segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

"MAIS BONITA QUE A DE ROBINSON CRUSOÉ..."


Meninos Brincando (óleo sobre madeira, 1958, 36.5 x 28.5 cm) - Portinari
A INFÂNCIA COMO PERIGO
Eduardo Galeano

Os fatos zombam dos direitos. Retrato da América Latina no final do milênio: esta é uma região do mundo que nega a suas crianças o direito de serem crianças. Elas são as mais presas entre todos os presos. O sistema de poder, no qual o único vínculo é o pânico mútuo, maltrata as crianças. As crianças ricas, trata como se fosse dinheiro. As pobres, como lixo. E mantém atadas às patas do televisor as crianças da classe média.
No oceano dos necessitados, as ilhas dos que têm mais convertem-se em luxuosos campos de concentração, onde poderosos só se encontram com poderosos e jamais podem esquecer, nem por um momento, que são poderosos. Em algumas das grandes cidades latino-americanas, onde os sequestros viraram costume, as crianças ricas crescem fechadas dentro de uma bolha de medo. Vivem em mansões amuralhadas, grandes casas rodeadas por cercas eletrificadas e estão dia e noite vigiadas por guarda-costas armados e por circuitos fechados de TV. Viajam – como o dinheiro – em carros blindados. Não conhecem, mais que superficialmente, a cidade onde vivem. Encantam-se com o metrô em Paris ou Nova York, mas jamais o usam em São Paulo ou na cidade do México. A elas é proibido esse vasto inferno que espia seu minúsculo céu privado. Além das fronteiras do privilégio, estende-se uma região de terror onde as pessoas são feias, sujas e perigosas. Em plena era da globalização, as crianças ricas não pertencem a lugar nenhum. Crescem sem raízes, despojadas de identidade nacional. O único sentido social que têm é a certeza de que a realidade é uma ameaça. Sua pátria são as marcas multinacionais e sua linguagem, os códigos internacionais. As crianças ricas das mais variadas cidades se parecem em seus costumes, tanto quanto se parecem entre si os shopping centers e os aeroportos. Educadas numa realidade virtual, ignoram a realidade real, que só existe para ser temida ou comprada.Treinadas para o consumo e para fugacidade desde o nascimento, as crianças ricas passam a infância inteira acreditando que as máquinas são mais dignas de confiança do que as pessoas.
Muito antes de as crianças ricas deixarem de ser crianças e descobrirem as drogas caras que espantam a solidão e mascaram o medo, as crianças pobres já cheiram cola. Enquanto as ricas lutam com balas de raios laser, as balas de chumbo crivam as crianças da rua. Entre todos os reféns do sistema, as crianças em estado de pobreza absoluta são as mais prejudicadas. A sociedade as espreme, vigia, castiga, mata: quase nunca as escuta, jamais as compreende. Nascem com as raízes para o ar. Muitas são de famílias camponesas brutalmente arrancadas de sua terra e desintegradas na cidade. Entre o berço e a sepultura, a fome ou as balas abreviam a viagem. De cada duas crianças pobres, uma trabalha, descadeirando-se em troca de comida ou pouco mais. Vende quinquilharias nas ruas, é a mão-de-obra gratuita das oficinas e cantinas familiares, é a mão-de-obra barata das indústrias de sapatos exportação. E a outra: de cada duas crianças pobres, uma sobra. O mercado não precisa dela. Não é rentável, jamais o será. E quem não é rentável – e isso já se sabe – não tem direito à existência. O mesmo sistema produtivo que despreza os velhos expulsa as crianças. E as teme. Do ponto de vista do sistema, a velhice é um fracasso, mas a infância é um perigo.
Em muitos países latino-americanos, a hegemonia do mercado está rompendo os laços de solidariedade e está esgarçando o tecido social comunitário. Que destino têm os donos de nada em países onde o direito de propriedade está se tornando o único direito sagrado? As crianças pobres são as que mais ferozmente sofrem com a contradição de uma cultura que as impele a consumir e uma realidade que as impede. A fome as força a roubar ou prostituir-se. A sociedade de consumo as insulta oferecendo-lhes o que a elas nega. E elas se vingam lançando-se ao assalto. Nas ruas das grandes cidades, formam bandos de desesperados unidos pela morte que os espreita. Segundo a organização Human Rights Watch, grupos paramilitares matam seis crianças por dia na Colômbia e quatro no Brasil.
Entre uma ponta e outra, o meio. Entre as que vivem prisioneiras do desamparo e as que vivem prisioneiras da opulência, estão as crianças que têm muito mais que nada e muito menos que tudo. Cada vez mais as crianças de classe média são menos livres. Sua liberdade é confiscada, dia após dia, pela sociedade que sacraliza a ordem enquanto engendra a desordem. Nestes tempos de instabilidade social, onde se concentra a riqueza e a pobreza se difunde em ritmo implacável, quem não sente que o chão treme sob seus pés? A classe média vive em estado de hipocrisia, simulando ter mais do que tem, mas nunca foi tão difícil cumprir esta abnegada tradição. Está hoje paralisada pelo pânico de perder o trabalho, o carro, a casa, as coisas. O pânico de não chegar a ter o que se deve ter para começar a existir. A sofrida classe média ainda defende a ordem estabelecida como se fosse sua dona, mesmo que não seja mais do que uma inquilina da ordem, mais que nunca oprimida pelo preço do aluguel e pela possibilidade do despejo.
No pânico de viver e de cair, cria seus filhos. Apanhadas nas armadilhas do pânico, as crianças de classe média estão cada vez mais condenadas à humilhação da prisão perpétua. Na cidade do futuro, que já está sendo presente, as telecrianças, vigiadas por babás eletrônicas, contemplarão a rua da janela: a rua proibida por causa da violência; a rua onde ocorre o sempre perigoso, e às vezes prodigioso, espetáculo da vida. 

Fonte: Revista "Atenção", ano 2, n 8, 1996.

 INFÂNCIA
A Abgar Renault

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
Comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.


ANDRADE, Carlos Drummond de / seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico por Rita de Cássia Barbosa. - 2. ed. - São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Literatura comentada).




2 comentários:

  1. Fábio, meu amigo, que bela crônica de Galeano, não? E a poesia de Drummond (?) é sem comentários. O que mais IRRITA é saber que em 1996 já eram conhecidos os malefícios dessa sociedade e até hoje nada foi feito contra, ou a favor das crianças.

    Abração, amigo,

    Rodrigo Davel

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  2. Rodrigo, meu querido, sempre gostei muito desse texto, atualíssimo, do Galeano. Quanto ao do Drummond, "sem comentários"...
    Obrigado pela visita.
    Abração, Fábio

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