sábado, 23 de agosto de 2014

EMBELEZANDO O COTIDIANO



EMBELEZANDO O COTIDIANO
Por Fábio Brito
Sobre o CD “Intersecção”, de Marcos Ozzellin
Ao ouvir o CD “Intersecção”, do talentosíssimo Marcos Ozzellin, lançado há pouco, lembrei-me, imediatamente, de “Coração andarilho”, da Nélida Piñon, em que nossa imortal relata ter nascido de uma "estirpe gentil", pronta a "embelezar o cotidiano".
E foi o gesto altamente delicado e embelezador de Ozzellin ao gravar um CD tão nobre e “ofertá-lo” a nós que me levou a escrever sobre meu contentamento diante de tanta beleza. É sempre assim: quando algo me comove, escrevo. Não sei se bem, mas escrevo. Talvez esteja aí a melhor maneira de fazer com que “nossa emoção sobreviva”². Impossível guardar só ‘pra’ mim as sensações e as emoções que tive, tenho e continuarei tendo ao ouvir esse “Intersecção”, que é uma obra de arte produzida não só por Ozzellin, mas também pelos excepcionais músicos que o acompanham: André Muato (violão 8 cordas), Henrique Vasconcelos (cavaquinho), Vinícius Santos (bandolim) e Thiago Kobe (percussão).
Para início de conversa, a primeira faixa é “Onde a dor não tem razão” (Paulinho da Viola / Elton Medeiros), que também abre o CD que o próprio Paulinho gravou em 1981. Outros artistas, obviamente, não deixariam de gravar essa canção, que também está em “Pra fugir da saudade – canções de Paulinho da Viola”, de 2000, de Célia e Zé Luiz Mazziotti, e em “Teresa Cristina e Grupo Semente – a música de Paulinho da Viola 2”, de 2002. Que bela canção! Tudo a ver Ozzellin ter gravado essa pérola, que é uma das mais lindas entre todas as belezas compostas por Paulinho. Ozzellin tem a mesma nobreza e o mesmo requinte do filho do “seu” César Farias, lendário músico e fundador do “Época de Ouro”, extraordinário conjunto musical. E a gravação está leve, leve, como deve ser: “Canto pra dizer que no meu coração / Já não mais se agitam as ondas de uma paixão / Ele não é mais abrigo de amores perdidos / É um lago mais tranquilo, onde a dor não tem razão (...)”.  
“Volta por cima”, a segunda faixa, é do Paulo Vanzolini, músico paulista falecido recentemente. Foi gravada por inúmeros intérpretes e é extremamente conhecida. Desconheço alguém que não conheça pelo menos estes versos: “Levanta, sacode a poeira / E dá a volta por cima”. Assim, acaba sendo um desafio para qualquer intérprete regravá-la. Como fazer diferente depois de tantas interpretações, sendo muitas geniais? O que a maioria dos cantores faz é “requentar” a gravação que consideram a melhor e acabam, não raro, parecendo “cantores de churrascaria”. Ozzellin, ao contrário, conseguiu criar a “sua” “Volta por cima”. Ficou sensacional. É só ouvir e comprovar. Com andamento mais lento, a gravação ficou um primor. Irretocável. Já entrou para a galeria das melhores interpretações desse clássico.
“Pra ter seu bem querer”, que vem em seguida, é de Bena Lobo, mais um talentoso integrante do clã “Lobo” (é filho de Edu e neto de Fernando), e de Moyséis Marques. Com referências a elementos do Candomblé (ou da Umbanda), a canção, iluminada, traz de volta o universo da inesquecível Clara Nunes, uma das maiores intérpretes que este país já conheceu e o maior nome feminino do samba até hoje. Ozzellin, nessa faixa, esbanja ritmo e musicalidade, deixando muitos bambas antigos comovidos: “(...) Pra ter seu bem querer / Pus pé no teu congá / Com a bênção dos tambores de Oxalá (...)”.  
E o que dizer de “Último desejo”, a quarta faixa e, talvez, a mais conhecida entre as inúmeras canções do inesquecível Noel Rosa? Com certeza, Aracy de Almeida, a “Dama do Encantado” e a grande intérprete de Noel, de onde estiver, aplaudiu Ozzellin ao ouvi-lo interpretar, com “autoridade na palavra”, os conhecidíssimos versos do “Poeta da Vila”: “Nosso amor que eu não esqueço / E que teve o seu começo / Numa festa de São João / Morre hoje sem foguete / Sem retrato e sem bilhete / Sem luar, sem violão (...)”.
Wilson Moreira e Nei Lopes, compositores da quinta faixa, “Sandália amarela”, são dois bambas dos mais conceituados. Respeitadíssimos, são lembrados por dez entre dez pessoas que sabem que “o bom samba é uma forma de oração”, como diria Vinicius, ou que “batuque é um privilégio” e que “ninguém aprende samba no colégio”, como profetizou Noel. Ozzellin sabe disso e comprova-nos que, de fato, o talento está na alma. Quando o ouvimos cantar “eu dei a ela / um par de sandálias / da cor do meu chapéu de palha (...)”, é inevitável não cantarmos junto com ele. O ritmo é contagiante, e a voz, e que voz!, é um presente de Deus.
