quarta-feira, 4 de maio de 2011

'EVA NEGRA'



Lá vem Clementina de Jesus! Ouvi a Rainha Negra Quelé pela primeira vez no disco As forças da natureza, que Clara Nunes lançou em 77. A canção era P. C. J. Partido Clementina de Jesus (Candeira): “Não vadeia, Clementina / Fui feita pra vadiar (...)”. A gravação é excelente. Mas quando ouvi Assim não, Zambi, do Martinho da Vila, fiquei encantado. O que era tudo aquilo? Ouvia, e ainda ouço, a canção inúmeras vezes: “Quando eu morrer / Vou bater lá na porta do céu / E vou falar pra São Pedro / Que ninguém quer essa vida cruel / Ninguém quer essa vida assim não, Zambi (...)”. A parte falada da música é engraçadíssima. E a voz? Que voz! De onde vem? Das profundezas da terra, acredito. De onde, como disseram Gil e Dominguinhos (em De onde vem o baião), “suspira uma assustança sustentada por um sopro divino”. E o canto de Clementina é divino, magistral. Todos sabem que Hermínio Bello de Carvalho a descobriu na Taberna da Glória cantando um repertório recheado de lundus, jongos e caxambus. Depois, levou-a para o lendário espetáculo Rosa de ouro. Sucesso total. A jornalista Lena Frias, referindo-se a esse espetáculo e ao canto de Clementina, disse tudo: “A voz parecia subir da terra, vir do oco do tempo, provocando sentimentos perturbadores e antigos, chamando memórias talvez dessa Eva negra, germinal africana de toda a raça humana (...)”*. Ary Vasconcelos não deixou por menos: “A descoberta de Clementina de Jesus teve para a música popular brasileira uma importância que presumo corresponder na antropologia à do achado de um elo perdido. (...)”**. Quando começou a carreira, já era sexagenária. Que transgressão! Há uma história de que, em apresentações coletivas que tinham Clementina como uma das atrações, ninguém queria cantar depois da rainha, porque o público só queria ouvir Clementina. São muitas homenagens à rainha Quelé. Comecemos por Zé Kéti, que a homenageou com Clementina de Jesus, gravada por Simonal em seu Alegria tropical, de 1982. Em Canto por um novo dia, disco de 1973, Beth Carvalho gravou Clementina de Jesus, de Gisa Nogueira. Em Olho D’água, de 1992, Bethânia registrou Rainha negra, de Moacyr Luz e Aldir Blanc. Em 2006, Olívia Byington registrou, em dueto com Bethânia, Mãe Quelé, parceria da própria Olívia com Tiago Torres da Silva: “Mãe Quelé / Mãe Quelé / Coração de jacarandá (...) / Comadre dos ventos / Madrinha dos bichos / Negra Bethânia / com riso de flor / Rainha da lava / Irmã do abismo / África à vista / do Arpoador (...)”. Clementina é mãe-rainha de todos.  
* PAVAN, Alexandre. Timoneiro: perfil biográfico de Hermínio Bello de Carvalho. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006. p. 21.
**___________. P. 76.

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