domingo, 29 de abril de 2012

"LICORES NA MORINGA E ALECRINS NO CANAVIAL"



Postagem dedicada ao amigo José Manuel Douradinha. A quem mais eu poderia dedicar maravilhas portuguesas... e brasileiras? Todos os textos são para você, meu amigo, que tanto admiro e respeito.

GENTE QUE VEM DE LISBOA

Tavinho  Moura e Fernando Brant

Gente que vem de Lisboa
Gente que vem pelo mar
Laço de fita amarela
Na ponta da vela
No meio do mar

No nevoeiro, na ventania
Navegar
Tempestade enfrentar
Parece um brinquedo,
Navio no mar
Ô marinheiro, eu quero porto
Quero cais
"Té" a terra avistar
A gente só escuta o lamento da...
Gente que vem de Lisboa
Gente que vem pelo mar
Laço de fita amarela
Na ponta da vela
No meio do mar

Terra boa, de sol bendito
Quanta luz
Vai chamar-se Brasil
São rios e são matas
Manhãs de abril
Ô marinheiro, que maravilha de lugar
Por aqui vão crescer os frutos
Os amores e filhos da...
Que vem de Lisboa
Gente que vem pelo mar

Fonte: "Cativante", Tadeu Franco, PolyGram, 815 287-2, 1983.


PORTUGAL, MEU AVOZINHO
Manuel Bandeira 
 Poema musicado por Moraes Moreira

Como foi que temperaste,
Portugal, meu avozinho,
Esse gosto misturado
De saudade e de carinho?



Esse gosto misturado
De pele branca e trigueira,
- Gosto de África e de Europa,
Que é o da gente brasileira?



Gosto de samba e de fado,
Portugal, meu avozinho,
Ai Portugal que ensinaste
Ao Brasil o teu carinho!



Tu de um lado, e do outro lado
Nós… No meio o mar profundo…
Mas, por mais fundo que seja,
Somos os dois um só mundo.



Grande mundo de ternura,
Feito de três continentes…
Ai mundo de Portugal,
Gente mãe de tantas gentes!



Ai Portugal de Camões,
Do bom trigo e do bom vinho,
Que nos deste, ai avozinho,
Este gosto misturado,
Que é saudade e que é carinho!




FADO TROPICAL 
Chico Buarque - Ruy Guerra/1972-1973
Para a peça Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra
Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro abril
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

“Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo...(além da
sífilis, é claro)*
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..."

Com avencas na caatinga
Alecrins no canavial
Licores na moringa
Um vinho tropical
E a linda mulata
Com rendas do Alentejo
De quem numa bravata
Arrebato um beijo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

"Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto

Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto

Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadura à proa
Mas o meu peito se desabotoa

E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa..."

Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre Trás-os-Montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial
* trecho original, vetado pela censura
                    
                       

TANTO MAR 
Chico Buarque
 
1975
(primeira versão)*



Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim


* Letra original,vetada pela censura; gravação editada apenas em Portugal, em 1975.  
1978
(segunda versão)


Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
E inda guardo, renitente
Um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto do jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim
Fonte:   http://www.chicobuarque.com.br/construcao/index.html

IDA E VOLTA EM PORTUGAL
Olival de prata,
veludosos pinhos,
clara madrugada,
dourados caminhos,
lembrai-vos da graça
com que os meus vizinhos,
numa cavalgada,
com frutas e vinhos,
lenços de escarlata,
cestas e burrinhos,
foram pela estrada,
assustando os moinhos
com suas risadas,
pondo em fuga cabras,
ventos, passarinhos...

Ai, como cantavam!
Ai, como se riam!

Seus corpos – roseiras.
Seus olhos – diamantes.

Ora vamos ao campo colher amoras
e amores!
A amar, amadores amantes!

Olival de prata,
veludosos pinhos,
pura Vésper clara,
silentes caminhos,
lembrai-vos da pausa
com que os meus vizinhos
vieram pela estrada.
Morria nos moinhos
o giro das asas.
Ventos, passarinhos,
árvores e cabras,
tudo estacionava.
As flores faltavam.
Sobravam espinhos.

Ai, como choravam!
Ai, como gemiam!

Seus corpos – granito.
Seus olhos – cisternas.

Este é o campo sem fim de onde
não retornam
ternuras!
Entornai-vos, ondas eternas!
MEIRELES, Cecília. Vaga música.

DISPERSÃO
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que sonhei!... )

E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...

Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...


SÁ-CARNEIRO, Mário de. Obras completas - poesias. Lisboa: Ática. s/d

AUSÊNCIA
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Poemas escolhidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.



AMAR!
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui…além…
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente….
Amar!Amar! E não amar ninguém!


Recordar? Esquecer? Indiferente!…
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!


Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!


E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder… pra me encontrar…


ESPANCA, Florbela. Poemas. São Paulo: Martins Fontes, 1996.


OS GRITOS DE GIORDANO BRUNO

Afinal, não é muito grande a diferença que há entre um dicionário de biografias e um vulgar cemitério. As três linhas secas e indiferentes com que na maior parte dos casos os dicionaristas resumem uma vida são o equivalente da sepultura rasa que recebe os restos daqueles que (perdoe-se o trocadilho fácil) não deixam restos. A página cheia, com autógrafo e fotografia, é o mausoléu de boa pedra, portas de ferro e coroa de bronze, mais a romagem anual. Mas o visitante fará bem em não se deixar confundir pelos alçados de arquitecto, pelas esculturas e cruzes, pelas carpideiras de mármore, por todo o cenário que a morte pomposa desde sempre aprecia. Igualmente deverá dar atenção, se está em campo aberto, sem referências, ao sítio onde põe os pés, não vá acontecer que debaixo dos seus sapatos se encontre o maior homem do mundo.
Não estará, porém, a pisar a sepultura de Giordano Bruno, porque esse foi queimado em Roma, ardeu atrozmente como arde o corpo humano, e dele, que eu saiba, nem as cinzas lhe guardaram. Mas ao mesmo Giordano, para que todas as coisas fiquem nos lugares que lhes competem e justiça enfim se faça, foram reseervadas quatro linhas neste dicionário biográfico. Em tão pouco espaço, em tão poucas letras, ali, entre a data do nascimento (1548) e a data da morte (1600), balizas de um universo pessoal que viveu no mundo, pouco se diz: italiano, filósofo, panteísta, dominicano, deixou as ordens, negou-se a renunciar às suas ideias, foi queimado vivo. Nada mais. Nasce e vive um homem, luta e morre, assim, para isto. Quatro linhas, descansa em paz, paz à tua alma se nela acreditavas. E nós fazemos excelente figura entre amigos, em sociedade, na reunião, à mesa do restaurante, na discussão profunda, se deixamos cair adequadamente, de um modo familiar e entendido, a meia dúzia de palavras de que fizemos uma espécie de gazua ou chave falsa com que julgamos poder abrir uma vida e uma consciência.
Mas, para nosso desconforto, se estamos em hora e maré de lucidez, os gritos de Giordano Bruno rompem como uma explosão que nos arranca das mãos o copo de uísque e nos apaga dos lábios o sorriso intelectual que escolhemos para falar destes casos. Sim, é essa a verdade, a incómoda verdade que vem desmanchar o suave entendimento do diálogo: Giordano Bruno gritou quando foi queimado. O dicionário só diz que ele foi queimado, não diz que gritou. Ora, que dicionário é este que não informa? Para que quero eu uma biografia de Giordano Bruno que não fala dos gritos que ele deu, ali, em Roma, numa praça ou num pátio, com gente à roda, uns que ateavam o lume, outros que assistiam, outros que serenamente escreviam o auto de execução?
Demasiado esquecemos que os homens são de carne facilmente sofredora. Desde a infância que os educadores nos falam de mártires, dão-nos exemplos de civismo e moral à custa deles, mas não dizem quanto foi doloroso o martírio, a tortura. Tudo fica no abstracto, filtrado, como se olhássemos a cena, em Roma, através de grossas paredes de vidro que abafassem os sons, e as imagens perdessem a violência do gesto por obra, graça e virtude da refracção. E então podemos dizer, tranquilamente, uns aos outros, que Giordano Bruno foi queimado. Se gritou,  não ouvimos. E se não ouvimos, onde está a dor?
Mas gritou, meus amigos. E continua a gritar.

