sábado, 28 de setembro de 2013

ULTRACONECTADOS


Foto: Fábio Brito
O bem-te-vi aí da foto acorda-me todos os dias.  Prefiro o som de seu canto ao barulhinho dos celulares... ou aos "gritos" que saem dos alto-falantes dos carros que passam por minha rua...


Fo


PELA INTERNET

Gilberto Gil

 Criar meu web site

Fazer minha home-page

Com quantos gigabytes

Se faz uma jangada

Um barco que veleja


Que veleje nesse informar

Que aproveite a vazante da infomaré

Que leve um oriki do meu velho orixá

Ao porto de um disquete de um micro em Taipé


Um barco que veleje nesse infomar

Que aproveite a vazante da infomaré

Que leve meu e-mail até Calcutá

Depois de um hot-link

Num site de Helsinque

Para abastecer


Eu quero entrar na rede

Promover um debate

Juntar via Internet

Um grupo de tietes de Connecticut


De Connecticut de acessar

O chefe da Macmilícia de Milão

Um hacker mafioso acaba de soltar

Um vírus para atacar os programas no Japão


Eu quero entrar na rede para contatar

Os lares do Nepal, os bares do Gabão

Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular

Que lá na praça Onze tem um videopôquer para se jogar...

Fonte: GIL, Gilberto. Todas as letras: incluindo letras comentadas pelo compositor / organização de Carlos Rennó. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

ULTRACONECTADOS

Por Fábio Brito
É... tem faltado tempo às pessoas. Tempo ‘pra’ quê? Para elas darem-se um tempo, pensarem na vida. Tempo para meditarem mesmo. Zigmunt Bauman, sociólogo polonês, numa entrevista, foi categórico: “(...) Somos dependentes dos estímulos externos: as mensagens que chegam no celular, o iPod, as conversas pela internet. A alternativa para o tempo não preenchido com esses estímulos não é mais vista como tempo de reflexão, de autoquestionamento, de conversa consigo mesmo, mas de tédio. Nós somos seres que se escoram no que vem de fora. Perdemos a capacidade de nos autoestimular. Estar sozinho – a liberdade de gastar o tempo com nossos próprios pensamentos, perseguida e sonhada por nossos ancestrais – é identificado hoje com solidão, com abandono, com a sensação de não pertencer.¹ (...)”
Querendo constatar que as pessoas não vivem sem estímulos externos, como afirma Bauman, é facílimo. Basta observar ao redor e em qualquer lugar. Prestem atenção, por exemplo, nos carros que passam por nós. Não vejo carros em que há música tocando. Os que vejo nem são carros, mas umas "coisas" inclassificáveis. É... Trata-se de barulho sobre rodas e mais nada. Acho que o meu e mais uns três ou quatro por aí tocam músicas. Querem mais exemplos? Nos restaurantes, aonde as pessoas deveriam ir não só para comer, mas para conversar também, há um televisor ligado. Para quê? Há pouco mesmo, caminhando, passei por uma lanchonete que fica praticamente no meio de uma pista bem movimentada. Sobre um muro, perto de três mesas, havia um televisor com direito a aparelhinho de TV a cabo e tudo. Ninguém ouve nada ali, meu Deus! Só o som dos carros já é suficiente para irritar qualquer cristão. Ainda assim, puseram um televisor para fazer barulho. Ai, ai... 

