menos qualidade do ponto de vista técnico. Ou seja, para muitos artistas, no estúdio, há certos recursos que dão conta de acertar algumas deficiências da voz. Em se tratando de Ithamara Koorax, cujas qualidades elevam-na ao posto de uma das melhores cantoras do mundo de todos os tempos, o que ocorre é maravilhoso: ela é fantástica nos CDs e, ao vivo, a voz parece ficar até melhor, se é que isso ainda é possível.
          No "Bar do Tom", um espaço aconchegante dentro da Churrascaria Plataforma (Leblon, Rio de Janeiro), assisti, dias 18 e 19, ao show que marca o lançamento de Got to be Real, o 15º de nossa diva, já lançado, com enorme sucesso, em 35 países.  
          Em pleno esplendor vocal, nossa diva impressiona sempre, independentemente das canções que interpreta. Nesse show, por exemplo, um dos momentos mais emocionantes foi sua interpretação para a Ária na corda sol da suíte nº 3, de "um certo Johann Sebastian Bach", como ela mesma fez questão de frisar. Foi um número 'pra' lá de comovente. É impossível, desde a primeira nota, conter a emoção. Tentei, mas não consegui segurar as lágrimas.
          E por falar em comoção, todo o espetáculo nos deixa praticamente paralisados, uma vez que todas as canções, sem exceção, recebem um tratamento impecável e atingem, portanto, um nível elevadíssimo. Negue (Adelino Moreira / Enzo de Almeida Passos) é um exemplo dessa alta qualidade. Ganhou de Ithamara um tratamento bem diferente de suas duas gravações mais conhecidas, a de Nelson Gonçalves  e a de Maria Bethânia. O que ouvimos é a "Negue" de Ithamara. É a tal da assinatura. A de Ithamara é inconfundível.
          Up, up and away (Jimmy Webb), originalmente um jingle, é uma das mais fortes canções desse novo CD e um dos melhores momentos do show, assim como Can't take my eyes off of yoy (Bob Crewe/Bob Gaudio), que sempre recebe o auxílio luxuoso do acompanhamento do público. Toque de cuíca, parceria de Alexandre Malheiros e do saudoso José Roberto Bertrami, um dos integrantes do grupo Azimuth e que nos deixou há pouco, é a prova da genlialidade não só de Ithamara, mas dos músicos também: 'taí' um exemplo impressionante de ritmo, afinação e musicalidade. Momento sublime e imperdível do espetáculo. É pura euforia. No "bis", foi a vez de Mas que nada (Jorge Ben/Benjor) e Vesti azul (Nonato Buzar), uma das mais tocadas do Go to be Real mundo afora.
           Os arranjos primorosos e o roteiro - a cargo do competentíssimo produtor Arnaldo De Souteiro - atestam a qualidade e o requinte do trabalho de todos, de Ithamara e dos músicos que a acompanham: Jaime Aklander (em participação especial,) Haroldo Jobim, Lulu Martin e Jorge Pescara.
           Com sua voz 'pra' lá de espetacular, nossa diva explora as alturas que quiser e, em momentos de puro deleite para o público, chega aos sons mais agudos que há. Impossível não lembrar, em vários momentos, a "voz de sino" da diva peruana Ima Sumac. Ithamara faz o que quer com seu "instrumento" valioso, sua joia rara que já nasceu lapidada.     
           Aberta ao mundo, Koorax, que é brasileira e estrangeira ao mesmo tempo, está atenta ao que há de melhor na música mundial. Representando - e que representação! - o Brasil mundo afora, ela poderia, se quisesse, ser uma cantora de standards. No entanto, acomodação é palavra que está fora de seu léxico. Ela dispensa a comodidade do sucesso fácil e arrisca-se em (re)gravações/(re)leituras sempre muito originais e, portanto, arriscadas. Não tropeça nunca. Como prova de sua genialidade, toma para si canções quase esquecidas e revitaliza-as, dá-lhes outra vida. Consegue, o que é raro, transformar todas as canções que interpreta.  
           Muito já 'se' disse sobre as qualidades da voz de Ithamara. Entretanto, sempre é bom lembrar, por exemplo, que ela sabe modular perfeitamente a voz. Consegue ir de agudos inimagináveis para a voz humana a graves maravilhosos, impressionantes. Outra de suas qualidades é que, em muitos momentos, ela 'mastiga' as letras e as notas musicais com maestria. Entendemos perfeitamente o que ela canta. Consegue escandir de forma impressionante, jamais ouvida.  
          Como se não bastasse a qualidade do aparelho vocal de Koorax, o que se observa, em todos os seus shows  (e em discos também) é a combinação exata de arranjo, voz e interpretação. Ithamara é arrebatadora, como sempre! Seus recursos vocais são invejáveis. Nasce uma Ithamara a cada cem anos.
               
¹ Verso extraído da letra da canção Rio Vermelho (Milton Nascimento / Danilo Caymmi / Ronaldo Bastos).
²  Elizeth Cardoso, em entrevista a Hermínio Bello de Carvalho, refere-se à afilhada Ithamara Koorax (CABRAL, Sérgio. Elisete Cardoso: uma vida. São Paulo: Lazuli Editora: Companhia Editora Nacional, 2010).

MINHA VOZ, MINHA VIDA
Caetano Veloso

Minha voz, minha vida
Meu segredo e minha revelação
Minha luz escondida
Minha bússola e minha desorientação

Se o amor escraviza
Mas é a única libertação
Minha voz é precisa
Vida que não é menos minha que da canção

Por ser feliz, por sofrer, por esperar
Eu canto
Pra ser feliz, pra sofrer, parar esperar
Eu canto

Meu amor, acredite
Que se pode crescer assim pra nós
Uma flor sem limite
É somente porque eu trago a vida aqui na voz

Fonte: VELOSO, Caetano. Letra só. Org. Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.