SARAMAGO, José. A bagagem do viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.


"Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu fizeram-no de carne. E sangra todo dia."

"A Globalização não suporta os direitos humanos."

"A palavra escrita está ali, como uma crisálida, à espera de que alguém a desperte."

José Saramago
TABACARIA
Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(...)
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
(...)
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho.
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
(...)

          A LITERATURA PORTUGUESA EM MIM
          Por Fábio Brito

          Na literatura, um país que presenteou o mundo com Pessoa, Camões e Saramago, por exemplo, poderia ter "deitado em berço esplêndido" e descansado, tamanha sua contribuição. A genialidade desses três é de encher de orgulho qualquer nação. No entanto, generosa que é, a nação portuguesa ofertou-nos mais "presentes": aí estão nomes importantíssimos que vão de Paio Soares de Taveirós a Lobo Antunes, passando por Gil Vicente, pelos historiadores de Alcobaça, Sóror Maria Alcoforado, Padre Antônio Vieira (luso-brasileiro), Bocage, Filinto Elísio, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Júlio Diniz, João de Deus, Eça de Queirós, Antero de Quental, Cesário Verde, Raul Brandão, José Régio, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Miguel Torga, Adolfo Casais Monteiro, Alves Redol, Augusto Abelaira, Fernando Namora, Florbela Espanca, Antônio Ramos Rosa, D. Sophia de Mello Breyner Andresen, Raul de Carvalho, Augustina Bessa-Luís, Maria Velho da Costa e chegando às literaturas africanas de língua portuguesa, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, que são, hoje, países independentes, mas que pertenciam ao antigo Ultramar português. Dessas nações, vêm mais "presentes": Ovídio Martins, Agostinho Neto, José Craveirinha, José Eduardo Agualusa e o "universal" Mia Couto.
          Meu primeiro contato com a literatura portuguesa deu-se ainda na década de 70, por meio dos textos de Pessoa presentes em discos e "shows" de Maria Bethânia, como o "Poema VIII de O guardador de rebanhos", que está em "Rosa dos Ventos - o show encantado", disco "ao vivo" de 1971, e em "Maricotinha ao vivo", de 2002. Mesmo sem saber nada do autor, o adolescente que eu era (ouvi "Rosa dos ventos" alguns anos depois de seu lançamento) ficou em estado de choque (pausa: que adolescente, hoje, fica em estado de choque diante de um poema?) ao conhecer versos pessoanos. Até hoje, e cada vez mais, tudo o que Pessoa fez é muito comovente para mim. Chego literalmente às lágrimas lendo-o no silêncio de qualquer cantinho em que eu possa meditar.
          Na década de 90, fui convidado para ministrar "literatura portuguesa" a alunos de Letras.  Meu Deus, o que mais poderia querer uma pessoa apaixonada por literatura? Nada, não é mesmo? E lá fui, com cara, coragem e a leitura de algumas obras portuguesas na bagagem, enfrentar a sala de aula (que eu já havia enfrentado anos antes, mas com outras disciplinas). Fui sem medo. Topei a empreitada, como dizem. E, graças aos deuses, deu tudo certo. Tem dado, até hoje, tudo certo. Tenho conseguido formar discípulos, o que é raro hoje em dia. No máximo, muitos conseguem formar apenas alunos.
          Depois de Pessoa, chegou a vez de eu admirar Gil Vicente, seus autos e suas farsas. Com ele, aprendi, de fato, que "rindo, castigam-se os costumes" (ridendo, castigat mores). Por meio do lema do teatro vicentino, estabeleceu-se para mim a certeza de que a via do humor é sempre o melhor caminho. Muito à frente de seu tempo (como todos os gênios), Gil Vicente mostrou-nos que a humanidade, muito tempo depois, não estaria tão diferente em termos de caráter e manifestação da fé. Ainda hoje, em pleno século XXI, continuam vendendo "um cantinho no céu" a muitas pessoas. Pior: continuam vendendo "Cristo" em qualquer esquina. A banalização e o comércio da fé são, infelizmente, marcas muito fortes deste início de século. Quer mais? Até hoje, todas as pessoas continuam não se considerando "merecedoras" da barca do inferno. Ninguém que conheço deixará de ir para o céu! E todos, sem exceção, têm uma explicação bem "convincente" para tal merecimento. Haja paciência!
          Na esteira, eis que me chega Camões, com sua épica e sua lírica igualmente desconcertantes. Com sensibilidade extrema, nosso Camões produziu Os lusíadas, com suas 1102 estâncias, distribuídas por dez cantos, unindo uma narrativa histórica e outra mitológica. Um fenômeno, sem dúvida! No canto III, por exemplo, encontramos o episódio de Inês de Castro, um dos mais líricos para mim, que teve, aqui no Brasil, um registro primoroso: ninguém mais, ninguém menos que Cacilda Becker representou Inês de Castro em um teleteatro exibido, há anos, pela TV Bandeirantes. Bons tempos! Toda a obra de Camões é primorosa. Um de seus mais conhecidos sonetos, o que nos diz que "amor é fogo que arde sem se ver", recebeu uma adaptação de Renato Russo, da banda Legião Urbana, que também recorreu ao texto bíblico. Assim, em 1989, Camões ganhou um considerável público, principalmente adolescente, aqui no Brasil. Até hoje, não há ninguém que não saiba cantarolar quase todos os versos de Monte Castelo: "(...) Amor é fogo que arde sem se ver / É ferida que dói e não se sente (...)".    
          Outro de meus momentos inebriantes foi o contato com a obra de D. Sophia de Mello. Ainda nos tempos de "aluno de Letras", essa autora chegou a mim com muita densidade. Lembro que, em 2008, quando meu pai faleceu, busquei consolo em seus Poemas escolhidos, selecionados por Vilma Arêas e publicados em 2004, ano em que "perdemos a menina do mar", como disse, à época, a também escritora Maria Velho da Costa. A eterna presença de meu pai ficou menos doída e mais bela com a ajuda de D. Sophia: "(...) Nenhuma ausência é mais funda do que a tua", "disse-me" ela. Lembro-me 'dele' constantemente, mas sempre com alegria... e saudades, é claro! Agora, nossa grande escritora deve, com muita certeza, estar voltando para "buscar os instantes que não" viveu "junto do mar". Outro de seus belos poemas, 25 DE ABRIL, é um dos mais comoventes e, como o próprio título anuncia, é sobre a Revolução dos cravos: "Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo".  
            Não faz muito tempo, cerca de quinze, dezesseis anos, veio a meu encontro a poesia estarrecedora de Natália Correia. Meu Deus! Dificílimo descrever tanta beleza. A defesa do poeta, por exemplo, é um de seus poemas mais conhecidos e um dos mais encantadores: "Sou um instantâneo das coisas / apanhadas em delito de paixão / a raiz quadrada da flor / que espalmais em apertos de mão. / (...) Ó subalimentados do sonho! / A poesia é para comer". É ou não é algo estarrecedor? O que há de "subalimentos do sonho" por aí... Dificílimo mensurar. Por falar em gente "subalimentada do sonho" e, por conseguinte, sem poesia", lembrei-me de um episódio envolvendo o "papa" da Bossa Nova, João Gilberto, relatado na livro Chega de saudade*, de Ruy Castro. Em rápida passagem pelo ambulatório de um hospital na Bahia, nosso João, ao olhar por uma das janelas da sala em que se encontrava, estava, como sempre, muito à frente de tudo, tanto que disse a uma das psicólogas com quem conversava que o vento estava descabelando as árvores. Recebeu como resposta que árvore não tem cabelo. Que erro! Da psicóloga, claro! Imediatamente, veio a resposta um tom acima do mestre João: "E há pessoas que não têm poesia". Essas pessoas que não têm poesia são, portanto, os "subalimentados do sonho". Por isso que D. Natália chegou para ficar... e para sempre... porque não podemos ficar subnutridos de poesia. Precisamos do sonho... "e é dele que vou viver / porque sonho não morre", como disse nossa Adélia Prado.
           Pois é, eu poderia ficar durante horas "infindas" relatando minha admiração e minha paixão  pelos escritores portuguesas. Infortunadamente, aqui, há pouco espaço. No coração e na alma, no entanto, haverá sempre um espaço imenso para muita literatura portuguesa. Para toda a literatura portuguesa. Pois que venham, então, Pessoa, Camões, Natália Correia, Eça, D. Sophia de Mello, Florbela Espanca, Sá-Carneiro e tantos outros.  

* CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

ADEMILDE, MILLÔR E CHICO




BRASILEIRINHO
Waldyr Azevedo 

O brasileiro quando é do choro
É entusiasmado quando cai no samba,

Não fica abafado e é um desacato
Quando chega no salão.

Não há quem possa resistir
Quando o chorinho brasileiro faz sentir,
Ainda mais de cavaquinho,
Com um pandeiro
e um violão
Na marcação.

Brasileirinho chegou e a todos encantou,
Fez todo mundo dançar
A noite inteira no terreiro
Até o sol raiar.
E quando o baile terminou
A turma
não se conformou:
Brasileirinho abafou!
Até o velho que já estava encostado
Neste dia se acabou!
Para falar a verdade, estava conversando
Com alguém de respeito
E ao ouvir o grande choro
Eu dei logo um jeito e deixei o camarada
Falando sozinho.

Gostei, pulei, dancei, pisei,
 Até me acabei
E nunca mais esquecerei o tal chorinho
Brasileirinho!


http://www.youtube.com/watch?v=x6LUKiqO5bU



O SENHOR DAS PALA VRAS
Por Luiz Costa Pereira Jr. e Marco Antonio Araujo
Millôr foi uma vítima da ortografia. Nasceu em 16 de agosto de 1923, no Rio, como Milton Viola Fernandes. Registrada depois (seu aniversário oficial é em 27 de maio de 1924), a certidão de nascimento foi grafada de tal jeito que o t de Milton parece um l seguido por um acento, e o n, um r. Assim, aos 17 anos, Milton soube que seu nome era Millôr.
Talvez por revanche, construiu uma carreira de rupturas com o português padrão, com voos de imaginação linguística que, a rigor, formam gramática própria. "Não passo um dia sem escrever." Fez de tudo: roteirista, ilustrador, dramaturgo, compositor, ator. Não bastasse, é tradutor de Shakespeare, Pirandello, Racine e outros clássicos em cujos idiomas foi autodidata. Seu raciocínio é tão ágil que as palavras se atropelam na voz gutural e o ar maroto dá um a mais de jovialidade à silhueta magra.
Na cobertura em Ipanema, sentado, olha uma jogada do brasileiro Kaká, pela TV. "O futebol é o raro reduto da glória com mérito". Como se uma coisa chamasse outra, fustiga o escritor Paulo Coelho: "Vende muito, mas é merecidamente desprezado porque faz uma merda de literatura". Ligamos rápido o gravador.
Língua - Fazer humor é levar a sério as palavras ou brincar com elas?
Humor, você tem ou não tem. Pode ser do tipo mais profundo, mais popular, mas tem de ter. Você vai fazendo e, sem querer, a coisa sai engraçada. Dá para perceber quando a construção é forçada. Tenho uma capacidade muito natural de perceber bobagem e destruir a coisa. É o que hoje o pessoal da informática chama de "processar". Você coleta um monte de dados e processa rapidamente, antecipando o movimento da outra pessoa. Às vezes, para dar certo, bastam mudanças simples. Ano passado, o pessoal da televisão me pediu uma saudação para o dia dos namorados. Ia negar o pedido quando me veio o estalo: fiz dois corações bem normais e pus em cima o texto "Dia dos namorados - Eu quero que eles se fodam". A frase grosseiramente ofensiva tornou-se logo carinhosa.
Há quem diga que trocadilhos, como os que o tornaram famoso, são uma forma infantil de humor.
Na verdade, a frase clássica é "a forma mais baixa de humor". Quem diz isso não sabe o que diz. Um Shakespeare não existe sem trocadilho. Nem Cristo, e é só lembrar o reino que veio depois do "Pedro, tu és pedra". O cristianismo está todo fundado num trocadilho. O trocadilho foi a verdadeira graça de Deus.