As pessoas, hoje, têm a obrigação de preencher o tempo ininterruptamente, já repararam? Seja consumindo imagens, sons (eis os televisores de restaurantes e lanchontes) ou o que vier. Uma situação bem comum é esta: quando, por exemplo, não estão digitando qualquer "troço" (sabe Deus o quê!) num aparelhinho que “mora” na palma da mão, estão com fones no ouvido (agora, a moda é ostentarem um bem grande e, de preferência, em cores fortes). Será que é necessário digitar ou ouvir “algo” o tempo todo? Aqui, vale uma observação: como será que as pessoas estão ‘se’ comportando no trabalho? Deus meu! Deve ser uma luta fazer o povo trabalhar? Fico pensando nas ‘ordens de serviço’ que as empresas têm de baixar constantemente proibindo o uso do celular, da internet... Caso contrário, ninguém trabalha.
E por falar em celular, lembrei-me de que, em sua crônica “A vida virtual”, Ruy Castro nos relata um episódio interessante: certa vez, descendo de um avião, ele era o único que não tinha um celular grudado “no ouvido”. Ou seja, ele era um ET. Sinto-me exatamente assim quando, em situações do dia a dia, estou sem celular (geralmente, estou). Um ótimo exemplo é quando saio para minhas caminhadas: todas as pessoas que pensam que estão caminhando têm uma luzinha acesa na palma da mão. Caminhar, para mim, não tem - ou não deveria ter -qualquer  relação com parafernália eletrônica. Por mais idiota que possa parecer a pergunta, não posso deixar de fazê-la: por que fazemos caminhadas? Reposta simples: para que tenhamos um melhor condicionamento físico, para que nos desestressemos e mais um "tantão" de benefícios. Pergunto novamente: alguém pode, numa caminhada, querer fugir ao estresse, se, a plenos pulmões, “berra” que “minha comissão não é só isso!”, como ouvi, dias atrás, de uma moça que pensava estar caminhando e passou por mim feito um ‘corisco’? Essa pobre criatura vai ter um enfarto, pensei. Levei até um susto com o berro que ela deu. Sei lá, de uns tempos para cá, estou pensando em caminhar em lugar quase deserto, só para escapar a esse povo obcecado por tecnologia. Não aguento mais. 
Não aguento mais mesmo! Às vezes, tenho vontade de brigar com certas criaturas (às vezes, brigo) quando, por exemplo, tento conversar com elas, e não consigo, exatamente porque não desgrudam os olhos do infeliz aparelhinho que elas não abandonam por nada neste mundo. E em sala de aula? O mesmo martírio! Há muitos alunos que acham muito mais interessante ficar olhando a telinha do "bendito aparelhinho engraçadinho" que carregam do que discutir assuntos relacionados às disciplinas que eles cursam. A cena chega a ser patética: eles olham para os aparelhos e riem, riem, riem. Não sei do que riem tanto, não sei com quem falam tanto, não sei para quem digitam tanto. Certamente, o que “rola” não me interessa.
Bom, quando certas pessoas dizem que, nos tais aparelhinhos, procuram informação, nem chego a duvidar. Tirando a maioria, que só procura bobagem, há os que buscam, sim, informações. O problema, no entanto, não é buscar informação. É preciso, lógico!, que nos informemos. O problema é o exagero. Para que buscar tantas informações, se não haverá tempo de digeri-las, de processá-las, de transformá-las em algum conhecimento? Há que se estabelecer, aqui, a diferença abissal que existe entre informação e conhecimento. São bem distintos. É óbvio que não há ser humano que consiga armazenar informações como um computador. E o que percebo é gente querendo, à semelhança das máquinas, consumir tudo o que encontra pelo caminho. Bobagem querer “competir”. Por que, em vez de as pessoas consumirem tanta informação (superficial, na maioria das vezes), não param para processar as que consumiram? Daí é que vem o conhecimento. Ir engolindo tudo o que se encontra pela frente parece-me uma “maneira meio bovina” de lidar com a informação, não parece?  
Ao povo “viciadinho”, proponho uma desintoxicação urgente: que tal, durante uma semana, deixar de lado todos os aparelhinhos que o levaram o mundo do vício? Seja forte! Resista bravamente! Em lugar de tais aparelhinhos, pegue um livro – de preferência, um clássico – e leia-o. Porque é um processo de desintoxicação, não será possível largar as “drogas” de uma vez, num rompante. Tem de ser paulatinamente. Então, ao fim de uma semana, volte a seu mundo virtual. Depois, proponha-se mais duas semanas de “abstinência”. Em pouco tempo, você poderá aumentar gradativamente o tempo de “abstinência”. Não terá abandonado totalmente as “drogas”, claro! Estas serão usadas apenas para “manutenção”. Sabemos que a cura total é impossível, não é mesmo?
Será que essas pessoas “viciadas em tecnologia” sabem o que é passarinho cantando? Claro que não! Desconhecem muitos outros prazeres que também são bem simples. Será que sabem o que é ouvir música? Ah, não faltam criaturas que dizem ouvir, sim, música. Nada disso! Ouvem “som”, o que é bem diferente. Ouvem barulho irritante e cansativo. Ouvem lixo. Ouvir música é um ritual, como sempre afirmei, e requer, para tanto, que dispensemos um tempo só para isso. E um tempo que deve ser solenizado. Se for vinil, então, o ritual é mais completo ainda e deverá, como todo ritual, passar por algumas etapas:
1ª: Escolha o que vai ser ouvido;
2ª: Decida o horário (de preferência, à noite, quando nem os cachorros latem pelas ruas... e os vizinhos deram um tempo em sua gritaria e em suas intermináveis festas);
3ª: Escolha um lugar apropriado: pode ser uma biblioteca, uma sala ou um quarto (bem aconchegantes, claro!);
4ª:  Com muito cuidado, tire o disco da capa, mas tenha o cuidado de tocar apenas as bordas;
5ª: Havendo encarte, observe-o com vagar e vá à cata de informações importantíssimas: nomes dos músicos, dos arranjadores e do diretor musical, por exemplo. Ah, algo deveras importante: em silêncio, tendo à frente a letra da canção, acompanhe o intérprete (aprendi muitas músicas assim). Não cometa a “heresia” de tentar cantar “junto”... Arte é algo sagrado. Depois, no banheiro, tente “cantarolar” o que ouviu, o que colaborará para o aprendizado das letras;
6ª: Por fim, entregue-se ao “doce deleite”.
Poucas atividades na vida valem tão a pena quanto a pessoa 'se' dar  o luxo de participar de rituais como o que citei. Tentem. Verão, assustados, que a vida não se resume a aparelhinhos que “não são de Deus”, como celulares e afins.
¹ Revista O GLOBO de 26-04-2009