CAMARIM
Cartola / Hermínio Bello de Carvalho

No camarim as rosas vão murchando
E o contrarregra dá o último sinal
As luzes da plateia vão se amortecendo
E a orquestra ataca o acorde inicial
No camarim nem sempre há euforia
Artista de mim mesmo nem posso fracassar
Releio os bilhetes pregados no espelho
Me pedem que jamais eu deixe de cantar

Caminho lentamente e entro em contraluz
E a garganta acende um verso sedutor
O corpo se agita e chove pelos olhos
E um aplauso escorre em cada refletor
Pisando esta ribalta, cantando pra vocês
De nada sinto falta, sou eu mais uma vez
As rosas vão murchar, mas outras nascerão
Cigarras sempre cantam, seja ou não verão

Fonte: CD Beth Carvalho canta Cartola, BMG 82876537522, (P) 2003.

FAXINEIRA DAS CANÇÕES
Joyce

Assim como quem cuida de uma
casa
Com capricho e com carinho
Cuido bem da minha voz:
Que saia limpa e clara da
garganta
E voe sempre mais veloz,
Lavando o coração de quem me
escute
Feito água cristalina, aliviando
toda a dor
Tornando mais bonita a vida rude
Faxineira do amor.
E assim esfrego o chão da minha
alma
Até vê-la mais brilhante
Do que sala de jantar
Que é pra bem receber os
convidados
Que começam a chegar.
E quem me vê no palco tão serena
Tão segura e poderosa
Radiante de emoções
Não pode adivinhar o meu
trabalho:
 Faxineira das canções.

Fonte: CD Luz e esplendor, Elizeth Cardoso, BF 551, (P) 1986


SANGRANDO
Luiz Gonzaga Jr.

Quando eu soltar a minha voz
 Por favor, entenda
Que palavra por palavra

 Eis aqui uma pessoa se entregando
Coração na boca, peito aberto, vou sangrando
São as lutas dessa nossa vida

Que eu estou cantando
Quando eu abrir a minha garganta

 Essa força tanta
Tudo que você ouvir

  Esteja certa que eu estarei vivendo
Veja o brilho dos meus olhos

E o tremor das minhas mãos
E o meu corpo tão suado

  Transbordando toda raça e emoção
E se eu chorar

E o sal molhar o meu sorriso
Não se espante, cante

  Que o teu canto é minha força pra cantar
Quando eu soltar a minha voz

 Por favor entenda
É apenas o meu jeito de dizer o que é amar


Fonte: http://www.gonzaguinha.com.br/


                                                     MÃE DA MANHÃ
                                                                                        Gilberto Gil

Meu canto na escuridão
Minha voz, meu amparo
Aro de luz nascente do dia
Brota na gruta da dor
Mãe da mahã, de tudo eu faria
Pra conservar vosso amor

A cada ano, uma romaria
Uma oferenda, uma prenda, uma flor
A cada instante, um grão de alegria
Lembrança do vosso amor

Santa Virgem Maria
Vós que sois Mãe do Filho do Pai do Nascer do Dia
Abençoai minha voz, meu cantar
Na escuridão dessa nostalgia
Dai-nos a luz do luar

Fonte: GIL, Gilberto. Gilberto Gil: todas as letras. Org. Carlos Rennó. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.


SANTA VOZ
 Baden Powell / Paulo César Pinheiro

Canta, Amor
Canta pra afastar dos corações a dor
Feito a velha ama que nos embalou
Canta pra fazer
Uma criança adormecer
Canta uma esperança
Canta, Amor
Canta o verso novo de um compositor
Canta porque o povo segue o seu cantor
Pois é, que a mão do Criador
Que criou a tua santa voz
Abençoe essa garganta, amor
Porque alguém tem que cantar por nós!

Voz é vento
Palavra é pensamento
Como todo canto é uma lição
Que faz nesse momento
O movimento
Do meu coração

Toda voz quando canta é santa
Todo canto é uma oração

Fonte: PINHEIRO, Paulo César. Histórias das minhas canções. São Paulo: Leya, 2010.

CANTORIA
Hermínio Bello de Carvalho / Paulinho da Viola

Amar é um dom
há que saber o tom
e entoar bem certo a melodia:
o povo enxerga a luz de uma voz sincera
e canta com ela
em sintonia.
Cantar é uma luz
um enfunar de velas
é compreender a canção como um
navio
que vai zarpando, ignorando mapas
tocando as águas que nem harpas
por conta do destino
(...)
Fonte: CD Cantoria, Hermínio Bello de Carvalho, 2005 (P 1995), BF 615.


VOZ E SUOR
Sueli Costa / Abel Silva

Guarda de mim
O que for o melhor
Os meus sonhos, os delírios
A voz e o suor
Pois sempre na vida
Chegam o momento em que
se desatam os nós
É a vida que afasta
Apaga ou faz brilhar
A chama no peito dos homens
Mas nunca a minha garganta
"Dirá" meu amor
Nunca mais
Esqueça o que for
Pequenino e fugaz
Aquela palavra
Ferina e mordaz
Esqueça o gesto da hora infeliz
O meu coração sempre soube
O que quis
Mas nunca a minha garganta
"Dirá" meu amor
Nunca mais
Fonte: CD Voz e suor, Nana Caymmi e Cesar Camargo Mariano, EMI, 748144 2, P 1983.