Como você começou a fazer tradução?
Um tio meu, Antonio Viola, era chefe da gráfica de O Jornal, e me pegou um desenho, levou lá e depois me veio com dinheiro pago por ele. Em 1938, comecei na revista O Cruzeiro. Na época, os quadros eram pobres e todo mundo fazia de tudo. Fui contínuo, armador, ilustrador. E descia até a oficina pra mexer na linotipo [antiga máquina de composição gráfica]. Uma das minhas tarefas era dar conta das tiras em quadrinhos estrangeiras. Levava o dicionário e traduzia as legendas, botava as letras nos balões e isso era uma das dez coisas que eu fazia. Para traduzir um negócio qualquer, ia de 10 a 20 vezes ao dicionário. Aprendi a fazer tradução porque me encomendaram e foi assim desde então.
Como assim?
Sempre fui movido por forças exógenas, exteriores. Por minha iniciativa, fiz só uma exposição de desenhos, em 1957, no MAM, e uma peça de teatro em 1963, Flávia, Cabeça, Tronco e Membros. Todo o resto que fiz foi a pedido. O primeiro livro que traduzi foi Dragon Seed, de Pearl S. Buck, com o título A Estirpe do Dragão, em 1942. Nunca me senti tão roubado na vida, pois você traduz 300 páginas por uma mixaria. O livro era assinado por outros. Eu era um "laranja". No teatro, era diferente, a remuneração, tudo era vinculado à bilheteria. Assim, uma peça fracassa, a segunda vai melhor e de repente a terceira compensa todo o esforço.
Como foi seu aprendizado da língua? A escola ajudou ou atrapalhou?
Tive a grande sorte de trabalhar na imprensa com menos de 14 anos, em 1938. Havia deixado de estudar aos 10 [por causa da morte da mãe; o pai perdera quando tinha 1 ano de idade]. No primário, aprendi a gostar de estudar e a ler por causa de uma professora, Isabel Mendes. Nunca esqueci o dia em que ela me ensinou a ver as horas. Eu saía pelos corredores de olho nos relógios. Fiquei espantado em ver que um marcava 8 horas e o seguinte, 8h05. Foi quando percebi aquilo de mais banal na vida, a consciência de que o tempo está sempre à sua frente, faça você o que fizer. Passei dois ou três anos sem estudar. Quando eu ganhei o primeiro dinheiro, fui estudar no Liceu de Artes e Ofícios - curso de cinco a seis anos, que não cheguei a concluir porque já era "famoso" à época - com 20 anos já ganhava o maior salário da imprensa. Portanto, devo ter saído do colégio aos 18 anos. Portanto, tudo o que aprendi foi no primário. Depois de um primário sólido, você pode ser um autodidata. Foi a professora Isabel Mendes quem me ensinou a coisa mais importante em didática - a gostar de estudar.
Gostava de ler nessa época?
Não tinha livros em casa. Havia umas novelas da editora Vecchi, folhetins pra cozinheiras e domésticas. Eles mandavam dois ou três exemplares em cada endereço e, se a pessoa gostasse, mandavam cobrar as edições seguintes. Eram títulos muito melodramáticos, como Córsega em Chamas, Fausta Vencida, Nunzio Romanetti, ou policiais. Quando comecei a estudar na cidade, passei a ir com mais frequência à Biblioteca Nacional. Ficava muito irritado quando havia feriado e a biblioteca fechava, pois ficava sem ler.
Com que língua mais gosta de trabalhar?
Não aprendi línguas até hoje (risos). Gosto de trabalhar com o português, embora inglês seja a que eu mais leio. Nunca tive temor de nada. Deve-se julgar as obras pelo que elas têm de qualidade, não por serem de fulano ou beltrano. Shakespeare fez muita besteira, mas tem três ou quatro obras perfeitas, e Macbeth é uma delas. Traduzi Shakespeare por ser do caralho, mas se me dessem algo ruim para traduzir, dizendo que era um pensamento dele ou de Confúcio, perguntaria se era mesmo dele ou de um completo idiota.
Nunca sentiu dificuldade na tradução por ter sido autodidata em línguas?
Ao traduzir, é preciso ter todo rigor e nenhum respeito pelo original. Você pega um Racine, que é em dodecassílabos, mas não entra nessa. No momento em que você se sujeita à rima, está perdido, porque a rima vai conduzir os seus pensamentos. Mas traduzir é sempre divertido. Uma vez fiz a tradução da peça The Sunshine Boys, do Neil Simon, a que dei o título de Os Palhaços de Ouro. Era sobre uma dupla de comediantes à antiga. Eles se odeiam depois de trabalhar juntos por décadas, mas são obrigados a conviver nos palcos. Numa cena, o mais velho dos dois bate à porta, o outro diz: "Enter!" O ator fica imóvel. "Enter! Enter!" E nada. O outro vai lá e pergunta porque ele não entrou. "Estou esperando você dizer coming!, como sempre se fez." Ora, enter e coming são expressões equivalentes em inglês, mas com aplicações diferentes. Por aqui, "entrar" já dá conta do recado. Para dar idéia do contraste que o original pedia, foi preciso dizer em bom português "penetra!".
Na sua opinião, quais as vantagens o português possui em comparação a outras línguas que você conhece?
A principal vantagem é a de ser a minha língua. Ninguém fala duas línguas. Essa idéia de um espião que fala múltiplas línguas não passa de mentira. Vai lá no meio do jogo dizer "salamê minguê, um sorvete colorê..." ou "velho guerreiro". Os modismos da língua, as coisas ocasionais, não são acessíveis a quem não é nativo. Toda pessoa tem habilidade só no seu idioma. Você pode aprender uma, dez, sei lá quantas expressões de outra língua, mas ainda existirão outras mil - como é que se vai fazer? A língua portuguesa tem suas particularidades. Como outras também. Aprendi desde cedo a ter o cuidado de não rimar ao escrever uma frase. Sobretudo em "-ão".
Quais as normas mais loucas ou mais despropositadas da língua portuguesa?
Toda pesquisa de linguagem é perigosa porque tem o caráter de induzir o sentido. Não tenho nenhum carinho especial por gramáticos. Na minha vida inteira sempre fui violento [no ataque às regras do idioma], porque a língua é a falada, a outra é apenas uma forma de você registrar a fala. Se todo mundo erra na crase é a regra da crase que está errada, como aliás está. Se você vai a Portugal, pode até encontrar uma reverberação que indica a crase. Não aqui. Aqui no Brasil a crase não existe.
Mas a fala brasileira é mutante e díspare, cada região tem sua peculiaridade. Como romper regras da língua sem cair no vale-tudo?
Se não houver norma não há como transgredir. A língua tem variantes, mas temos de ensinar a escrever o padrão. Quem transgride tem nome ou peito que o faça e arque com as consequências. Mas insisto que a escrita é apenas o registro da língua falada. De Machado de Assis pra cá, tudo mudou. A língua alemã fez reforma ortográfica há 50 anos, correta. Aqui, na minha geração, já foram três reformas do gênero, uma mais maluca que a outra. Botaram acento em "boemia", escreveram "xeque" quando toda língua busca lembrar o árabe shaik, insistiram que o certo é "veado" quando o Brasil inteiro pronuncia "viado". Chamar viado de "veado" é coisa de viado. Quando chegaram a tais conclusões? Essas coisas são idiotas e cabe a você aceitar ou não. Veja o caso da crase. A crase, na prática, não existe no português do Brasil. Já vi tábuas de mármore com crase errada. Se todo mundo erra, a crase é quem está errada. Se vamos atribuir crase ao masculino "dar àquele", por que não fazer o mesmo com "dar àlguém"? Não podemos.
Você já escreveu certa vez um texto em "lusitol" e o traduziu para o "brasilol", mostrando o abismo de linguagem que existe entre Portugal e o Brasil. O nosso país caminha para a constituição de uma língua própria?
