sábado, 16 de novembro de 2013

"POIS ANDO ILUMINADA..."




“POIS ANDO ILUMINADA...”
Por Fábio Brito
Quando assisti, em 17 de maio de 2011, ao concerto “Música Clássica na voz de Ithamara Koorax – Opus II”, saí do teatro (do SESI, Rio) em êxtase. Até então, eu não havia assistido a um espetáculo tão bonito, comovente e encantador. Chorei em diversos momentos da apresentação (e que apresentação!). Dias depois, comentei com a própria Ithamara sobre a possibilidade de gravação de um CD com as canções do concerto. Nossa diva me disse, então, que isso era um sonho. Pois bem, o sonho, agora, virou realidade: dia 5 deste mês, no Rival (também no Rio), houve o lançamento do CD “Opus Clássico – Música Clássica na voz de Ithamara Koorax”.
Encantado com a beleza transcendente do CD, lembrei-me de alguns versos do poeta português Fernando Pessoa: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. Pois é, quis Deus, e todas as divindades, que as canções do concerto da Ithamara fossem registradas em CD; quis Ithamara gravá-las de forma espetacular; quis Arnaldo DeSouteiro, um dos mais competentes produtores deste país, produzir essa obra de arte. E, para nosso “deleite”, eis aí o “Opus Clássico”, com a voz “number one” do mundo, o violão de Rodrigo Lima e o piano de Filipe Bernardo.   
Ao receber o CD, não me contive. Fui direto à quarta faixa: “Ária das Bachianas Brasileiras nº 5” (Heitor Villa-Lobos – Ruth Valadares Correa), “Ária nº 1 (Cantilena)”, que é uma das músicas mais bonitas de todos tempos, se não a mais, e a mais conhecida entre todas as melodias villa-lobianas. No mundo, muitos intérpretes a registraram, como as cantoras líricas brasileiras Maria Lúcia Godoy e Bidu Saião e a neozelandesa Kiri te Kanawa. Agora, para nosso deleite, Ithamara Koorax registra-a e realça ainda mais a beleza da música, composta em 1939, em homenagem a Arminda Villa-Lobos, a Mindinha, esposa de nosso maestro.
Na sequência, vem “Prelúdio da Solidão/Prelúdio nº 3”, também do Villa-Lobos e com letra de Hermínio Bello de Carvalho, que é de uma delicadeza sem par: “Se um passarinho for bicar teu sono / saibas que sou eu / sou eu a aurora boreal pousando / em teus trigais (...)”. E a 13ª faixa traz Villa-Lobos novamente, juntando “O Canto do Pajé” e “Melodia Sentimental”. Quanto à primeira, ouvi-a com Ithamara antes mesmo de o “Opus” ser lançado. Ela está na trilha do filme “Glauber o filme, labirinto do Brasil”, dirigido por Silvio Tendler. A cena que mostra o sepultamento do cineasta tem como trilha “O Canto do Pajé” na portentosa voz de Koorax. “Melodia sentimental” também dispensa apresentações. Gravada por muitos intérpretes, como Maria Bethânia, Zizi Possi, Ney Matogrosso, Djavan e Olívia Byington, essa beleza rara não poderia ficar fora do repertório de Ithamara, que a regravou divinamente: deu o tom exatinho em cada nota, mas sem perder a emoção que a canção requer. Simplesmente deslumbrante a gravação. Ela deve ser ouvida durante a madrugada, com todas as luzes apagadas e, como disse Clarice Lispector, com as mãos sobre a “eletrola”. Uma gravação assim exige que se solenize o momento.
Bom, depois de Villa-Lobos, vamos “começar pelo começo”. A faixa que abre o CD, que é nada mais, nada menos que “Vocalise” (Sergei Rachmaninoff), nos dá o mote: “prepare o seu coração” para as coisas que Ithamara irá ‘nos’ contar/cantar, porque todas as faixas nos levarão ao “nirvana”. Essa preciosidade de Rachmaninoff e a faixa nº 8, “Pavane” (Gabriel Fauré), parecem ternos e doces acalantos. Lembram água de rio que vai correndo, correndo... até encontrar o mar.
A segunda é uma velha conhecida, “Iluminada/Balada em sol menor” (Frederic Chopin/Ary Sperling/Aldir Blanc), canção que fecha o álbum “Serenade in blue” e é, até hoje, um dos maiores sucessos da trilha da minissérie Riacho Doce, exibida em 1990. De lá ‘pra’ cá, Ithamara marcou de forma indelével a Música Popular Brasileira e a alma de todos nós. No “Opus”, nossa diva se superou: a gravação ficou ainda mais delicada: em alguns momentos, a delicadeza é tanta, que a voz parece que vai ‘se’ quebrar. Momento único. “Sentindo o coração parar / Eu bebo teu olhar, teu beijo / As nuvens que eu vejo passar / São mãos do meu desejo / a buscar o teu amor (...)” Taí mais uma letra irretocável do Aldir Blanc. Se mais não fosse, valeria por esta metáfora: “Raia o sol, hóstia incendiada”.