 
Fonte: violinovirtuose.blogspot.com

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

LICENCINHA, POR FAVOR!



DELICADEZA
Joyce

Discreta em companhia de gente esquisita
Maldita em ambiente de gente normal
Plantando coisas belas num circo de horrores
Com flores e bombons no juízo final
Pintando aquarelas em terra de cego
Com pregos, paus e pedras e más intenções
Se por delicadeza, eu oculto o meu ego
Me nego a ser princesa num reino de anões

Bordando sutilezas e finas malícias
Delícias num país que não tem paladar
O coração partido de tanta falácia
Que passa e a gente nem pode se desviar
Sonhando ainda um tempo menos suicida
que diga pra que veio e que possa provar
Se por delicadeza eu perder minha vida
Saí mesmo à francesa, queira desculpar

Fonte: CD "Ilha Brasil", Joyce, EMI-838215 2, 1996.


LICENCINHA, POR FAVOR!
Por Fábio Brito


Muitos textos alimentam-se dos “cisquinhos” do dia a dia, da “poeira do cotidiano”, para usar uma expressão da escritora Adélia Prado. Este não é diferente. Vamos ao “cisco” que lhe deu origem e aos que o sustentam, que lhe dão corpo.
Há uns dias, ao chegar à garagem onde estaciono meu carro, deparei com um “motoqueiro” (tinha de ser!) que, no exato momento em que cheguei, abria o portão, que é “de correr”. Parei, mais ou menos, a um metro da ‘moto’, mas deixei o carro ligado. Ele e eu chegamos ao local praticamente ao mesmo tempo. Porque eu estava tão perto, houve tempo de ele, o 'motoqueiro', que ainda abria o portão, olhar para trás e constatar que eu também precisava entrar. Pois bem, esperei que ele abrisse completamente o tal portão, a fim de que também desse para o carro passar. Pensei, claro!, que o rapaz seria gentil. Enganei-me redondamente! Ele abriu, sim, o bendito portão, mas apenas sua ‘moto’ pôde passar. Ou seja, a abertura foi mínima. Poxa! Fiquei perplexo. Assim que ele desceu a pequena rampa da garagem, saí do carro e terminei de abrir... o portão. Antes, porém, tive tempo de, durante uns segundos, pensar na indelicadeza desse moço, quase um menino. Será que seria tão difícil para ele ter sido gentil comigo? Assim, eu não precisaria descer do carro. Nada disso! Ajudar o outro, que é sempre visto como inimigo e ameaça, é impossível para muitas pessoas.
Outro “cisco” chegou a mim por meio de um caixa de banco. Que história! Deixemos claro que, neste caso, a indelicadeza está nas palavras, na maneira com que o trabalhador dirigiu-se ao caixa. Em relação à atitude, ao comportamento, o que houve foi desonestidade mesmo... e das grossas! Vamos aos fatos! Um senhor dirigiu-se ao banco porque tinha de receber quatro contas de Fundo de Garantia. Quando chegou ao guichê, ele soube que apenas três estariam liberadas naquele dia (uma seria liberada dias depois). Pois bem, o trabalhador pediu à atendente que somasse o valor das quatro contas, só para ele ter uma noção do montante. Ela, sem demora, passou-lhe a soma (das quatro!), mas deixou claro que, naquele dia, só estariam liberadas três. Um tanque de brigadeiros para quem adivinhar o desfecho da história! No momento de pagar ao senhor, a atendente autenticou o valor referente às três contas disponíveis naquele dia, mas entregou o dinheiro referente às quatro contas. Resultado: falta de caixa ao fim do fatídico dia. Porque a memória ainda está ‘boazinha’, ela encontrou uma maneira de localizar o trabalhador: por meio dos dados da empresa, conseguiu o telefone do sujeito. Ao ligar para ele e explicar, com detalhes, a história, ficou estupefata com a resposta: - “Problema seu! Ninguém mandou ser desatenta!” E o tal senhor deixou claro que não devolveria o dinheiro. Porque o valor não era muito alto, esse mesmo trabalhador, dias depois, foi ao caixa rápido e conseguiu sacar a tal conta, que ele, antecipadamente, já havia recebido. Se ele fosse honesto, o que teria feito? Devolvido o dinheiro à pessoa que o atendeu. Sabe o que eu disse à pessoa – o caixa – que me contou essa história, caso ela tivesse ocorrido comigo? Eu diria o seguinte ao desonesto: “- O senhor não vai devolver? Tudo bem! No entanto, registre aí o seguinte: esse dinheiro ainda há de fazer-lhe muito mal”. Seria excelente se ele entendesse isso como... Melhor não dizer a palavra, não é mesmo? Ao telefone, eu teria dito essa tal palavra. Mais: diria que “ela” (a tal “coisa” a ser ‘rogada’) o acompanharia durante muito tempo. Durante, talvez, toda a vida. Cruzes!
Pois é, esse moço deve ser mais um dos muitos brasileiros que não se conformam com os políticos desonestos que temos aos borbotões por aí e que não se cansam de falcatruas e mais falcatruas. E não pode conformar-se mesmo! Indignar-se é preciso. No entanto, ele também deveria primar pela honestidade. Para muitas pessoas, infelizmente, é facílimo berrar contra a desonestidade alheia, principalmente quando ela ocorre na esfera política, que tem muita visibilidade. Entretanto, quando a primeira chance de desonestidade bate à porta dessas pessoas, elas não a descartam. Que pena! Pena mesmo!