É muito difícil fazer esse tipo de previsão. As influências hoje em dia são tão interativas, tão permutantes, que não sei se o Brasil vai formar uma língua tão diferente de Portugal, porque o inglês também está batendo à porta deles. O mundo inteiro hoje busca aproximação por meio do inglês. É um idioma que teve muita sorte - quando o império britânico começou a decair, surgiu o americano. O inglês tem inúmeras línguas, mas continua inglês. Assim também, há uma língua portuguesa com variantes, dialetos e idioletos.
Mas as diferenças não pesam?
Nem sempre é fácil entender um português e há filmes portugueses que só conseguimos ver com legendas. O que acontece é que temos dificuldade de entender o português de Portugal mais pela eufonia e pela prosódia que pelos vocábulos em si mesmos. Não sei se os portugueses passam pelo mesmo problema, mas o fato é que, até os anos 30, todo ator brasileiro imitava sotaque português para ser respeitado e, hoje, nossa influência em Portugal é total. A telenovela entra lá, e não adianta o intelectual português ficar contra, porque o povo acha engraçado o jeito de a gente falar, e termina copiando. Já usam expressões como "estou a dar a volta por cima, o pá!", lá do jeito deles, com sotaque, mas usam.
O estrangeirismo empobrece a língua portuguesa?
De maneira nenhuma. Antigamente, tivemos palavras como porta-seios, uma coisa muito feia, que felizmente foi substituída pelo galicismo "sutiã". Toda língua é invadida e, como mulher, fecundada. De vez em quando a nossa leva na bunda, mas nada que, lavada, não fique novinha. Houve tempo em que o galicismo era uma aberração. Não se podia escrever "amante", mas "amásia". Era assustador. Uma vez, era menino, escrevi um conto em que um cara sai pela rua gritando: "Assassinato! Assassinato!" Quiseram que eu colocasse, por respeito à língua, "assassínio", pra evitar o "galicismo"... Quem sai à rua gritando "Assassínio!" é bicha.
Os excessos, como sale, delivery ou 50% off não incomodam a você?
O estrangeirismo não me incomoda. É evidente que essa coisa pouco natural de importar outra língua é muito Barra da Tijuca [bairro da elite carioca], é esse negócio de Estátua de Liberdade de gesso colocada na frente da porta. Pode haver a penetração que quiser, mas é preciso fazer as coisas que nos são naturais. O cara que use delivery com as nega dele. Eu, por exemplo, escrevo aquilo que chega até mim, naturalmente. Devo ter sido a primeira pessoa a escrever whisky na forma "uísque". E ficou. Uso "saite" no lugar de site, que já está consagrada. Os portugueses usam "sítio" e é legítimo. A língua é assim, arbitrária. Se dependesse só do meu arbítrio, aí eu faria uma moção pros órgãos oficiais. Não há porquê do Banco do Brasil usar home delivery quando poderia simplesmente fazer "entrega em domicílio". Os órgãos oficiais brasileiros não podem fazer esse tipo de coisa.
Qual o caminho para escrever bem?
Escrever bem é expressar-se. Usar sujeito, verbo, predicado e, a partir daí, fazer todas as variações. Não deixo margem a dúvida quando digo "um homem de terno branco atravessava a rua num dia de domingo". Mas jamais escreveria a frase pomposa do Machado de Assis que está lá na Academia [Brasileira de Letras]. Nem improvisada foi, pois estava num poema dele. "A glória que fica eleva, honra e consola". As palavras não têm a menor hierarquia. Quando se diz "a glória que fica" já acabou a frase, já se sabe que é com a ABL, ela está se referindo às glórias literárias. "Eleva" e "honra" são dispensáveis e nem dá para saber o que uma glória consola: da tremedeira das mãos, de doença? Veja, no entanto, um escritor como Camões. Ao se dirigir ao rei Dom Sebastião, o poeta afirma que "a disciplina militar prestante / não se aprende, senhor, na fantasia, / sonhando, imaginando ou estudando, / senão vendo, tratando e pelejando". Repare que ele não diz "tratando, pelejando e vendo" - pois seria o caso de um sujeito que sai na porrada sem pensar. Quem não sabe escrever não cria esse tipo de hierarquia, pouco importa. Quando uma hierarquia não é tão precisa entre as palavras, o sujeito quebra a cara. Nenhuma palavra é gratuita. Um texto, por exemplo, não pode "condenar" algo quando na verdade seu autor pretendia dizer "evitar".
É possível escrever bem sem ler muito?
Não.
Mas é possível desenvolver um instinto natural para escrever bem?
O instinto pode levar a escrever, mas uma pessoa simplória tende a ter um discurso simplório. Quando escrever, fará um texto simplório. Quanto mais formas de escrita você conhecer, mais habilidade terá em sua própria escrita. Sei que há quem nos desminta. Outro dia, peguei dois volumes de Rubem Braga. Um feito quando ele tinha 25 anos e outro aos 40, já embaixador no Chile. Ambos são de uma precisão, mesmo em 20 linhas. Eu, que não gosto de enfeiar com sinais gráficos o que escrevo, por vezes vejo que as coisas que faço vão ficando complexas e sou obrigado a usar travessão e intercalações para deixar tudo mais claro. Rubem Braga não faz nada disso. É de uma densidade de quem não quer nada.
Quem se expressa bem, falando, no Brasil?
Ninguém que supere o Carlos Lacerda [jornalista e político da antiga UDN, 1914- 1977]. Hoje, falam que um Pedro Simon é um grande orador e eu me escandalizo. A retórica dele é feita de gritos, de berros. Lacerda, não, trazia tudo alinhavado, com uma capacidade de argumentação impressionante. Nem locutores de TV, que leem tudo mastigado no teleprompter [monitor de caracteres], sabem falar. Você pega o [apresentador do 'Jornal Nacional'] William Bonner, fala "errado" o tempo todo, porque enfatiza as palavras indevidamente ou enfatiza demais a frase. De todos, o [jornalista] Franklin Martins é o melhor, diz tudo de maneira correta. Veja o Carlos Nascimento. A televisão deixa o cara dar palpites, que são no mínimo conservadores, quando não reacionários - e ele nem percebe.
Dos nossos ex-presidentes e do atual - Sarney, FHC e Lula - quem se expressa melhor em português?
Que parada! Fernando Henrique diz besteiras o tempo todo. Como um cara inteligente diz que o povo deveria fazer checkup e que tem o pé na cozinha? Teria o pé na África e olhe lá. Ao dizer "pé na cozinha", é pejorativo. Fernando Henrique é empolado demais da conta. Já o Lula diz bobagens do tipo "as mulheres são desaforadas". Diz também sem saber o que está dizendo. Pensa que está elogiando, sendo engraçadinho, mas não tem noção das palavras. Ocorre que ele tem pronúncia até melhor que o FHC, mesmo engolindo palavras. Já Sarney é o Lula em barroco. Escreve um romance débil mental e passa a ser considerado uma revolução nas letras nacionais.
É atribuído a você um texto que circula na internet, uma apologia ao palavrão. Terem acreditado que se tratava de um texto de sua autoria o ofendeu em que medida?
É a pior coisa pegarem um texto que não é seu, que você escreveria melhor, e atribuir a você. Já escrevi muito sobre palavrão, e não para fazer gracinha. Em 1978, quando fiz a tradução de A Volta ao Lar, do Harold Pinter, O Globo veio em cima, dizendo que eu inseri palavrões para torná-la picante, comercial ou subversiva. Escrevi um artigo enorme contestando. Tudo que penso sobre o assunto está lá. Não preciso fazer gracinha com a questão. Mas internet é terra de ninguém. Não fiquei ofendido, nem fui lá reclamar. Isso me mata de tédio.
FONTE:
Revista Língua Portuguesa, ano I, número 1 – 2005.