Bom dia em tempos de viciados por celular

http://www.humorpolitico.com.br/celular/bom-dia-em-tempos-de-vicio-em-celular/


INCOMUNICABILIDADE
No cinema dos anos 50/60, era assim: Jeanne Moreau, em Ascensor para o cadafalso, Os amantes e A noite; Monica Vitti, em A aventura e O Eclipse; Anna Karina, em Uma mulher é uma mulher e Viver a vida; Anouk Aimeé, em Lola; Audrey Hepburn, em Bonequinha de luxo; e até a nossa Leila Diniz, em Todas as mulheres do mundo, todas tinham de ser boas de pernas -literalmente.
Os diretores desses filmes as faziam caminhar quilômetros pelas ruas, sozinhas, em silêncio, cenho franzido, como se buscassem uma comunicação impossível com seus pares, os quais também deviam estar zanzando feito zumbis pela cidade. Era a famosa “incomunicabilidade” - uma doença do progresso, da industrialização, do amesquinhamento dos valores. Quanto mais próximas, menos as pessoas tinham o que dizer. Os casais viviam "em cheque" ou "em situação", como se dizia.
Seja o que for que atormentasse aqueles personagens, só podia ser discutido a dois, ao vivo, entre longas pausas. Não se concebia que, em A Noite, de Antonioni, Moreau entrasse num telefone público, metesse uma ficha e derramasse seus problemas existenciais para Marcello Mastroianni. As pessoas tinham de viver o seu inferno até o fim, em preto e branco, sem esperança de redenção.
Hoje, com todo esse arsenal de meios - celulares, smartphones, androides, twitters, facebooks, Instagrams, SMSs e outros que nem imagino -, não se toca mais em incomunicabilidade. A própria palavra perdeu o sentido.
Mas, pelo que vejo de homens e mulheres de expressão carregada, digitando incansavelmente, na rua, na fila do banco, nas salas de espera, nos saguões e até nos restaurantes - o que essas pessoas tanto falam umas com as outras?-, desconfio que a busca da comunicação seja a mesma. A fartura de meios não eliminou a solidão.

Fontes:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/12556-incomunicabilidade.shtml

CASTRO, Ruy. Morrer de prazer: crônicas da vida por um fio. Rio de Janeiro: Foz, 2013. 