Outro “cisco” bem comum é este: determinado jeito de falar pode magoar algumas pessoas. As mais sensíveis, é óbvio! Muitas vezes, falta delicadeza no tom de voz, no jeito de dirigir-se a alguém. Outro dia, assistindo à entrevista da atriz Marília Pêra ao programa Starte, constatei que também já chorei por causa de grosseria de algumas pessoas. Ela contou que, certa vez, o recepcionista de um hotel tratou-a com certa indelicadeza (ou rispidez) quando ela quis saber algo sobre a chave do apartamento.  Por causa do tom de voz do rapaz, ela começou a chorar. Fiquei pensando no seguinte: justo a Marília, que é tão forte quando atua ou dirige e é admirada por seu rigor, acabou chorando por causa de uma atitude, que, aos olhos de muitos, passaria despercebida. Também já me magoaram assim. Claro que há dias em que estamos mais vulneráveis, mais suscetíveis a isso. Parece que, nesses dias, a sensibilidade, como dizem, está mesmo “à flor da pele”. Assim, até um olhar meio atravessado pode magoar, maltratar e ofender. Sigamos!
Não responder a “e-mails” é outra indelicadeza que grassa por aí. Se não houve tempo, melhor é ser sincero: “– Por pura falta de tempo, não consegui abrir minha caixa postal”, é o que digo, vez ou outra, para algumas pessoas. E é mesmo! Em muitos casos, esperam que estejamos o tempo todo conectados. Impossível! Ou melhor: é possível para muitos, ‘né’? Há pessoas que “não trabalham”, principalmente quando deveriam estar trabalhando e, exatamente por isso, podem viver conectadas 24 horas. Pertenço a outra “espécie”, talvez rara: a das pessoas que também encontram tempo para ler, para conversar, para ouvir música (fora do computador), para assistir a algum programa interessante de TV, porque a vida – a vida verdadeira, como dizem – não se resume à INTERNET.
           Ih! Parece que a lista de indelicadezas não tem fim. Quem tiver paciência, segure firme e forre o estômago! Vamos a mais algumas, comov as que ocorrem em "supermercado", um capítulo a que sempre temos de assistir. Se vale a pena ver/ler de novo, não sei. Mesmo assim, vamos lá! Constantemente, tenho de ficar tirando do meio do corredor vários carrinhos de pessoas que pensam estar sozinhas naquele ambiente. Deus meu! Muitos deixam o bendito carrinho exatamente no meio do tal corredor, esteja ou não lotado o supermercado. Falta de delicadeza total. Não pensam no outro essas pessoas. Se o espaço entre as gôndolas é estreito, o ideal é aproximar o bendito carrinho das prateleiras, a fim de que ele não fique abandonado no meio da ‘pista’. Ai, como isso azeda a mandioca!
           Outro primor de indelicadeza que acabo de lembrar é clássico: alguém localiza uma vaga em horário e estacionamento bem concorridos. Durante a manobra – ou até antes - eis que surge um engraçadinho e, com a maior desfaçatez, passa à frente e estaciona nessa vaga. A vontade que dá é de sair do carro e dar um tiro no infeliz. Esse desrespeito é de encolerizar qualquer cristão. Ser bom caráter não arranca pedaço, gente!  
 Mais pérolas de indelicadeza vêm vindo à minha mente! Desde tempos imemoriais que, ao ouvir a palavra “fila”, muita gente tem engulhos e calafrios. Também detesto-a! No entanto, respeito-a. Como as pessoas têm resistência a filas! Tudo bem que, em muitos casos, o tempo de espera é tenebroso, mas isso não é motivo para o desrespeito. Se for o caso, reclame, proteste e fique indignado mesmo, mas não “fure” fila e não desrespeite o atendente, que não tem culpa se a empresa não contratou mais funcionários, caso seja esse o motivo de longa espera. É agressivo, é grosseiro, é desrespeitoso ao extremo ignorar a fila.  Preciso dizer mais?
A fonte de indelicadezas parece não secar. Uma atitude bem simples, mas muito desrespeitosa, pode ser vista pelas calçadas de qualquer cidade em dias chuvosos, principalmente. O mau uso de guarda-chuvas e sombrinhas é constrangedor. Se, pelas calçadas, alguém tentar andar sem esse acessório, deverá rezar para não ficar cego. É... corre-se esse risco, exatamente porque as pessoas não têm a delicadeza de levantar – ou fechar - a bendita sombrinha ou o bendito guarda-chuva quando estão sob as marquises. Quem quiser escapar da “furada” no olho deve andar pelo meio da rua. É o jeito.  Ah, e reze para não ser atropelado por um carro um por um motoqueiro ensandecido. Ops! “Motoqueiro ensandecido” é pleonasmo.  
Ih, eu nem queria comentar, mas, uma vez que toquei no assunto “motoqueiros”, é inevitável: quer celeiro melhor para indelicadezas do que o trânsito? Ê lugar para o reinado soberano da falta de educação, de delicadeza, de respeito... de tudo! Praticamente todas as situações envolvendo trânsito propiciam indelicadezas. Um exemplo bem simples é a tal da “preferência’”. Neguinho não quer nem saber disso. “Farinha pouca, meu pirão primeiro”, como diz o ditado. Os demais que se danem, não é mesmo? E a história não termina: já ouvi pessoas dizerem que não respeitam a preferência “porque ninguém respeita”. Se elas tentarem respeitar, vão esperar a vida inteira até que chegue sua vez. Ou seja, está instituído o “sanatório geral”.   
E por falar em carro, em situações ligadas ao trânsito, seria bom fechar com um exemplo de matar. Certa vez, da janela de meu apartamento, ouvi um vizinho dizer à sua esposa que eles precisavam vender o carro. Até aí tudo bem. Tudo bem nada! O comentário que veio em seguida mostrou claramente o mau-caratismo do carinha: ele precisava, em verdade, passar o carro adiante, ou seja, jogar a bomba em outro colo, porque, daí a uns dias, o tal carro “bateria o motor”, como ele fez questão de frisar. O sacana só não sabia que eu estava escutando a conversa. Até hoje, olho-o com desdém e penso em nunca precisar desse cara, desse pulha, desse escroque. Não é peso algum ser delicado. Penso assim... e devo ter poucos pares neste mundo.  