"O sucesso é um acidente de percurso. Não pense que o sucesso seja eterno. É muito difícil que ele seja. Então, mantenha-se humilde, porque daqui a pouco você não sabe como será. A vida é dura, mas é boa. Se eu não fosse deprimido, eu seria um louco. Com toda essa responsabilidade e não ser deprimido... Converso com meu psiquiatra há 18 anos".
Chico Anysio
www.ospaparazzi.com.br

sexta-feira, 6 de abril de 2012

TARJA PRETA




“O mundo está grosseiro e insensível aos detalhes. Assusta e vem pisando tudo, feito polícia montada. Mas a arte, delicada e feita de elementos sutis que é, consegue existir apesar dele.”                                                                                                                       Maria Bethânia


PODRES PODERES
Caetano Veloso

Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais

Queria querer gritar setecentas mil vezes
Como são lindos, como são lindos os burgueses
E os japoneses
Mas tudo é muito mais

Será que nunca faremos senão confirmar
A incompetência da América católica
Que sempre precisará de ridículos tiranos?


Será, será que será que será que será
Será que esta minha estúpida retórica
Terá que soar, terá que se ouvir
Por mais zil anos
Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Índios e padres e bichas, negros e mulheres
E adolescentes fazem o carnaval

Queria querer cantar afinado com eles
Silenciar em respeito ao seu transe, num êxtase
Ser indecente
Mas tudo é muito mau

Ou então cada paisano e cada capataz
Com sua burrice fará jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades, caatingas
E nos Gerais?


Será que apenas os hermetismos pascoais
E os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão dessas trevas
E nada mais?
Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Morrer e matar de fome, de raiva e de sede
São tantas vezes gestos naturais

Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo
Daqueles que velam pela alegria do mundo
 Indo e mais fundo
Tins e bens e tais

Fonte: VELOSO, Caetano. Letra só. Seleção e Organização: Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.