VIDA VIRTUAL
Pesquisa divulgada há pouco revelou que, no mês de julho, o internauta brasileiro passou 23 horas e 30 minutos navegando na internet. Essa marca é uma hora e três minutos maior que a de junho, que, por sua vez, era quase uma hora maior que a de maio, e assim por diante. Ou seja, de 30 em 30 dias, o brasileiro fica mais tempo ligado à rede.
Significa também que, a cada 30 dias, o brasileiro já está passando quase um dia inteiro com os olhos na telinha, os dedos no mouse ou no teclado, as pernas criando varizes, a coluna indo para o beleléu e o cérebro mais na virtual que na real.
Apenas por comparação, as 23 horas e 30 minutos mensais do brasileiro deixam longe as 19 horas e 52 minutos do americano, as 18 horas e 41 minutos do japonês e as 18 horas e sete minutos do alemão. Das duas, uma: ou os americanos, japoneses e alemães têm mais o que fazer, ou nossa apaixonada adesão à internet fará com que, em pouco tempo, os superemos em tecnologia, pesquisa, jornalismo, download e compras, que compõem a internet para adultos. E aí, sim, vamos ver quem tem mais garrafa vazia para vender.
Enquanto esse dia não chega, já podemos pelo menos observar algumas conquistas da internet entre nós. Segundo outra pesquisa, por causa da internet o jovem brasileiro tem deixado de praticar esportes, dormir, ler livros, sair com os amigos, ir ao cinema ou ao teatro e estudar. E, com certeza, está deixando também de praticar outros itens não contemplados pela pesquisa, como namorar, ir à praia ou ao futebol, visitar a avó, conversar fiado ao telefone e flanar pelas ruas chutando tampinhas.
Admito que muitas dessas atividades possam ser substituídas com vantagem pelas horas que o brasileiro passa na internet. Mas flanar chutando tampinhas, não.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0509200705.htm

A VIDA VIRTUAL
Uma amiga pediu licença e tirou o celular da bolsa. Manuseando-o com abissal intimidade e sem sair do lugar, ouviu recados, pagou uma conta no banco, acertou um trabalho em São Paulo, abriu uma foto do namorado, “baixou” uma canção de Sinatra e ligou para casa para dar instruções à criadagem. Tudo isso em minutos, e vindo de uma pessoa que, até anteontem, não sabia nem como clicar o botão de “play” da vitrola.
Diante do meu pasmo por sua atualização tecnológica, ela me disse que usa o celular como computador, internet, câmera, vídeo, cinema, TV, filmadora, MP3, iPod, FM, videogames e, por fim, telefone. E não entende como já foi capaz de viver sem aquele treco que faz tudo exceto aparar-lhe as cutículas.
Como sou dos três ou quatro cidadãos brasileiros que não usam celular (Luis Fernando Verissimo e Caetano Veloso são dois dos outros), até hoje preciso de máquinas específicas, ancoradas em consoles, cômodas ou escrivaninhas, para desfrutar de tais serviços. Algumas dessas máquinas ainda são equipadas com, pode crer, válvulas.
Outro dia, abrindo uma página na internet sem saber para onde ia, deparei com uma frase na tela: “Ruy Castro está no Twitter.” Embora estivesse sozinho em casa, olhei em volta para ver se havia mais alguém ali com o meu nome. Não, não estou no Twitter. Se não for um xará, deve ser um espertinho usando meu nome – o que nem me darei ao trabalho de investigar. E, sem me gabar ou me envergonhar, também não tenho site, blog, MSN, Facebook, Orkut, MySpace, Last.fm, Ning, Vimeo, Flickr, Tumblr ou Rraurl. Estou para a blogosfera como o Lula para a fenomenologia de Husserl.
Sei bem que, acorrentado ao mundo analógico, posso logo me tornar inviável. Ou não. Quem sabe, no futuro próximo, haverá reservas territoriais para pessoas como eu, como se faz com os índios, e até cobrem ingresso para quem quiser nos conhecer.
Céu e mar estão competindo pelo azul nesta primavera carioca – um azul de tinteiro, de caneta Parker, de Technicolor dos anos 50, quebrado penas pelas esquadrilhas de biguás voando com suas formações em flecha. Todas as manhãs, o calçadão Ipanema-Leblon transborda de gente contente por apenas estar ali, exercendo o seu direito de viver. É gente de várias extrações, idades, cores, línguas e de todos os estilos de caminhar ou correr. A exceção é a minoria que, indiferente ao azul, caminha atracada ao celular, o cenho franzido, discutindo coisas inadiáveis.
Minoria na orla, mas maioria ao redor. No próprio calçadão, já vi um homeless em andrajos, sentado na escadaria do Leblon, falando ao celular. Sentei-me ao seu lado como quem não quer nada, tentando ouvir retalhos da conversa. O fulano falava numa língua que eu não entendi, talvez português. Tudo bem, o importante era o mendigo falando ao celular – o meio era a mensagem.
Há pouco, num shopping, um menino de quatro ou cinco anos levava ao ouvido um ursinho de pelúcia. Não sei se no ursinho havia um celular embutido. Podia ser a maneira pela qual o menino enxergava os adultos – todos com um objeto à orelha – e achasse que aquela era a maneira de se incluir no mundo.
Não seria uma visão absurda. Descendo no Santos-Dumont, dia desses, eu era o único na boarding bridge (finger, em português) sem o telefone ao ouvido. Em vez disso, trazia na mão um objeto outrora tão popular quanto o celular: um livro. Por acaso, uma edição de bolso do clássico Memórias de um sargento de milícias.
Institivamente, repeti o gesto de todo mundo e levei o livro à orelha. E, então, deu-se o milagre. Escutei a voz de Leonardo, do Vidigal, da saloia Maria Regalada e dos outros anti-heróis de Manuel Antonio de Almeida. Vozes vindas de um tempo remoto – o tempo do rei - , mas que chegaram a mim com a clareza de uma ligação local.
O jornal impresso é uma mídia física. E, como todas as mídias físicas, corre perigo. Nem o tubarão australiano Rupert Murdoch quer mais "imprimir sobre árvores mortas", como ele ingratamente disse. O jornal do futuro será um celular a ser levado na palma da mão, inclusive para o banheiro, que sempre foi o melhor lugar para ler jornal.
O livro também é uma mídia física. E, como tal, igualmente está com as barbas de molho. Para o seu lugar, já existe o Kindle, um leitor de livros eletrônicos do estoque invisível da Amazon, a famosa loja virtual. A engenhoca "baixa" milhares de títulos, do pioneiro Le mort d'Arthur, de 1485, ao último escritor afegão, irlandês ou africano inventado pelas editoras.
O CD também é uma mídia física, e já quase em estado ectoplásmico. Ninguém mais pensa em comprar discos. Com dois toques num aparelhinho, a música que você quer surge de uma discoteca no espaço e penetra para sempre no seu iPod, indo fazer companhia às 180 horas de música que você já armazenou e que, um dia, pretende ouvir, todas de uma vez.
E o DVD é outra mídia física em avançado estágio de decomposição. Assim como se "baixam" músicas, "baixam-se" filmes, legal ou ilegalmente - de "A Vida de Cristo" (1904), ao último Woody Allen, que ele ainda nem terminou de filmar-, para ser vistos numa telinha de três polegadas. Se você for monoglota, o pirata "baixa" as legendas em português, e está resolvido o problema.
De repente, concluo que, como o jornal, o livro, o CD e o DVD, eu também sou uma mídia física. Donde, como eles, candidato à extinção. Talvez um dia me transforme num espírito puro, virtual. Ou, de preferência, bem sacana, bem impuro – para compensar o intolerável tédio que deve ser a vida virtual.
CASTRO, Ruy. Morrer de prazer: crônicas da vida por um fio. Rio de Janeiro: Foz, 2013. 