E por falar em trilha sonora, a sexta faixa é “Corpo e luz/Ária da ópera Tristão e Isolda (Richard Wagner/André Sperling/Paulo César Pinheiro), que está na trilha da novela “Fera Ferida”. Eis mais outra bela letra, desta vez de um de nossos mais pródigos letristas, Paulo César Pinheiro, o poeta da inesquecível “Viagem”, parceria com João de Aquino e sucesso da também inesquecível Marisa Gata Mansa. À semelhança do que ocorreu com “Iluminada”, Ithamara recriou “Corpo e luz” ainda melhor. Aliás, Koorax está cantando cada vez melhor, se é que isso ainda é possível.
“O Trenzinho do Caipira”, outra que figura entre as mais populares melodias do baú villa-lobiano e que ganhou letra do escritor Ferreira Gullar, é a terceira faixa do CD: “Lá vai o trem com o menino / Lá vai a vida a rodar / Lá vai ciranda e destino / Cidade noite a girar (...)”.. Graciosidade e leveza não faltaram à interpretação, que é o que ela pede. Ponto ‘pra’ Ithamara! Muitos pontos ‘pra’ Ithamara!
“Adagio do ‘Concierto de Aranjuez’”, a faixa 7, ganhou uma interpretação sensualíssima. A voz cálida e firme dá um toque ainda maior de refinamento à canção de Joaquim Rodrigo. O mesmo ocorreu com “The Lamp is Low/Pavane” (Maurice Ravel / Michael Parish / Peter de Rose / Bert Shefter), a nona faixa.
“As pombas”, que vem logo em seguida, é uma faixa extraordinária. A melodia de Chiquinha Gonzaga, nossa grande maestrina, casou-se perfeitamente com o poema de Raimundo Correa, que, ao lado de Olavo Bilac e Alberto de Oliveira, é um dos mais importantes poetas do Parnasianismo: “Vai-se a primeira pomba despertada... / Vai-se outra mais... mais outra... / enfim dezenas / De pombas vão-se dos pombais, apenas / Raia sanguínea e fresca a madrugada...”. Excelente! Impossível, agora, dar aulas sobre o Parnasianismo sem levar essa gravação de “As pombas”. A literatura agradece... e nós, professores, muito mais.
Ainda na seara dos grandes escritores, uma grata surpresa: “Coração Triste”, um poema traduzido por nosso Machado de Assis (ou “imitado" da versão poética "Coração Triste Falando ao Sol", de Su-Tchon, como consta em alguns sites), com música de Alberto Nepomuceno: “No arvoredo sussurra o vendaval do outono / Deita as folhas à terra, onde não há florir / E eu contemplo sem pena esse triste abandono / Só eu as vi nascer, vejo-as só eu cair (...). Uma raridade imprescindível à nobreza e ao requinte do CD.
“Modinha”, a décima segunda faixa, é de autoria da pianista Delza Agricola, mãe e professora de piano clássico e harmonia do produtor do CD, Arnaldo (Agricola) DeSouteiro. Vale, aqui, um velho ditado: “Quem sai aos seus não degenera”. Sabemos, agora, de onde vem o talento desse moço. A música e a letra são encantadoras: “Escrevi teu nome n’água para desaparecer / mas a água virou gelo / e eu não pude te esquecer (...)”. Inebriante...
Fechando o CD, “Stranger in Paradise/Danças Polovtzianas” (Alexander Borodin/George Forrest/Robert Wright) – “My Reverie” (Claude Debussy/Larry Clinton), esta com a participação de um dos músicos mais importantes do mundo, o trombonista Raul de Souza. Fechar um CD com Debussy e Raul de Souza “é luxo só”.  Luxo para poucos, convenhamos.
Sobre a voz da Ithamara, e que respeitosa voz!, muita gente não se cansa de tecer elogios e mais elogios. No encarte do CD “Tributo à Stellinha Egg”, o respeitadíssimo crítico musical Tárik de Souza diz que a voz de nossa diva é “ampla, voluptuosa e repleta de nuances”. Dizer mais o quê? Ah, há sempre muito o que se dizer sobre “a” voz. Dizer, por exemplo, que, independentemente de a música ser clássica, popular ou “jazz”, todas as interpretações de Ithamara têm sempre um quê que as distingue das demais leituras que fizeram, ou que ainda farão. É a tal da assinatura. À semelhança de Elis Regina, Ithamara tem o dom de não repetir quaisquer interpretações, além, é claro!, de enxergar sempre muito à frente. Questão de inteligência musical. Nada do que ela grava fica burocrático. Pode ser a canção mais conhecida, que sempre haverá quem diga: “– Ela conseguiu fazer diferente”. Ithamara é um desafio para qualquer “Tinhorão”, porque é impossível garimpar alguma imperfeição em tudo o que ela grava. Se eu fosse um crítico de música e tivesse de avaliar o CD “Opus Clássico”, minha cotação seria esta: todas as estrelas e mais uma. A música mais nobre pede sua bênção, Ithamara. Salve!