"(...) João Gilberto ficaria internado, aos cuidados de um respeitado médico baiano, o prof. Nelson Pires, chefe da cadeira de Psiquiatria da Universidade Federal da Bahia, e de sua equipe.
Não chegou a ser exatamente uma internação, (...). João Gilberto ficou no ambulatório, sendo submetido a uma bateria de entrevistas com as psicólogas, as quais confundiu com a sua argumentação ferina e sibilina. Como no dia em que, olhando com ar perdido pela janela, comentou com uma delas:
'Olha o vento descabelando as árvores...'
'Mas árvores não têm cabelo, João', ela cometeu o erro de dizer.
'E há pessoas que não têm poesia', ele fulminou, cortante. (...)"

Fonte: CASTRO, Ruy. Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.



DESENHO
Cecília Meireles

Fui morena e magrinha como qualquer polinésia,
e comia mamão, e mirava a flor da goiaba.
E as lagartixas me espiavam, entre os tijolos e as trepadeiras,
e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam.

Isso era um lugar de sol e nuvens brancas,
onde as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas...
O eco, burlão, de pedra em pedra ia saltando,
entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas.

Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho,
e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas,
que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas,
pois a vida completa e bela e terna ali já estava.

Como a chuva caía das grossas nuvens, perfumosas!
E o papagaio como ficava sonolento!
O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos
fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo.

Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros,
e os grandes cães ladravam como nas noites do Império.
Mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes
moravam nos jardins sussurrantes e eternos.

E minha avó cantava e cosia. Cantava
canções de mar e de arvoredo, em língua antiga.
E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos
e palavras de amor em minha roupa escritas.

Minha vida começa num vergel colorido,
por onde as noites eram só de luar e estrelas.
Levai-me aonde quiserdes! - aprendi com as primaveras
a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.

Fonte: MEIRELES, Cecília. Flor de poemas. Rio de Janeiro: Record, 1983.

OLHA
Milton Nascimento  

Tu clamas por liberdade
Mas só aquela que te convém
Tu puxas a arma no escuro
E não suportas ninguém feliz
Persegues a quem trabalha
Calúnia, carta e traição
Te julgas o mais esperto
Mas és mentira, só ilusão

Depois de passar o tempo
Colhe o deserto que é todo teu
Com todo teu preconceito
Segue pensando que enganas Deus
E enganando a ti mesmo
Pois quem trabalha continuou
Em cada sonho suado
Que nem percebes o que custou

Fonte: CD "Anima", Milton Nascimento, PolyGram, 1997 (LP 1982).


"Se por acaso um dia você for embora, leve o menino que você é."
Meu menino, Danilo Caymmi e Ana Terra

"E o menino com o brilho do sol
Na menina dos olhos sorri
E estende a mão"
De volta ao começo, Luiz Gonzaga Jr.

"Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor"
A flor e o espinho, Nelson Cavaquinho / Guilherme de Brito e Alcides Caminha

"Não sei fazer poema ou canção
que fale de outra coisa que não seja o amor."
Você abusou, Antonio Carlos e Jocafi.

"Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde"
Trocando em miúdos, Francis Hime e Chico Buarque de Hollanda

"Como eu não sei rezar
Só queria mostrar / Meu olhar, meu olhar, meu olhar..."
Romaria, Renato Teixeira

"Eu tenho medo de abrir a porta
que dá pro sertão da minha solidão"
Pequeno mapa do tempo, Belchior

"Perto de você a noite é uma canção
e o vento tem palavras"
O tempo e a canção, Renato Teixeira

"E me beija com calma e fundo
até minh'alma se sentir beijada"
O meu amor, Chico Buarque de Hollanda


NO TEMPO DOS QUINTAIS
Sivuca e Paulinho Tapajós

Era uma vez
um tempo de pardais
de verde nos quintais
faz muito tempo atrás
quando ainda havia fadas

no bonde havia um anjo pra guiar
outro pra dar lugar
pra quem chegar sentar
de duvidar, de admirar

havia frutos num pomar qualquer
de se tirar do pé
no  tempo em que os casais
podiam mais se namorar
nos lampiões de gás
sem os ladrões atrás
tempo em que o medo 
se chamou jamais

veio um marquês
de uma terra já perdida
e era uma vez
se fez dono da vida
mandou buscar
cem dúzias de avenidas
pra expulsar de vez as margaridas
por não ter filhos
talvez por nem gostar
ou talvez por mania de mandar

só sei que enquanto houver os corações
nem mesmo mil ladrões
podem roubar canções
e deixa estar, que há de voltar
o tempo dos pardais
do verde nos quintais
tempo em que o medo 
se chamou jamais 

Fonte: CD "Aguapé", Simone Guimarães, CID 03004/5, 1996.


"O que não sei fazer desmancho em frases."

"Perder o nada é um empobrecimento."

"Tem mais presença em mim o que me falta."

"Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja."

"Não gosto de palavra acostumada."

"Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria."

"Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!
(O abandono me protege.)"

Fonte: BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1997.


terça-feira, 1 de janeiro de 2013

TODO ANO, AS MESMAS HISTÓRIAS



VIVER, AMAR, VALEU
Luiz Gonzaga Jr.