TARJA PRETA
Por Fábio Brito
            Os bons livros estimulam a leitura crítica, fazem o leitor pensar “por conta própria”. E nenhum livro pode ser visto como um dogma. Nenhum! Eles existem para que, por meio de sua leitura, formemos nossas crenças, nossas opiniões e nelas possamos acreditar. Os dogmas, como bem pontuou Gustavo Bernardo¹, são “as sentenças emprestadas, as ideias que nos mandaram repetir e reproduzir, papagaios dos outros, marionetes dos outros. Estas sentenças chegam e bloqueiam o aparecimento de outras, das nossas, das ideias que poderiam ser próprias se não fossem bloqueadas pelas alheias”. E não há nada mais dogmático do que essa "literaturazinha vulgar" que, aos montes, invade casas, escolas e livrarias. Infelizmente, é dessa literatura que muita gente gosta. E é tendo como referência um padrão inferior, que pessoas politicamente corretas censuram obras que favorecem o debate, a discussão e fazem crescer. Argh! 
E uma obra que, há pouco tempo, esteve na mira dos "politicamente corretos" é simplesmente Caçadas de Pedrinho, do mestre Monteiro Lobato. Não conheço nenhum livro desse papa da literatura infantojuvenil que seja condenável. Por que, então, censurá-lo? Caçadas de Pedrinho foi um dos primeiros livros que li em minha vida. E exatamente essa obra foi alvo, em 2009, de debates e discussões... em decorrência de seu suposto conteúdo racista. Meu Deus! Aonde vamos?  
Essa polêmica acerca da obra de Lobato traz à tona a velha e bolorenta questão do eterno maniqueísmo em que vivemos e de que, sem o saber, somos vítimas: de um lado os bonzinhos, os “politicamente corretos”, que, com autoritarismo e arrogância, querem defender os ingênuos de tudo o que é mal; do outro, os revoltados, incorretos politicamente, que querem engendrar a desordem e o “desamor entre os homens”. Nossa! Como esse tal maniqueísmo impede que os argumentos nasçam! É preciso - dizem - "salvar" as crianças das obras que estimulam o preconceito e outros males. Diante disso, por que, então, não levamos essas obras "ameaçadoras" para a sala de aula?! Debatamos, pois, com os alunos os assuntos que elas abordam! Façamos esses alunos pensarem! Não dá?! Já sei! Os professores, ou "quem quer que seja", não leram (leram mesmo!) as obras. Quando digo "leitura", não me refiro ao reconhecimento das letras, das sílabas, das palavras: "b + a = ba; r + a = ra; t + a = ta - barata". Refiro-me, sim, à leitura como momento da construção do texto, o que não é tarefa fácil para muitos.  
Ler vai muito além do que o senso comum entende como leitura. Muito mesmo! A obra, quando liberta e acrescenta, tem um valor imensurável. Mas é preciso fazer uso da leitura de forma criativa e criadora. Para a interpretação dos textos, deve-se considerar também a experiência histórica do invidíduo. Por que o professor não ensina isso? Por que as "leis" não dizem isso? Porque é mais simples banir as obras que "ameaçam", não é mesmo? É mais fácil "tirar do alcance" das crianças exatamente livros que podem libertá-las e acrescentar-lhes uma bagagem importante para a toda a vida. 
O ato de ler é um modo de ser, é um modo de viver. É, em verdade, uma convicção. As obras de Lobato propiciam - e como! - isso. Emília, por exemplo, uma das personagens mais ricas e fascinantes da literatura, mudou minha vida e a de muitas crianças. Em Memórias de Emília, por exemplo, é a própria boneca quem nos diz: "Sou a Independência ou Morte!". Ela é desafiadora, espevitada, irônica, criativa. Tudo o que ninguém questiona é questionado por ela o tempo todo. Ela é subversiva "até debaixo d'água". Depois que passamos a conhecê-la, uma perguntinha não nos sai da cabeça: e se tudo o que está aí fosse diferente? Pois é, e lá vêm uns e outros dizerem - com "verbos sem conteúdo" - algo sem sentido acerca não só da Emília, mas de toda a obra lobatiana. Sinceramente, não tenho mais saúde ou paciência para esse tipo de celeuma.  
Pois é, pelo que temos visto e ouvido  por aí, chegou a hora de não só a literatura de Lobato (ou de outros excelentes escritores) ostentar uma bela tarja preta, mas os dicionários também. O Houaiss, um dos melhores do país, também está na mira dos censores, simplesmente porque, no verbete “cigano”, há o uso pejorativo. Ai... socorro! Dicionário, como bem disse João Ubaldo Ribeiro², “é um trabalho lexicográfico, não uma peça normativa. O lexicógrafo não concorda ou discorda do uso de uma palavra ou expressão qualquer. Obedecendo a critérios tão objetivos e neutros quanto possível, constata o uso dessa palavra ou expressão e tem a obrigação de registrá-la. Eliminar do dicionário uma palavra lexicograficamente legítima não só é uma violência despótica, como uma inutilidade, pois a palavra sobreviverá, se tiver funcionalidade na língua, para que segmento seja”. A língua é dinâmica e, como tal, vai mudando, vai incorporando novos significados, que nascem, não raro, do uso cotidiano.
Não precisamos de mais capatazes, de mais censores. Precisamos, sim, de gente que entenda que a língua é liberta, assim como as pessoas que a usam. Precisamos, sim, de pessoas que consigam entender - mesmo que medianamente - a grandeza de Lobato, um dos grandes luxos da literatura brasileira, e a importância dos dicionários. Em vez de bani-los (Lobato e os dicionários), deveriam exaltá-los.  
1. BERNARDO, Gustavo. Redação inquieta. 4ª ed. São Paulo: Globo, 1991.
2. O Globo, domingo, 11 de março de 2012 (Opinião, p. 7).

VEM AÍ O ESTATUTO DA PALAVRA
João Ubaldo Ribeiro
Para mim, é sinal de atraso, mas acho que sou minoria. Estamos atravessando um interessante processo sociopolítico, em que o comportamento pessoal e particular é cada vez mais controlado, com a nobre finalidade de nos proteger, geralmente de nós mesmos. Já imaginei várias possíveis consequências disso, inclusive a criação das figuras da ortocópula e da cacocópula. Não, o Estado não instalará câmeras de tevê nas alcovas, para monitorar a intimidade dos casais. Só creio que isso pudesse acontecer, ainda que muito remotamente, em São Paulo, onde hoje é bem mais fácil ser assaltante do que fumante. Se o assaltante estiver fumando, duvido que assalte qualquer coisa em Congonhas, por exemplo, porque, assim que passar por baixo da marquise, um ou dois policiais o pegarão. Já assalto simples, sem cigarro, é outra coisa.
Não haverá necessidade da monitoração, a não ser por ordem judicial. O Estado definiria uma cópula otimizada, numa escala, vamos dizer, de um a cinco. Nessa faixa, teríamos a ortocópula. Passando de cinco, já se começaria a pisar o arriscado terreno da cacocópula. A iniciativa da ação estatal seria nos mesmos moldes da lei da palmada. O cônjuge atingido poderia denunciar o autor da cacocópula, ou isso poderia caber a quem quer que tivesse condição de levantar suspeitas, tais como vizinhos e parentes. Se o casal vizinho tem uma trilha sonora exuberante durante suas conjunções carnais, aludindo, em voz audível através de um copo na parede, a práticas consideradas inaceitáveis pelos padrões oficiais, o longo braço da lei pode alcançá-lo. Mesmo que tanto ela quanto ele garantam que fazem aquilo somente entre os dois e gostam desse jeito, serão classificados como anormais e levados a tratamento psiquiátrico. Não se obtendo êxito, paciência. Compete ao Estado zelar pelo bem deles e, portanto, o divórcio será obrigatório, podendo ambos inscrever-se no programa governamental "Refaça Sua Vida", que permitirá novo casamento aos que comprovarem ter abandonado atos sexuais ilícitos. Os filhos estarão bem entregues a parentes e, na falta destes, a alguma das exemplares instituições que o Estado mantém para a guarda e educação de menores desamparados.
Agora há novamente paladinos da sociedade perfeita, o que lá seja isso, que querem censurar dicionários. De vez em quando, aparece um desses. Censurar a lexicografia é uma curiosa inovação. Dicionário é um trabalho lexicográfico, não uma peça normativa. O lexicógrafo não concorda ou discorda do uso de uma palavra ou expressão qualquer. Obedecendo a critérios tão objetivos e neutros quanto possível, constata o uso dessa palavra ou expressão e tem a obrigação de registrá-la. Eliminar do dicionário uma palavra lexicograficamente legítima não só é uma violência despótica, como uma inutilidade, pois a palavra sobreviverá, se tiver funcionalidade na língua, para que segmento seja.
Não se pode legislar o funcionamento da língua. O que se pode, no máximo, é regular a chamada norma culta, que poderia ter qualquer outro nome, porque é destinada apenas a manter um pouco da estabilidade da comunicação necessária à sociedade, desde o convívio interpessoal aos documentos de uso comum, da propaganda às leis. Se não fosse assim, dentro de pouco tempo a comunicação verbal seria quase impossível. De resto, a língua é viva e livre e ninguém manda nela, nem mesmo as ditaduras. E não insulta ninguém, depende para isso de seus usuários, que criam o que é considerado ofensa.
Mas os usuários são renitentes, de forma que, como no caso da cópula, isso tem que ser regulado, não é possível permitir que o dicionário registre termos que poderiam ofender algum indivíduo ou categoria. Acho que tem muita limpeza a ser feita e agora mesmo me ocorrem cretino, imbecil, idiota, boçal e outras palavras muito usadas para insultos, que, ainda por cima, são empregadas erroneamente, pois sabe-se atualmente que o boçal não tem culpa de sua boçalidade. Há muita gente que acha que se trata de um triste problema genético e todo boçal é uma vítima que, assim como o bandido, foi marginalizada (ou excluída, que está mais na moda) e sofreu bullying na infância.
Urge também o banimento de palavras que agravem povos irmãos, mesmo que hoje seus países não existam mais politicamente, como beócios e capadócios. Os já citados cretinos são outro caso deplorável, pois, para grande vergonha nossa, a palavra vem do francês crétin, a qual, por sua vez, vejam como o mundo dá voltas - se originou de chrétien, ou seja, cristão. Patenteia-se aí um claro insulto a toda a cristandade e cretino merece dupla proibição. Baiano burro (aliás, mentalmente prejudicado, para não ofender o burro e incutir nas crianças desprezo por um animal tão útil à humanidade) nasce morto, bem sei, mas não se fazem mais baianos como antigamente e não duvido que surja um grupo na Bahia, empenhado em abolir termos e expressões como "baianada" e "gelo de baiano". E certamente apoiarão seus irmãos paulistas na justa revolta destes, ao serem informados de que lombo de carne de boi é chamado na Bahia de "paulista" e que muitos baianos, a cada dia, dizem casualmente "hoje eu vou comer um paulista lá em casa".
Com os dicionários expurgados, não mais compreenderemos livros escritos antes desta era. É um preço pequeno a pagar, para nos livrarmos de uma herança maldita e tornar nossa língua própria para os anjos que em breve seremos. Aguardo agora normas sobre as artes. As artes deverão ser obrigadas à imparcialidade e a conceder espaço igual a todos. Assim, se o vilão de um romance for católico e o mocinho evangélico, será exigida, concomitantemente, uma versão com os papéis invertidos. Se um samba falar que "minha nega me traiu", vai ter que haver outra versão, com a mesma melodia, cantando "minha loura me chifrou". E por aí vamos, ainda chegamos ao primeiro mundo.
Fonte: O Globo, domingo, 11 de março de 2012 (Opinião, p. 7);