“Paulista”, de Eduardo Gudin e J. C. Costa Netto, é a próxima faixa e, a meu ver, a mais bela do CD. Foi “amor à primeira ouvida”. Com ela, "vamos" à Paulista” imediatamente. Mais: na segunda parte, há a participação luxuosa do Carlos Navas, outro intérprete extraordinário que quase sussurra a letra, tornando-a mais bela ainda. Ao ouvir essa faixa, tenho vontade de cobrir-me com uma manta bem quentinha e ficar pensando somente no que de mais belo a vida tem: “(...) Você sabe quantas noites eu te / procurei / Nessas ruas onde andei / Conta onde passeia hoje esse seu olhar (...)”. As vozes, nessa faixa, são o “colo, o berço, o braço quente em torno ao meu pescoço” de que nos fala o poeta português Fernando Pessoa. Ao ouvi-la, a vontade é de sair abraçando todo o mundo. Beleza rara essa gravação.
E “Apaga o fogo, Mané”, a sétima faixa? Do impagável Adoniran Barbosa, considero-a uma das mais bonitas narrativas em versos que já “vi” e ouvi. Adoniran, com sua inteligência ímpar, consegue chegar tão perto, mas tão perto, que é impossível não gostar de toda a sua obra. E Ozzellin, com seu crivo exigente, soube escolher uma das melhores criações do “Poeta do Bexiga”. Ao lado de “Prova de carinho”, “Apaga o fogo...” é uma das mais comoventes criações do Adoniran. Dando a interpretação exata, Ozzellin consegue “nos” passar – com perfeição – a tristeza do eu poético ao constatar, depois de encontrar um papel “bem perto do fogão”, que sua Inês saiu para não mais voltar. Quem é apenas cantor, por mais que a voz seja exuberante, não consegue isso. É preciso interpretar, adentrar o universo da canção, conhecê-la e convencer-se de que o que a letra e a melodia dizem também é parte da vida do intérprete. Por isso, ele, o intérprete, sente-a, e ela, a canção, passa a ser sua também. Convencidos, nós, o público, sabemos que estamos, de fato, diante de um grande intérprete. Bingo!
“Leguidibá”, a faixa número oito, é outra de autoria de Nei Lopes, mas em parceria com Magno Souza Maurílio de Oliveira e que também revisita elementos africanos, muito presentes em inúmeros sambas. Vale lembrar que Nei Lopes, além de extraordinário compositor, é também estudioso da cultura “afro-brasileira”. E a faixa é um encanto. É uma viagem a ritmos, a sons ancestrais conduzidos pela voz maviosa de Ozzellin.
A nona faixa, “Estação derradeira” (Chico Buarque), também é um dos mais primorosos momentos do CD. Quando a ouvi pela primeira vez (“Francisco”, 1987), com o próprio Chico, gostei de ver nosso Buarque “soltando a voz”: “Quero ver a Mangueira/ Derradeira estação / Quero ouvir sua batucada, ai, ai”. Mais tarde, outros intérpretes voltaram a essa joia, como Cida Moreyra (“Cida Moreyra canta Chico Buarque”, 1992), Leny Andrade (“Songbook Chico Buarque vol. 7”, 1997/99) e Zé Luiz Mazziotti (“Canções de Chico Buarque na interpretação de Zé Luiz Mazziotti”, 2003). Em 1995, em “Tantas palavras”, Chico revisitou-a. Agora, chegou a vez de Marcos Ozzellin pôr sua chancela nessa essa obra-prima de Buarque... e o fez com brilho ímpar.
Fechando o CD (que pena!), chegam-nos Geraldo Filme e sua “Tradição – vai no Bexiga pra ver”, lindamente registrada por Beth Carvalho em “Beth Carvalho canta o samba de São Paulo”, primoroso disco de 1991, gravado ao vivo no SESC Pompeia, SP. E por falar em Geraldo Filme, lembrei-me de um “comentário” de nossa inesquecível Elis Regina em “show” no Anhembi (“Elis ao vivo”, Velas, 1995). A “Pimentinha” nos fala do “grande e esquecido, sempre esquecido compositor paulista”. Pois é, “desde Adoniran Barbosa a Paulo Vanzolini”, como ela diz, “o compositor paulista é o grande esquecido nos grandes momentos da Música Brasileira”. Ozzellin, em “Intersecção”, que é um grande momento da MPB, trouxe esse compositor de volta, valorizou-o. Juntou-o com os “cariocas” e provou que a linguagem do bom samba é uma só, independentemente do local onde ele tenha nascido. E a gravação ficou excelente. O coro, simulando conversas num botequim, leva-nos imediatamente ao Bexiga, que, apesar de ser “só arranha-céu” hoje em dia, continua encantador, como é a Lapa, reduto de Ozzellin, sucesso absoluto da casa “Rio Scenarium”.
Pois é, depois de ouvirmos o “Intersecção” (e também “O samba transcendental de Marcos Ozzellin”, seu primeiro CD), constatamos que Ozzellin, esse intérprete/cantor excepcional, pertence à “estirpe gentil” de que nos fala Nélida Piñon. Espero que esse “Intersecção” seja somente o segundo de uma série de “gestos delicados” desse moço nobre, elegante e talentoso que conheci nos “shows” de Ithamara Koorax, sua madrinha musical. Marcos, meu querido, muitíssimo obrigado! Você é um príncipe, assim como Paulinho da Viola. Um príncipe da Música Popular Brasileira da melhor qualidade.