Quando a atitude de viver
É uma extensão do coração
É muito mais que um prazer
É toda a carga da emoção
Que era o encontro com o sonho
Que só pintava no horizonte
E de repente diz presente
Sorri e beija nossa fronte
E abraça e arrebata a gente
É bom dizer: viver valeu!
Ah! Já não é nem mais alegria
Já não é nem felicidade
É tudo aquilo num sol riso
É tudo aquilo que é preciso
É tudo aquilo paraíso
Não há palavra que explique
É só dizer: viver valeu!
Ah! Eu me ofereço esse momento
Que não tem paga e nem tem preço
Essa magia eu reconheço
Aqui está minha sorte
Me descobrir tão fraco e forte
Me descobrir tão sal e doce
E o que era amargo acabou-se
É bom dizer: viver valeu
É bem dizer: amar valeu
Amar valeu!

                                                 Fonte: CD Puro prazer, Zizi Possi, Universal Music, 1999, 73145468182


TODO ANO, AS MESMAS HISTÓRIAS
Por Fábio Brito

Todo ano, nos últimos dias de todos os anos, lá vêm as mesmas chatices, as mesmas histórias. Se abro os jornais, as revistas, ou se assisto a certos programas de TV, eis o que sempre vejo: o que houve de melhor no ano que está findando e as benditas previsões para o próximo.  Não aguento mais retrospectiva e aguento muito menos previsões e mais previsões (todas bem previsíveis, claro!). Argh!
Para aliviar um pouco o fato de eu não suportar tanta chatice, teço meus comentários sobre as tais retrospectivas e as (in)felizes previsões. Talvez, assim, eu elimine a "gastura". Comecemos pela TV. Não consigo mais ler nada que teça uma linha sequer sobre “Avenida Brasil”. Estou sendo rabugento, eu sei, mas tenho, cá entre nós, esse direito, não tenho? Ok. A novela, dizem, foi boa mesmo. E deve ter sido, uma vez que muita gente competente a avaliou assim. Apenas comecei a ver um dos primeiros capítulos. Depois, só ouvi “falar”. Mesmo não vendo, fiquei conhecendo tudo: soube de muitos detalhes da trama, conheci as personagens e por aí vai. Em se tratando de tudo o que faz sucesso, é até "chover no molhado" dizer que não precisamos correr atrás, procurar saber: as músicas, as novelas, os filmes, por exemplo, vêm ao nosso encontro. É bom deixar claro que nem tudo o que vem ao nosso encontro é de “nosso agrado”. Deus me livre! O que mais tenho feito, nos últimos tempos, é rejeitar muita “coisa” que, via portas e janelas, entram, aos borbotões, em minha casa.  
Bom, e por falar em “Avenida Brasil”, falemos, pois, de Adriana Esteves, que é, sem dúvida, boa atriz e brilhou alto nessa novela. Muitos dizem que essa atriz é ótima, excelente. Continuo achando-a apenas uma boa atriz e mais nada.  Só. À semelhança de Regina Duarte, Adriana, para mim, também tem uns tiques (ou umas “caretas”) que não me agradam e que me incomodam. Dizendo isso, sei, perfeitamente, que estou indo em direção contrária a uma multidão, porque todo o mundo vive incensando Esteves e sua Carminha (e várias de suas personagens), assim como já incensaram - e continuam incensando - Regina Duarte, a outrora "Namoradinha do Brasil". Adriana talvez seja a nova "Namoradinha"... Pausa: sem patrulhas! Sempre desconfiei de que, em muitos casos, a razão está com as minorias.
Acerca da tão comentada trama de “Avenida Brasil”, louvemos, pois, João Emanuel Carneiro, que já havia mudado o rumo das telenovelas brasileiras com “A favorita”. Em “Avenida...”, por exemplo, parece-me louvável o fato de esse autor ter implodido o maniqueísmo, como disse, em outras palavras, o diretor de teatro Marco Antonio Braz: quem foi vilão? Quem foi herói? Se a heroína – interpretada por Débora Falabella – valia-se de métodos pouco ortodoxos, a dita vilã, por sua vez, também “fraquejava nos bons sentimentos”, como afirma o jornalista Ivan Claudio.
Vamos a mais retrospectiva? Na música, por exemplo, Caetano Veloso (sempre polêmico!) gravou “Abraçaço”, afirmando ter fechado a trilogia que se completa com “Cê” e “Zii e Ziê”. Gostei, com reservas, do “Abraçaço” e não gostei “nadica” dos outros dois.  Confesso que sou conservador. Essas modernidades “caetanescas” (incluo, aqui, o “Recanto”, de Gal, que, em verdade, é um disco “do” Caetano) não me arrebatam. Ao contrário, afastam-me da obra desse grande cantor/compositor de quem sempre fui fã. Ao ouvir esses três CDs, que ele gravou com a Banda Cê, morri de saudades de “Cinema Transcendental”, “Terra”, “Velô”, “Outras palavras”, “Cores, nomes” e tantos outros que já figuram não apenas entre meus discos favoritos, mas entre grandes clássicos da Música Popular Brasileira.
