segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

NANA





A MINHA VALSA ("La valse des lilas")
Michel Legrand / Edmond David Bacri - Versão: Ronaldo Bastos

Quem tentou viver assim que nem você 
Trocou o sim por causa de um talvez 
Sem ter ninguém 
E sem um pouco mais que uma tristeza 

Por algumas folhas de melancolia
Você fechou o livro que se abria
E acreditou que tudo tinha fim

Mas todo lilás, tudo que faz viver 
Não cessará, não cessará jamais
De se abrigar nos corações que se amam
Se amam, se amam, se amam

Céu que vai mudar
Que vai mudar o céu
Até jorrar, até jorrar o mel
O amor será, o amor trará canções 
Mais uma vez aos nossos corações



             NANA
             Por Fábio Brito 

     Em "Há sempre um nome de mulher", álbum duplo lançado em 1987, Ricardo Cravo Albim, crítico e historiador musical, diz, num dos encartes, que Nana Caymmi "é intérprete visceral, na tradição feiticeira de Billie Holliday ou Anita O'Day, fazendo de sua voz um raro instrumento, cálido e intempestivo". 
        Pelas palavras de Cravo Albim, dá para imaginar a real estatura de Nana Caymmi no cenário da MPB: nada menos que gigantesca. A primogênita do patriarca Dorival Caymmi é,  desde que surgiu, há mais de cinquenta anos, uma das grandes damas da canção. Ela é uma das maiores intérpretes deste país.
      O primeiro disco da Nana que comprei foi o "Chora, brasileira", lançado em 1985, uma década depois de eu ter comprado meus primeiros discos de outras cantoras, como Gal, Bethânia e Clara Nunes, por exemplo, que, assim como Nana, também figuram entre minhas preferidas. Embora eu já conhecesse Nana e admirasse suas interpretações e seu trabalho irretocável, seus discos, assim como os da Elis, não eram facilmente encontrados em minha cidade. Com fama de elitista (como a "Pimentinha" depois do "Fino da Bossa"), Nana era uma cantora que não chegava a um grande público. É possível que venha daí parte da dificuldade para encontrar seus discos.    
      Voltemos ao "Chora, brasileira", disco cujo título é o nome da canção de Fátima Guedes (em parceria com Rosane Lessa e Djalma) que abre o lado B dessa obra de arte. Até hoje, nem sei como tive a sorte de encontrar esse disco numa das lojas de minha pequena "Kaxu". Foi minha mania incessante de visitar lojas de discos (eu era viciado mesmo...) que me levou ao prazer de ter, enfim, um disco da Nana. Um sensível dono de loja, pensei, resolveu vender discos dessa intérprete excepcional. Em minha vitrola, ouvi-o sem parar. Todas as faixas, que são excelentes, foram "amor à primeira ouvida". 
A faixa que abre o disco é "Não me conte", também da Fátima Guedes. Segundo Dori Caymmi, a interpretação de Nana para essa canção é prova de que "ninguém vai cantar melhor do que a Nana nunca". Não me arrisco a dizer mais nada sobre a faixa. Alguém se atreve?
        Sobre "Copacabana" (João de Barro / Alberto Ribeiro), a quarta faixa do labo B (estou falando em LP), há uma história interessante: dizem que D. Stela Caymmi, mãe de Nana, lembrando a suavidade com que Dick Farney interpretou essa canção, achou a gravação da filha um tanto "agressiva". Para Nana, ela apenas pôs a voz para fora. Para mim, ficou excelente. 
        Outra faixa sensacional é "Retrós" (Jota Maranhão / Moacyr Luz), cuja letra é, para mim, uma das mais bonitas do disco.  Associando elementos do universo da costura - como retrós, linha, pano, presilha, remendo, nesga, debrum - a arrependimento, amor, rancor e saudade, por exemplo, o letrista criou um belo poema em que "saudade e rancor são do mesmo pano". Duvidar? Quem há de? Só a eternidade de um amor pode revelar isso e só a eternidade da voz da Nana é capaz de emoldurar tanta verdade e tanta intensidade. 
        E por falar em belas letras, eis que temos outra preciosidade nesse quesito: "Flor das estradas" (Dori Caymmi / Paulo César Pinheiro). Como não ficar boquiaberto com versos como estes: "(...) O som que crescia na rua / Durante o esplendor da alvorada / Não vinha da luz nem da cor / Mas sim da alma do trovador / Bordada de estrela e de lua / A andar por aí toda nua / Cantando seu cântico ameno (...)"? Não poderia existir nada melhor que a voz de Nana para estar a serviço de tanta poesia... 
         "Derradeira primavera" (Tom Jobim / Vinicius de Moraes), já gravada no disco de estreia de Nana, lançado em 1965, e "A minha valsa/La valse des lilas (Michel Jean Legrand/Edmond David Bacri - versão de Ronaldo Bastos), ambas com arranjo do Michel Legrand, mostram uma Nana no ápice da emoção. A voz não poderia estar melhor: totalmente entregue aos mais profundos sentimentos. Pura comoção ouvi-las. É a tal história: a voz de Nana é tão especial e tão livre, que ela consegue vivificar dores e amores com a mesma carga interpretativa.        
          Outra faixa que merece loas e mais loas é "Último desejo" (Noel Rosa), que, assim como a de Nana, recebeu, ao longo dos anos, gravações irrepreensíveis, como a de Araci de Almeida, uma das melhores intérpretes do "Poeta da Vila".
