quinta-feira, 21 de abril de 2011

CARGA 'TOMBADA' NÃO TEM DONO?

            Fábio Brito

Em seu conto “Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência”, Rubem Fonseca, de forma contundente, narra a história de uma acidente numa rodovia em que um ônibus atropela uma vaca, que morre. Os moradores das redondezas correm para o local do acidente. De início, o narrador é levado a pensar que esses moradores vão socorrer as vítimas. Puro engano. Eles correm para desossar a vaca e nem se lembram das pessoas envolvidas no tal acidente.
A história desse conto veio-me à cabeça dias atrás, quando, em minhas caminhadas noturnas, encontrei uma bolsa feminina jogada no asfalto de uma rua bem movimentada. Como alguém perde uma bolsa numa rua assim?, pensei. Sem titubear, peguei-a e, imediatamente, pensei no desespero da dona àquela ‘altura dos acontecimentos’. Pelo peso, imaginei a vida de alguém guardada ali. Porque faltava ainda uma hora para que eu chegasse a casa, tive a ideia (infeliz, por sinal) de pedir ajuda a um morador que, alguns metros depois, estava sentado na varanda de sua casa. Eu queria apenas encontrar algum telefone (ou qualquer outro dado) que me pusesse em contato com a pessoa certa. Aí é que vem o pior: fiquei assustado quando percebi que a intenção de meu “ajudante” naquele momento era “saquear” (expressão mais do que adequada) a tal bolsa. Num misto de espanto e raiva, puxei-a e agradeci ao senhor (que parecia boa gente) a “valiosa” ajuda. Disse-lhe mais: que eu, sozinho, resolveria o assunto.
No trajeto até minha casa, outras histórias vieram à lembrança, como a de caminhões que tombam e têm suas cargas saqueadas em poucos segundos. Já assisti a diversos episódios assim. Certa vez, na BR 101, pude, com espanto (que não há de desaparecer nunca!), ver pessoas criando trilhas no mato para a “armazenagem” dos produtos que conseguiram juntar. Se minha memória ainda estiver boa, o produto era um famoso “achocolatado”. Uma vez que não tinham condições de levar a mercadoria para casa numa viagem só, várias pessoas a ‘guardavam’ no mato mesmo. Outros chegavam com ‘carrinho de mão’... e outros ainda abriam portas e porta-malas de carros. Tinham de ser rápidos.
Nesses acidentes, uma pergunta sempre ‘me’ intrigou: ‘carga tombada’ deixa de ter dono? Por quê? Bolsa perdida em asfalto deixa de ter dono? Por quê? Tudo o que é esquecido em algum canto deixa de ter dono? Por quê? Será que a culpa é do ditado que afirma não ser “roubado” o que é achado? Ainda por cima, o tal ditado acusa de relaxada a pessoa que, sabe Deus por que motivos, acabou perdendo algum objeto. Por que a ‘lógica’ da desonestidade tem de prevalecer? O simples fato de uma carga ir ao chão, por exemplo, é o bastante para que ela deixe de pertencer a alguém? De onde nasceu isso? É o simples tombo que muda tudo? Não consigo, sinceramente, entender. Muitos poderão argumentar: tudo bem, o seguro ‘cobre’. Se não cobrisse, as pessoas agiriam diferentemente? Claro que não! Será que todo homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe?
Pois é, não me canso de ouvir pessoas (independentemente de classe social, raça, sexo, estado civil...) reclamando da desonestidade que, aos borbotões, é encontrada na esfera política, por exemplo. Sem pestanejar, responda: o senhor que pretendia “saquear” a bolsa encontrada no asfalto é menos desonesto que qualquer político assumidamente envolvido em falcatruas? É muito fácil (simples até) censurar e sair por aí esbravejando e tocando trombeta quando qualquer assunto envolvendo desonestidade está um pouco distante de nós. Quando alguém tem a oportunidade de “levar vantagem”, mesmo que à custa do sofrimento alheio, não há desonestidade? Bem disse Cazuza, em parceria com Denise Barroso e Frejat, na letra de ‘Milagres’: “Que tempo mais vagabundo / Esse agora / Que escolheram pra gente viver”. Tristes tempos, “hein”!

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