1.     Referência ao espetáculo “O importante é que nossa emoção sobreviva”, título extraído da letra da canção “Mordaça”, de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro.

                                                                SANTO DIA
Eduardo Gudin / Paulo César Pinheiro

A vida é só magia
Quem foi feliz sabia
Viver é preparar
A paz de todo santo dia
Uma canção me guia
Minha emoção vigia
E a minha direção
É o instinto do meu coração...
Ninguém nasceu
Pra lamentar
Na sua meta
Deus fez o poeta
Pra gente poder sonhar
Um verso é bom pra consolar
E um samba triste
Também só existe
Meu bem, pra ninguém chorar

Fonte: CD "Tudo o que mais nos uniu". Eduardo Gudin, Márcia e Paulo Cesar Pinheiro. Velas, 1996.


                                                     ESTAÇÃO DERRADEIRA
Chico Buarque

Rio de ladeira
Civilização encruzilhada
Cada ribanceira é uma nação

À sua maneira
Com ladrão
Lavadeiras, honra, tradição
Fronteiras, munição pesada

São Sebastião crivado
Nublai minha visão
Na noite da grande
Fogueira desvairada

Quero ver a Mangueira
Derradeira estação
Quero ouvir sua batucada, ai, ai

Rio do lado sem beira
Cidadãos
Inteiramente loucos
Com carradas de razão

À Sua maneira
De calção
Com bandeiras sem explicação
Carreiras de paixão danada

São Sebastião crivado
Nublai minha visão
Na noite da grande
Fogueira desvairada

Quero ver a Mangueira
Derradeira estação
Quero ouvir sua batucada, ai, ai

Fonte: HOLLANDA, Chico Buarque de. Tantas palavras / Chico Buarque. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.


ÚLTIMO DESEJO
Noel Rosa

Nosso amor que eu não esqueço
E que teve o seu começo
Numa festa de São João
Morre hoje sem foguete
Sem retrato e sem bilhete
Sem luar, sem violão

Perto de você me calo
Tudo penso e nada falo
Tenho medo de chorar
Nunca mais quero seu beijo
Mas meu último desejo
Você não pode negar

Se alguma pessoa amiga
Pedir que você me diga
Se você me quer ou não
Diga que você me adora
Que você lamenta e chora
A nossa separação
E às pessoas que eu detesto
Diga sempre que eu não presto
Que meu lar é o botequim
Que eu arruinei sua vida
Que eu não mereço a comida
Que você pagou pra mim.

Fonte: NOEL ROSA PELA PRIMEIRA VEZ. CD 11. Velas. Rio de Janeiro, 2000.


PAULISTA
Eduardo Gudin / J. C. Costa Netto

Na Paulista os faróis já vão abrir
E um milhão de estrelas prontas pra invadir
Os jardins
Onde a gente aqueceu
Numa paixão
Manhãs frias de abril

Se a avenida exilou seus casarões
Quem reconstruiria nossas ilusões
Me lembrei
De contar pra você nessa canção
Que o amor conseguiu

Você sabe quantas noites eu te procurei
Nessas ruas onde andei
Conta onde passeia hoje esse seu olhar
Quantas fronteiras ele já cruzou
No mundo inteiro de uma só cidade

Se os seus sonhos emigraram sem deixar
Nem pedra sobre pedra
Pra poder lembrar
Dou razão
É difícil hospedar no coração
Sentimentos assim

Fonte: Eduardo Gudin & Fátima Guedes - voz e orquestra. Luzes da mesma luz. Dabliú Discos. DB 0102.