Sobre as previsões para o ano que vem chegando, teremos, lembrando a ironia de Cazuza, um “museu de grandes novidades”. Na TV – e, por extensão, no teatro (incrível!) e no cinema – continuaremos com a invasão de carinhas bonitas e corpinhos malhados. Nada de novos atores! Hoje, como disse Fernanda Montenegro, todo o mundo é artista. Entretanto, não são todos que podem ser atores. E vêm mais novelas por aí protagonizadas por ex-modelos, ex-BBBs e não sei mais o quê. Pois é, citando outra atriz, desta vez Nathalia Timberg, tudo isso tem a ver com a "superficialidade que acompanha a velocidade". Ninguém mais estuda para ser ator. Dá trabalho. As passarelas (ou as revistas) são um trampolim excelente para o palco de um teatro ou para os estúdios de TV. Onde estão os atores?, pergunto-me constantemente. Nas novelas? Procurando bem, num elenco de cinquenta, cinco são atores. “Tá” bom, não ‘tá’?  
Na música, outro terreno fertilíssimo para brotar e vingar o mau gosto, não é preciso dizer que minhas "previsões" não são nada alentadoras: assim como na TV, quem vai vender horrores e fazer um sucesso extraordinário é exatamente o povo que não sabe cantar: dos sertanejos universitários (a que ponto chegaram os universitários, meu Deus!), passando pelas deusas ‘do’ axé e indo até os românticos de motel de quinta. Não há como mensurar o sucesso que eles farão. É algo que extrapolará a Via Láctea. A mídia, o tempo todo, tentará incutir o seguinte em nossas cabeças: - “Esqueçam os que fazem Arte”. No entanto, na contramão do mercado (graças a Deus e aos orixás!), pequenas gravadoras - muitas independentes – continuarão dando espaço a quem tem talento. Ufa!  Pausa: sou do tempo em que, em sala de aula de universitários, quando o assunto era música, só entravam na roda Gil, Chico, Milton, Caetano... Hoje, prefiro evitar comentários acerca do gosto dos estudantes. Não são todos que têm um gosto duvidoso, claro!. Ainda há uns ETs que, bravamente, são minoria.
E o cinema? Assim como na música e na TV, o que venderá "adoidado" será exatamente o “mais comercial”, o de fácil “digestão”, o que não exige qualquer esforço para o entendimento. Bilheterias vão ”bombar” com o fácil, o previsível, o grotesco e o engraçadinho, mas ordinário. As banalidades continuarão lotando as salas de cinema no mundo inteiro. Quem quiser assistir a obras de arte terá de rezar para que elas tenham sido lançadas em DVD ou algo similar. Caso contrário, a pessoa terá de se contentar com alguns fragmentos que, porventura, algum corajoso atrever-se a disponibilizar via YouTube. Hoje, nem mais locadoras existem. Há um tempo, quando elas eram encontradas em quaisquer esquinas da cidade, havia sempre aquelas que, nalguma estante empoeirada láááá do fundo da loja, guardavam um espaço para os filmes que “corriam por fora”. Numa das locadoras que eu costumava frequentar, a classificação dos filmes “obras de arte” era esta: “filmes de outros países”, em etiqueta colada na prateleira. Nem é preciso dizer que a “xaropada americana” dominava: abarrotava praticamente todas as estantes. Para os próximos anos,  nem é necessário prever: mais xarope virá por aí...
Vamos a mais retrospectivas e previsões? Na vida, de modo geral, é fácil afirmar que tem faltado humanidade neste mundo. Alguém duvida? Pense no ano que está ficando para trás... Nem preciso travestir-me de Tirésias para apostar no seguinte: para os anos vindouros, as pessoas lutarão por mais dinheiro no bolso e menos humanidade. E lutarão bravamente por isso. Por dinheiro, continuarão “vendendo a alma ao diabo”, como se dizia antigamente. E, com o decorrer dos anos, a tendência é o preço cair mais e mais. Chegará o dia em que as almas, na xepa, serão arrematadas pelo “pé-cascudo”, pelo “beiçudo”, pelo “mofento”, pelo “rabudo”, pelo “tinhoso”. Sem filosofias baratas: muitas pessoas, hoje, valem pelo carro que têm, valem pelo cargo que ocupam. E orgulham-se muito disso. Nunca as pessoas correram tanto atrás de dinheiro e de “estatus”. Todo o mundo quer mandar, todo o mundo quer ser chefe, todo o mundo quer ter dinheiro, casa na praia, no campo e “outras mumunhas mais”.
Sabe o que ando querendo? Só saúde! Mais nada! Tudo o que não for saúde é menor, é menos importante, é insignificante. Citando Gonzaguinha, qualquer doença “deixa esmagada a vida no chão”. Muitos, infelizmente, não pensam assim, não sabem – ou não querem saber – disso: mesmo doentes, correm alucinadamente atrás de dinheiro e de poder. Que horror!
Depois de lutarem pela saúde (torço por isso!), espero que as pessoas consigam mudar o que pode – e deve – ser mudado e que aprendam a reconhecer o que não tem solução, o imutável. O problema é que muita gente até reconhece, localiza o imutável. Entretanto, continua atrelada a ele. Que pena!  
Felizes “próximos anos”! É... não desejo que só o próximo seja bom. E vamos “tocando em frente”... 


