quinta-feira, 5 de maio de 2011

DOCE PIMENTA



Em 1969/70, Elis Regina não “saía” das rádios. Ela venceu, em 69, a I Bienal do Samba com a canção Lapinha, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro: “Quando eu morrer me enterrem na Lapinha / Calça-culote, paletó-almofadinha / Vai, meu lamento, vai contar / Toda a tristeza de viver / Ai, a verdade sempre dói / E às vezes traz / Um mal a mais (...)”. Bem pequeno, é óbvio que eu não entendia alguns versos da letra. Meu vocabulário, assim como o de qualquer criança, também era limitado. Daí eu ouvir certas palavras, mas entender outras. Em minha “versão”, os primeiros versos desse samba eram estes: “Quando eu morrer me enterrem na ‘latinha’ (...)”. E sabe o que eu imaginava? Uma latinha de sardinha, talvez um dos poucos enlatados que eu conhecia naquele início da década de 70. E a voz que entoava os versos de Lapinha era portentosa: a da maior cantora do Brasil. Elis era uma perfeição. A que melhor sabia dosar técnica e emoção. Uma das todo-poderosas da MPB. Aquela que, segundo Edu Lobo, “tinha cabeça de músico”. Elis transgredia porque “se” metia na pequena área dos músicos, mesmo sabendo que eles eram muito ciosos de seu (deles) poder. Palpitava sempre. Quando, por exemplo, não queria determinado acorde, a “Pimentinha” enfrentava qualquer um. Ao fim, valia sua opinião. Elis tinha uma segurança musical tão grande que brincava com a divisão das músicas. Fazia, de fato, o que queria. Essa insuperável “divisão” é um claro exemplo de sua técnica apuradíssima. Tinha musicalidade e ritmo incomparáveis, além da afinação, é claro. E nunca “estudou” música. Por pura intuição, ela dominava técnicas de canto dificílimas, dizem os estudiosos. Todas as gravações de Elis são inesquecíveis e impecáveis. Ela é referência para inúmeras cantoras. Tudo o que gravou passou a ser “dela”. Trabalho de coautoria mesmo. Já reparou que pouca gente “revisita” seu repertório? Há que se ter muita ousadia para fazê-lo. Há muito tempo que sei de cor muitas de “suas” canções, como Aos nossos filhos, de Ivan Lins e Vitor Martins, por exemplo: “Perdoem a cara amarrada / Perdoem a falta de abraço / Perdoem a falta de espaço / os dias eram assim (...)”. No verso “Perdoem a falta de escolha”, atenção redobrada para esse ‘perdoem’, que dói bem lá no fundo. É entrega total da intérprete. Toda essa beleza está no fundamental Saudade do Brasil, de 1980. E As aparências enganam? Esta não foi feita somente para ser cantada, mas para ser declamada bem alto: “As aparências enganam / Aos que odeiam e aos que amam / Porque o amor e o ódio se irmanam na fogueira das paixões (...)”. Não há quem não se recorde do especial Elis Regina Carvalho Costa, exibido em 1980. Ao interpretar Atrás da porta, de Chico e Francis [“Quando olhaste bem nos olhos meus / E o teu olhar era de adeus (...)”], sentada em um banco, ela chora copiosamente. A cena é mais do que comovente. Choramos todos com ela. Nesse mesmo especial, logo depois de Atrás da porta, ela também arrasa com Cadeira vazia, de Lupicínio: “Entra, meu amor / Fica à vontade / E diz com sinceridade / O que desejas de mim (...)”. Repare, em especial, quando ela “diz” “tu és a filha pródiga que volta”. A voz está com um metal lindo. Em 1977, Elis me emocionou muito com a gravação de Romaria (Renato Teixeira): “É de sonho e de pó / O destino de um só / Feito eu perdido em pensamento / Sobre o meu cavalo (...)”. Lembro-me claramente das vezes em que, na escola em que eu estudava, essa canção – juntamente com outras do repertório da Clara – era o “sinal”, ou seja, marcava o início, o término das aulas e os intervalos entre elas. Eu era um garoto e ficava fascinado com a beleza da interpretação e com as imagens que a canção evocava. Nesse mesmo disco de Romaria, há outra canção também de Renato Teixeira e não menos excepcional que Romaria: Sentimental eu fico: “Sentimental eu fico / Quando pouso na mesa de um bar / Eu sou um lobo cansado / Carente de cerveja e velhos amigos (...)”. Em se tratando de interpretações inesquecíveis de Elis, impossível não citar Como nossos pais (Belchior) [“Não quero lhe falar meu grande amor / Das coisas que aprendi nos discos (...)], que fez parte de um dos maiores espetáculos de todos os tempos, Falso brilhante, de 1976, recorde de bilheteria e de permanência em cartaz. Ai, que saudade do Brasil de Elis Regina. Pena as novas gerações não conhecerem Elis. Triste saber o que elas conhecem. Pena as novas gerações não conhecerem o Brasil mais verdadeiro, mais poético, mais musical, mais nobre. Pena as novas gerações só conhecerem as inutilidades que tocam nas rádios. E tocam para quê? Para nada! Ou melhor: para que sejam esquecidas minutos depois. Ou não.




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