          "Longe" (Danilo Caymmi/Ronaldo Bastos), "Promissória" (Aldir Blanc/César Camargo Mariano/Marco Aurélio), "Paralelo a Neruda" (Cláudio Cartier/Paulo César Feital) e "Vício de amor" (Márcio Proença/Marco Aurélio) completam o álbum e, como as demais, são tocantes e comoventes ao extremo.  
          Neste instante, penso também em gravações da Nana (penso em todas as gravações da Nana!) que estão noutros discos e tento buscar algumas que me tocam profundamente (e todas me tocam profundamente!), como "Sentinela" (Milton Nascimento/Fernando Brant), que está no álbum de mesmo nome que Bituca gravou em 1980. Quem não se comove ouvindo essa gravação está precisando, ouso dizer, de algum tratamento. Que vozes! 
          E o que dizer de "Resposta ao tempo" (Aldir Blanc/Cristovão Bastos), que batiza o disco lançado em 1998? Nana tomou-a para si. A letra dispensa comentários: é uma das melhores que já vi. Blanc, como sempre, está altamente inspirado. A melodia também é sensacional. Com essa canção, tema de abertura da minissérie "Hilda Furacão", Nana conquista o "disco de ouro". É muito bom ver o que tem qualidade vender. Seria ótimo se, neste país e no mundo, nunca houvesse divórcio entre qualidade e vendagem. Vale ressaltar que, antes de "Resposta ao tempo", outra interpretação da Nana já tinha sido tema de abertura de uma minissérie: em 1982, "Se queres saber" (Peterpan), antigo sucesso de Emilinha Borga, caiu nas graças do povo brasileiro quando foi ao ar "Quem ama não mata". 
          "Saudade de amar" (Dori Caymmi/Paulo César Pinheiro) é uma das canções que mais ouço. No documentário "Rio Sonata", há um momento em que a própria Nana, jogando cartas com alguns amigos e tendo ao fundo essa canção, comenta: "PQP, que música!" Já nem sei mais quantas vezes ouvi essa canção, que está no disco "Desejo", lançado em 2001. 
            Certa vez, uma amiga estava em minha casa e, conversando sobre algumas intérpretes que admiro, pedi que ela parasse para ouvir a interpretação da Nana para "No Analices" (do Cláudio Cartier / Paulo César Feital), que está no disco lançado em 1979, batizado de "Nana Caymmi". Antes que a canção chegasse ao fim, minha amiga já estava em prantos. Chorando mesmo. De repente, ela me pergunta: "- De onde vem essa voz?" Não tive outra resposta a não ser dizer que vinha do fundo da alma. Em se tratando de Nana Caymmi, a voz só poderia vir mesmo... do fundo da alma. Por meio do choro de minha amiga e das inúmeras vezes em que já chorei ouvindo a Nana, fica muito claro para mim que, em Nana, os sentimentos estão sempre à flor da pele. 
      Nossa! São muitas as gravações da Nana que eu podeira elencar como antológicas. Muitas mesmo! Eu teria de dispor de horas e horas para relacioná-las (e comentá-las). Além das que já citei (e comentei), atrevo-me a relacionar mais algumas, como "Cais" (Milton Nascimento / Ronaldo Bastos), "Era tudo verdade" (Dudu Falcão), "Outra tarde" (Márcio Proença / Marco Aurélio), "Mudança dos ventos" (Ivan Lins / Vitor Martins), "Meu silêncio" (Cláudio Nucci / Luiz Fernando Gonçalves), "Fruta boa" (Milton Nascimento / Fernando Brant), "Segue o teu destino" (Sueli Costa / Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa), "Eu te amo" (Sueli Costa / Cacaso), "Velho piano" (Dori Caymmi / Paulo César Pinheiro), "Razão de viver" (Eumir Deodato / Paulo Valle), "Déjame ir" (Chico Navarro / Mike Ribas), "Direto no coração" (Tavynho Bonfá / Ivan Wrigg), "Não se esqueça de mim" (Roberto Carlos / Erasmo Carlos), "Amargura" (Radamés Gnattali / Alberto Ribeiro), "Depois do Natal" (João Donato / Lysias Ênio / João Mello), "Só louco" (Dorival Caymmi), "Ternura antiga" (J. Ribamar / Dolores Duran), "Não posso me esquecer do adeus" (Caetano Veloso), "Desenredo" (Dori Caymmi / Paulo César Pinheiro), "Boca a boca" (Milton Nascimento / Fernando Brant), "Tens" (Ivan Lins / Ronaldo Monteiro), "Meu menino" (Danilo Caymmi / Ana Terra), "Por causa de você" (Tom Jobim / Dolores Duran), "Contigo em la distancia" (C. Portillo de la Luz), "Desde ontem" (Dorival Caymmi), "Adeus" (Dorival Caymmi), "Saudade" (Dorival Caymmi / Fernando Lobo), "Senhorinha" (Guinga / Paulo César Pinheiro), "Caju em flor" (João Donato / Ronaldo Bastos)...             
            Como bem disse seu irmão Dori, Nana "gosta de cantar o que ela gosta de cantar". Ou seja, não se verga ao que ditam as gravadoras. Essa história de modismos não é com ela. Por isso, segue fazendo só o que quer, ignorando o gosto duvidoso que assola o país e não dando a mínima para o que as gravadoras impõem. É a própria Nana quem diz, num de seus shows, que "(...) ninguém quer música de qualidade (...)". Diz, inclusive, que há compositores excelentes por aí que "passam batido". Cita, por exemplo, Cristovão Bastos, que se tornou seu maestro desde o início dos anos 90.
            Assim como Piaf, Maysa, Elis, Elizeth, Billie Holiday e Dalva de Oliveira, Nana vive o que canta. Há um vídeo no YouTube, por exemplo, em que ela interpreta "Contrato de separação" (Dominguinhos/Anastácia) e, literalmente, chora, tamanha é a emoção de que é tomada. Sempre choramos junto com você, Nana, seja qual for a canção. Muito obrigado. 