ANO NOVO
Chico Buarque/1967
O rei chegou
E já mandou tocar os sinos
Na cidade inteira
É pra cantar os hinos
Hastear bandeiras
E eu que sou menino
Muito obediente
Estava indiferente
Logo me comovo
Pra ficar contente
Porque é Ano-novo

Há muito tempo
Que essa minha gente
Vai vivendo a muque
É o mesmo batente
É o mesmo batuque
Já ficou descrente
É sempre o mesmo truque
E quem já viu de pé
O mesmo velho ovo
Hoje fica contente
Porque é Ano-novo

A minha nega me pediu um vestido
Novo e colorido
Pra comemorar
Eu disse:
Finja que não está descalça
Dance alguma valsa
Quero ser seu par
E ao meu amigo que não vê mais graça
Todo ano que passa
Só lhe faz chorar
Eu disse:
Homem, tenha seu orgulho
Não faça barulho
O rei não vai gostar

E quem for cego veja de repente
Todo o azul da vida
Quem estiver doente
Saia na corrida
Quem tiver presente
Traga o mais vistoso
Quem tiver juízo
Fique bem ditoso
Quem tiver sorriso
Fique lá na frente
Pois vendo valente
E tão leal seu povo
O rei fica contente
               Porque é Ano-novo



APRENDENDO A VIVER

Thoreau era um filósofo americano que, entre coisas mais difíceis de se assimilar assim de repente, numa leitura de jornal, escreveu muitas coisas que talvez possam nos ajudar a viver de um modo mais inteligente, mais eficaz, mais bonito, menos angustiado.
Thoreau, por exemplo, desolava-se vendo seus vizinhos só pouparem e economizarem para um futuro longínquo. Que se pensasse um pouco no futuro, estava certo. Mas “melhore o momento presente”, exclamava. E acrescentava: “Estamos vivos agora”. E comentava com desgosto: “Eles ficam juntando tesouros que as traças e a ferrugem irão roer e os ladrões roubar”.
A mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente infeliz agora, tome alguma providência agora, pois só na sequência dos agoras é que você existe.
Cada um de nós, aliás, fazendo um exame de consciência, lembra-se pelo menos de vários 'agoras' que foram perdidos e que não voltarão mais. Há momentos na vida que o arrependimento de não ter tido ou não ter sido ou não ter resolvido ou não ter aceito, há momentos na vida em que o arrependimento é profundo como uma dor profunda.
Ele queria que fizéssemos agora o que queremos fazer. A vida inteira Thoreau pregou e praticou a necessidade de fazer agora o que é mais importante para cada um de nós.
Por exemplo: para os jovens que queriam tornar-se escritores mas que contemporizavam – ou esperando uma inspiração ou se dizendo que não tinham tempo por causa de estudos ou trabalhos – ele mandava ir agora para o quarto e começar a escrever.
Impacientava-se também com os que gastam tanto tempo estudando a vida que nunca chegam a viver. “É só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos que começamos a saber”.
E dizia esta coisa forte que nos enche de coragem: “Por que não deixamos penetrar a torrente, abrimos os portões e pomos em movimento toda a nossa engrenagem?” Só em pensar em seguir o seu conselho, sinto uma corrente de vitalidade percorrer-me o sangue. Agora, meus amigos, está sendo neste próprio instante.
Thoreau achava que o medo era a causa da ruína dos nossos momentos presentes. E também as assustadoras opiniões que nós temos de nós mesmos. Dizia ele: “A opinião pública é uma tirana débil, se comparada à opinião que temos de nós mesmos”. É verdade: mesmo as pessoas cheias de segurança aparente julgam-se tão mal que no fundo estão alarmadas. E isso, na opinião de Thoreau, é grave, pois “o que um homem pensa a respeito de si mesmo determina, ou melhor, revela seu destino”.
E, por mais inesperado que isso seja, ele dizia: tenha pena de si mesmo. Isso quando se levava uma vida de desespero passivo. Ele então aconselhava um pouco menos de dureza para com eles próprios. O medo faz, segundo ele, ter-se uma covardia desnecessária. Nesse caso devia-se abrandar o julgamento de si próprio. “Creio, escreveu, “que podemos confiar em nós mesmos muito mais do que confiamos. A natureza adapta-se tão bem à nossa fraqueza quanto à nossa força”. E repetia mil vezes aos que complicavam inutilmente as coisas – e quem de nós não faz isso? - , como eu ia dizendo, ele quase gritava com quem complicava as coisas: simplifique! simplifique!
E um dia desses, abrindo um jornal e lendo um artigo de um nome de homem que infelizmente esqueci, deparei com citações de Bernanos que na verdade vêm complementar Thoreau, mesmo que aquele jamais tenha lido este.
Em determinado ponto do artigo (só recortei esse trecho) o autor fala que a marca de Bernanos estava na veemência com que nunca cessou de denunciar a impostura do “mundo livre”. Além disso, procurava a salvação pelo risco – sem o qual a vida para ele não valia a pena – “e não pelo encolhimento senil, que não é só dos velhos, é de todos os que defendem as suas posições, inclusive ideológicas, inclusive religiosas” (o grifo é meu).
Para Bernanos, dizia o artigo, o maior pecado sobre a terra era a avareza, sob todas as formas. “A avareza e o tédio danam o mundo”. “Dois ramos, enfim do egoísmo”, acrescenta o autor do artigo.
Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!
Feliz Ano Novo.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

 
Não me basta ter um sonho.
Eu quero ser um sonho.

COUTO, Mia. O último vôo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.


Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que fica de mim em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro.

ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: o essencial da década de 1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005.



TEMPO-SERÁ

A Eternidade está longe
(Menos longe que o estirão
Que existe entre o meu desejo
E a palma de minha mão).
Um dia serei feliz?
Sim, mas não há de ser já:
A Eternidade está longe,
Brinca de tempo-será.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

   
OS DANÇARINOS DO ARAME

Dentro das atuais coordenadas do espaço e do tempo, aqui nos vamos equilibrando sobre este fio de vida...
Que rede de segurança, pensamos nós, cheios de esperança e medo, que rede de segurança nos aparará?

QUINTANA, Mario. Caderno H. 2ª ed. São Paulo: Globo, 2006.



 
Cambalhotaóleo sobre tela, 1958, 59.5 x 72.5 cm.