VAMOS QUEIMAR OS DICIONÁRIOS
Lya Luft
Quando a gente pensa que já viu tudo, não viu. Faz algum tempo, dentro do horroroso politicamente correto que me parece tão incorreto, resolveram castrar, limpar, arrumar livros de Monteiro Lobato, acusando-o de preconceito racial, pois criou entre outras a deliciosa personagem da cozinheira Tia Nastácia, que, junto com Emília e outros do Sítio do Picapau Amarelo, encheu de alegria minha infância. Se formos atrás disso, boa parte da literatura mundial deve ser deletada ou "arrumada". Primeiro, vamos deletar a palavra "negro" quando se refere a raça e pessoas, embora tenhamos uma banda Raça Negra, grupos de Teatro Negro e incontáveis oficinas, açougues, borracharias "do Negrão", como "do Alemão" "do Portuga" ou "do Turco". Vamos deletar as palavras. Quem sabe, vamos ficar mudos, porque ao mal-humorado essencial, e de alma pequena, qualquer uma pode ser motivo de escândalo. Depende da disposição com que acordou, ou do lado de onde sopram os ventos do seu próprio preconceito.
 Embora meus ·antepassados tivessem vindo ao Brasil em 1825, portanto sendo eu de muitas gerações de brasileiros tão brasileiros quanto os de todas as demais origens, na escola havia também a turminha que nos achacava com refrãos como "Alemão batata come queijo com barata". Nem por isso nos odiamos, nos desprezamos. Eram coisas infantis, sem consistência. O que vemos hoje quer mudar a cara do país, ou da cultura do país, e não tem nada de inocente.
Um dos negros que mais estimei (no passado, porque morreu), ligado a mim por laços de família, era culto, bom, interessante, nossos encontros eram uma alegria. Com ele muito aprendi, sua cultura era vasta. A cor de sua pele nunca me incomodou, como, imagino, não o aborreciam meus olhos azuis. Havia coisas bem mais positivas e importantes entre nós e nossas famílias. Não vou desfilar casos com amigos negros, japoneses, árabes, judeus, seja o que for. Mas vou insistir no meu escândalo e repúdio a qualquer movimento que seja discriminatório, que incite o ódio de classes ou o ódio racial, não importa em que terreno for.
Agora, de novo para meu incorrigível assombro, em um lugar deste vasto, belo, contraditório país que a gente tanto ama, desejam sustar a circulação do Dicionário Houaiss, porque no verbete "cigano" consta também o uso pejorativo - que, diga-se de passagem, não foi inventado por Houaiss, mas era ou é uso de alguns falantes brasileiros, que o autor meramente, como de sua obrigação, registrou. Ora, para tentar um empreendimento desse vulto, como suspender um dicionário de tal peso e envergadura, seria preciso um profundo e preciso conhecimento de linguística, de lexicografia, uma formação sólida sobre o que são dicionários e como são feitos.
O dicionarista não inventa, não acusa nem elogia, deve ser imparcial - porque é apenas alguém que registra os fatos da língua, normalmente da língua-padrão, embora haja dicionários de dialetos, de gírias, de termos técnicos etc. Então, se no verbete "cigano" Houaiss colocou também os modos pejorativos como a palavra é ou foi empregada, criticá-lo por isso é uma tolice sem tamanho, que, se não cuidarmos, atingirá outros termos em outros dicionários, com esse olhar rancoroso. Vamos nos informar, antes de falar. Vamos estudar, antes de criticar. Vamos ver em que terreno estamos pisando, antes de atacar obras literárias ou científicas com o azedume de nossos preconceitos e da nossa pequenez ou implicâncias infundadas. Há coisas muito mais importantes a fazer neste país, como estimular o cuidado com a educação, melhorar o atendimento à saúde, promover e preservar a dignidade de todos nós.
Ou, numa mistura maligna de arrogância e ignorância - talvez simplesmente porque não temos nada melhor a fazer -, vamos deletar as palavras que nos incomodam, os costumes que nos irritam, as pessoas que nos atrapalham e, quem sabe, iniciar uma campanha de queima de livros. De autores, seria um segundo passo. E assim caminhará para trás, velozmente, o que temos de humanidade.
Fonte: VEJA, 11 de março, 2012



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