sábado, 30 de abril de 2011

'TAMBOR DE TODOS OS RITMOS' (de 'Oração ao Tempo', Caetano Veloso)

O GRANDE CLANDESTINO
Colaboração do amigo Rondinelli Thomazelli
 
Eu me distraio muito com a passagem do tempo.
Chego às vezes a dormir. Durmo meses e anos. O tempo então aproveita e passa escondido. Mas que velocidade.

Basta ver o estado das coisas depois que desperto; quase todas fora do lugar, ou desaparecidas; outras, com uma prole imensa; outras ainda alteradas e irreconhecíveis.
Se durmo de novo, e acordo, repete-se o fenômeno.
Sempre pensei que o tempo fizesse tudo às claras. Oh, não...
Eu queria convidá-los a assistir ao que ele tem feito comigo. Mas é espetáculo todo íntimo e não disponho de tribunas. 

Além do mais, o tempo em pessoa é praticamente invisível, como a ventania. Só se pode apreciar o resultado do seu trabalho, nunca a sua maneira de trabalhar.
O que é preciso é nunca dormir e ficar vigilante para obrigá-lo ao menos a disfarçar de suas metamorfoses.

É de fato penoso deixar de ver as coisas tais como as vimos a primeira vez. O tempo tudo transforma e arrasa, sem nos dar aviso.
Ora, isso entristece. Isso nos deixa intranquilos. A não ser que nos misturemos com ele, façamos dele um aliado.

Ai, sim, destruição e reconstrução se confundem. Sacos e sacos vão se enchendo e esvaziando toda a vida. Perde se até a ideia da morte. Então a gente aproveita para erigir sistemas, tomar iniciativas, amar, lutar e cantar. O tempo fica assim tão escondido dentro de nós que se tem a impressão que fugiu para sempre e se esqueceu.
 
Em verdade, ele não repousa nunca. Nem mesmo nas pirâmides. Nem nos horizontes onde parece pernoitar.

Rói as pedras como o vento, rói o osso como o cão. O que mais admira é a extrema delicadeza com que pratica essas violências.

Todos falam de sua impassibilidade. Não é bem isso. Tanto assim que aumenta a velocidade à medida que nos distanciamos de nossas origens e quase para quando esperamos a solidão.
Meu mal é sentir-lhe a passagem como a de um animal na noite. Chego quase a tocar nele. Fico horas à janela vendo-o passar. É um vício.
 
Oh, como se diverte... Para ele, destruir uma árvore, um rosto, uma instituição, uma catedral... tanto faz.
O desagradável é quando de repente se retira dalgum objeto ou de alguém. É claro que prossegue depois, mas deixa uma coisa morta. Franqueza, nessa hora da um aperto no coração, uma nostalgia...
Contudo, não se deve ligar demasiada importância ao tempo. Ele corre de qualquer maneira.
E é até possível que não exista.
Seu propósito é envelhecer o mundo.
Mas a resposta do mundo é renascer sempre para o tempo.


MACHADO, Aníbal. Seleta em prosa e verso, 1974.



TEMPO E ARTISTA
Chico Buarque

Imagino o artista num anfiteatro
Onde o tempo é a grande estrela
Vejo o tempo obrar a sua arte
Tendo o mesmo artista como tela

Modelando o artista ao seu feitio
O tempo, com seu lápis impreciso
Põe-lhe rugas ao redor da boca
Como contrapesos de um sorriso

Já vestindo a pele do artista
O tempo arrebata-lhe a garganta
O velho cantor subindo ao palco
Apenas abre a voz, e o tempo canta

Dança o tempo sem cessar, montando
O dorso do exausto bailarino
Trêmulo, o ator recita um drama
Que ainda está por ser escrito

No anfiteatro, sob o céu de estrelas
Um concerto eu imagino
Onde, num relance, o tempo alcance a glória
E o artista, o infinito

http://www.chicobuarque.com.br/construcao/index.html

O TEMPO

A eternidade não depende de nós.
Precários seres, manchados de limites,
incapazes de dar vida
a qualquer coisa que dure para sempre,
já nasceram soletrando o Never more.
Tudo o que o homem faz é perecível.
A começar pelo próprio homem,
ração diária predileta
do tempo, desde o instante
em que o tempo acompanhou
a expansão de uma galáxia:
um pássaro invisível,
as asas cheias de auroras,
de cujo bico escorria
o silêncio do arco-íris.

MELLO, Thiago de. Poemas preferidos pelo autor e seus leitores: edição comemorativa dos 75 anos do autor / Thiago de Mello. - 4ª ed. - Ro de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. 

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