SAUDADE DE AMAR
(Dori Caymmi / Paulo César Pinheiro) 

Saudade daquele romance que a gente viveu 
Saudade do instante em que eu te encontrei
Saudade do imenso desejo que a gente perdeu 
Eu tenho é muita saudade do tempo em que amei 

Saudade da força que tinham meus olhos nos teus
Eu vivo à mercê das lembranças depois desse adeus 

A gente não deve
Sofrer por amor tanto assim
Porém, todo amor, mesmo breve,
Eu guardo bem dentro de mim

Saudade de cada momento que eu lembro de cor
Só sabe de amor e saudade quem já ficou só

Saudade, eu tenho saudade
Mas não de contigo voltar 
Eu vivo sentindo saudade
 De amar 



RESPOSTA  AO  TEMPO
Aldir Blanc - Cristovão Bastos

Batidas na porta da frente
É o tempo

Eu bebo um pouquinho
Pra ter argumento

Mas fico sem jeito,
Calado, ele ri
Ele zomba
Do quanto eu chorei
Porque sabe passar
E eu não sei

Num dia azul de verão

Sinto o vento
Há folhas no meu coração
É o tempo

Recordo um amor que perdi
Ele ri
Diz que somos iguais
Se eu notei
Pois não sabe ficar
E eu também não sei

E gira em volta de mim
Sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro
Sozinhos

Respondo que ele aprisiona
Eu liberto
Que ele adormece as paixões
Eu desperto

E o tempo se rói
Com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor
Pra tentar reviver

No fundo é uma eterna criança
Que não soube amadurecer
Eu posso, ele não vai poder
Me esquecer




Sons de céus e abismos
José Miguel Wisnik
Especial para a  FOLHA , em 22-12-96


Há vozes que têm uma nitidez de cristal, flautas mágicas que nos fazem sentir a forma da onda em estado puro. A pureza da voz de Nana Caymmi, no entanto, é de outra natureza - mais pincelada da alma do que desenho linear da melodia. Há momentos em que ela parece a cauda de um cometa cheio de harmônicos, rastro brilhante de partículas suspensas carregando em si um turbilhão inacreditável de microtons, que risca o céu da solidão.
Quando Nana canta o "Último Desejo", de Noel, por exemplo na frase "se você me quer ou não": esse "não", que dura uma eternidade, vai perdendo e ao mesmo tempo ganhando intensidade, enquanto sofre mutações timbrísticas sutilíssimas que parecem conseguir contar uma história de amor indizível e inteira em uma única sílaba. O efeito parece o de uma "folha seca", à maneira mesma do futebol: a nota vem forte e subitamente "perde peso". Mas muitas vezes cai em volume enquanto sobe em altura, porque é cheia de céus e abismos.
Posso tentar comparar também com a onda do mar de Caymmi: a voz de Nana não é um rio, é a foz onde a água doce se encontra com a salgada, onde o "ronco das ondas" vira subitamente espuma e onde o mar se funde com esses veios frescos que se comunicam com o interior secreto do amor, do Brasil. A alma solitária abraça o mundo (Ronaldo Bastos me disse que a chama pelo apelido, que me parece simbolicamente correto, de "Mamãe").
Estou pensando no "Beijo Partido", de Toninho Horta, em "Vire Essa Folha do Livro", de Vinícius de Moraes (onde acontece tudo que eu tentei descrever aqui e mais alguma coisa), no "E eu sem Maria", que está no songbook de Dorival Caymmi, no "A noite do meu bem", de Dolores Duran, na maravilhosa "Segue o teu destino", que Sueli Costa fez para um poema de Ricardo Reis/Fernando Pessoa, e onde Nana nos faz divinos quando canta finalmente: "Os deuses são deuses/ porque não se pensam".