A POESIA, A SALVAÇÃO E A VIDA
Eu vivo sob um poder
que às vezes está no sonho,
no som de certas palavras agrupadas,
em coisas que dentro de mim
refulgem como ouro:
a baciinha de lata onde meu pai
fazia espuma com o pincel de barba. 
De tudo uma veste teço e me cubro.
Mas, se esqueço a paciência,
me escapam o céu
e a margarida-do-campo. 

PRADO, Adélia. O coração disparado. Rio de Janeiro: Editora Guanabara S.A., 1987.
MONTREAL NA PRIMAVERA

Recitmos poesia
na sala escura
de longos cortinados
e poltronas que rangem.
Lá fora os jovens
bebem cerveja
e riem nos bares.
Crescem nos galhos
as primeiras folhas
descem louros cabelos
A noite é mora
e clara.
Encostadas nos postes
as bicicletas esperam.

Quando os jovens saírem
apagando a madrugada
só a poesia ficará,
emaranhada na teia
dos velhos reposteiros
de veluo.

COLASANTI, Marina. Rota de colisão. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.


CADERNO DE APONTAMENTOS
VI
Ontem passou por aqui um meu ancestral, que
solfejava Bach:
"Fique conosco, Senhor, que a noite chega".
Ele cantava assim nas estradas mais sujas.
E aquelas borboletas sobre uns ramos de
tomilho cantavam com ele.

BARROS, Manoel de. Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.