“Vejo que nunca te disse como escuto música – apoio de leve a mão na eletrola e a mão vibra espraiando ondas pelo corpo todo: assim ouço a eletricidade da vibração, substrato último no domínio da realidade, e o mundo treme nas minhas mãos.”
In: LISPECTOR, Clarice. 

ÚLTIMA CANÇÃO 

Deus,
eu faço parte do teu gado
esse que confinas em sonho e paixão
e às vezes em terrível liberdade.
Sou, como todos, marcada neste flanco
pelo susto da beleza, pelo terror da perda
e pela funda chaga dessa arte
em que pretendo segurar o mundo.
No fundo,
Deus,
eu faço parte da manada
que corre para o impossível,
vasto povo desencontrado
a quem tanges, ignoras
ou contornas
com teu olhar absorto.

Deus,
eu faço parte do teu gado,
estranhamente humano,
marcado para correr amar morrer
querendo colo, explicação, perdão
e permanência.   

In: LUFT, Lya. 

TOADA

Cantiga triste, pode com ela
É quem não perdeu a alegria.

PRADO, Adélia. 


MINHA SAUDADE
João Donato / João Gilberto
Minha saudade
É a saudade de você
Que não quis levar de mim
A saudade de você
E foi por isso
Que tão cedo me esqueceu
Mas eu tenho até hoje
A saudade de você
Eu já me acostumei
A viver sem teu amor
Mas só não consegui
Foi viver sem ter saudade
Minha saudade
É a saudade de você
Que não quis levar de mim
A saudade de você

In: “Ithamara Koorax & Juarez Moreira – Bim Bom – The complet João Gilberto songbook", 2008/09.

FICA MAL COM DEUS
Geraldo Vandré 

Fica mal com Deus
Quem não sabe dar
Fica mal comigo
Quem não sabe amar  

Pelo meu caminho vou
Vou como quem vai chegar
Quem quiser comigo ir
Tem que vir do amor
Tem que ter pra dar 

Fica mal com Deus
Quem não sabe dar
Fica mal comigo
Quem não sabe amar  

Vida que não tem valor
Homem que não sabe dar
Deus que se descuide dele
O jeito a gente ajeita
Dele se acabar

Fica mal com Deus
Quem não sabe dar
Fica mal comigo
Quem não sabe amar  

In: “Tributo à Stellinha Egg”, 2007.

PREDESTINADO AMOR
Maurício Carrilho – Paulo César Pinheiro  

Antes de você
O amor era pra mim
Não mais que um sentimento indiferente
Saciava assim
O meu desejo mais ardente
Sem ficar nem triste nem contente 

Antes de você
Eu tinha a ilusão
Que apenas o prazer era o esplendor
Hoje eu sei por que
Estava com você
O meu predestinado amor 

Antes de você
Eu só pensava no presente
Nada havia antes nem na frente
Hoje com você
Tempo de nós dois
Se escreve com a palavra eternamente 

In: “Itamara Koorax ao vivo”, 1993.  


ILUMINADA/BALADA EM SOL MENOR nº 1
(Frederic Chopin/Ary Sperling/Aldir Blanc) 

Sentindo o coração parar
Eu bebo teu olhar, teu beijo
As nuvens que eu vejo passar
São mãos do meu desejo
Ao buscar o teu amor...
A vida pode se acabar
Porque eu tive um momento pleno
Se o meu futuro for só lembrar
Teus lábios de veneno
Viverei desse amor
Raia o sol, hóstia incendiada
Na manhã transformada
Em altar do meu amor
A lua branca se escondeu
Fingindo que não sabe de nada
Seu brilho e bem menor do que o meu
Pois ando iluminada pelo sol de um grande amor...

In: “Opus Clássico – Música clássica na voz de Ithamara Koorax, 2013.  


PRELÚDIO DA SOLIDÃO/PRELÚDIO nº 3
(Heitor Villa-Lobos – Hermínio Bello de Carvalho)  

Se um passarinho for bicar teu sono
saibas que sou eu
Sou eu a aurora boreal pousando
em teus trigais
E se uma estrela encandecer-se no
breu dos teus breus
hás de saber (fazer) então das trevas que
me são mortais
Ei de vergar-me então como o
mais reles dos plebeus
para dizer-te o quanto o meu amor
é tão ateu e herege como os
fariseus
Que um dia Cristo expulsou do templo
sem lhes dar perdão
chicoteando, escorraçando aqueles
vendilhões, e eu me sinto tal e qual um
torpe e vil pagão
que nem provou da hóstia e o vinho
em Santa Comunhão
Mas que roubou sem dó as cordas do
teu coração
e encordoou com elas sua enorme
solidão 

In: “Opus Clássico – Música clássica na voz de Ithamara Koorax, 2013.
     “Lira do povo”, Hermínio Bello de Carvalho, 1985.