domingo, 19 de fevereiro de 2012

CRIANÇAS 'DE' OU 'NA' RUA?



HÁ UMA CRIANÇA NA RUA
Armando Tejada Gomez
A esta hora, exatamente, há uma criança na rua.
É honra do homem proteger o que cresce,
Cuidar que não haja infância dispersa nas ruas,
Evitar que naufrague seu coração de barco,
Sua incrível aventura de pão e chocolate,
Transitar seus países de bandidos e tesouros
Colocando uma estrela no lugar da fome.             
De outro modo é inútil ensaiar na terra a alegria e o canto,
De outro modo é absurdo, porque de nada vale se há uma criança na rua.
E a esta hora, exatamente,  há uma criança na rua.

              Acesse este link:       
                       Colaboração da amiga Therezinha Fassarela

DE QUEM SÃO OS MENINOS DE RUA?  
          Marina Colasanti

          Eu, na rua, com pressa, e o menino segurou no meu braço, falou qualquer coisa que não entendi. Fui logo dizendo que não tinha, certa de que estava pedindo dinheiro. Não estava. Queria saber a hora.  
          Talvez não fosse um Menino De Família, mas também não era um Menino De Rua. É assim que a gente divide. Menino De Família é aquele bem-vestido com tênis da moda e camiseta de marca, que usa relógio e a mãe dá outro se o dele for roubado por um Menino De Rua. Menino De Rua é aquele que quando a gente passa perto segura a bolsa com força porque pensa que ele é pivete, trombadinha, ladrão.
Ouvindo essas expressões tem-se a impressão de que as coisas se passam muito naturalmente, uns nascendo De Família, outros nascendo De Rua. Como se a rua, e não uma família, não um pai e uma mãe, ou mesmo apenas uma mãe os tivesse gerado, sendo eles filhos diretos dos paralelepípedos e das calçadas, diferentes, portanto, das outras crianças, e excluídos das preocupações que temos com elas. É por isso, talvez, que, se vemos uma criança bem-vestida chorando sozinha numa shopping-center ou num supermercado, logo nos acercamos protetores, perguntando se está perdida, ou precisando de alugma coisa. Mas se vemos uma criança maltrapilha chorando num sinal com uma caixa de chicletes na mão, engrenamos a primeira no carro e nos afastamos pensando vagamente no seu abandono.
Na verdade, não existem meninos De rua. Existem meninos NA rua. E todo vez que um menino está NA rua é porque alguém o botou lá. Os meninos não vão sozinhos aos lugares. Assim como são postos no mundo, durante muitos anos também são postos onde quer que estejam. Resta ver quem os põe na rua. E por quê.
(...)
Quando eu era criança, ouvi contar muitas vezes a história de João e Maria, dois irmãos filhos de pobres lenhadores, em cuja casa a fome chegou a um ponto em que, não havendo mais comida nenhuma, foram levados pelo pai ao bosque, e ali foram abandonados. Não creio que os (...) milhões de crianças brasileiras abandonadas conheçam a história de João e Maria. Se conhecessem talvez nem vissem a semelhança. Pois João e Maria tinham uma casa de verdade, um casal de pais, roupas e sapatos. João e Maria tinham começado a vida como Meninos De Família, e pelas mãos do pai foram levados ao abandono.
Quem leva nossas crianças ao abandono? Quando dizemos "crianças abandonadas" subentendemos que foram abandonadas pela família, pelos pais. E, embora penalizados, circunscrevemos o problema ao âmbito familiar, de uma família gigantesca e generalizada, à qual não pertencemos e com a qual não queremos nos meter. Apaziguamos assim nossa consciência, enquanto tratamos, isso sim, de cuidar amorosamente de nossos próprios filhos, aqueles que "nos pertencem". 
Mas, embora uma criança possa ser abandonada pelos pais, ou duas ou dez crianças possam ser abadonadas pela família, (...) milhões de crianças só podem ser abandonadas pela coletividade. Até recentemente, tínhamos o direito de atribuir esse abandono ao governo, e responsabilizá-lo. Mas, (...) quando queremos que os cidadãos sejam o governo, já não podemos apenas passar adiante a responsabilidade. 
A hora chegou, portanto, de irmos ao bosque, buscar as crianças brasileiras que ali foram deixadas. 

 Ref.: COLASANTI, Marina. Eu sei , mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
           Crônica publicada na revista Manchete em 1986.


AS CARIDADES ODIOSAS

Foi uma tarde de sensibilidade ou de suscetibilidade? Eu passava pela rua depressa, emaranhada nos meus pensamentos, como às vezes acontece. Foi quando meu vestido me reteve: alguma coisa se enganchara na minha saia. Voltei-me e vi que se tratava de uma mão pequena e escura. Pertencia a um menino a que a sujeira e o sangue interno davam um tom quente de pele. O menino estava de pé no degrau da grande confeitaria. Seus olhos, mais do
que suas palavras meio engolidas, informavam-me de sua paciente aflição. Paciente demais. Percebi vagamente um pedido, antes de compreender o seu sentido concreto. Um pouco aturdida eu o olhava, ainda em dúvida se fora a mão da criança o que me ceifara os pensamentos.
- Um doce, moça, compre um doce para mim. 
Acordei finalmente. O que estivera eu pensando antes de encontrar o menino? O fato é que o pedido deste pareceu cumular uma lacuna, dar uma resposta que podia servir para qualquer pergunta, assim como uma grande chuva pode matar a sede de quem queria uns goles de água.
Sem olhar para os lados, por pudor talvez, sem querer espiar as mesas da confeitaria onde possivelmente algum conhecido tomava sorvete, entrei, fui ao balcão e disse com uma dureza que só Deus sabe explicar: um doce para o menino.
De que tinha eu medo? Eu não olhava a criança, queria que a cena, humilhante para mim, terminasse logo. Perguntei-lhe: que doce você...
Antes de terminar, o menino disse apontando depressa com o dedo: aquelezinho ali, com chocolate por cima. Por um instante perplexa, eu me recompus logo e ordenei, com aspereza, à caixeira que o servisse.
Que outro doce você quer? perguntei ao menino escuro.
Este, que mexendo as mãos e a boca ainda esperava com ansiedade pelo primeiro, interrompeu-se, olhou-me um instante e disse com delicadeza insuportável, mostrando os dentes: não precisa de outro não. Ele poupava a minha bondade.
- Precisa sim, cortei eu ofegante, empurrando-o para a frente. O menino hesitou e disse: aquele amarelo de ovo. Recebeu um doce em cada mão, levantando as duas acima da cabeça, com medo talvez de apertá-los. Mesmo os doces estavam tão acima do menino escuro. E foi sem olhar para mim que ele, mais do que foi embora, fugiu. A caixeirinha olhava tudo:
- Afinal uma alma caridosa apareceu. Esse menino estava nesta porta há mais de uma hora, puxando todas as pessoas que passavam, mas ninguém quis dar.
Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De vergonha mesmo? Era inútil querer voltar aos pensamentos anteriores. Eu estava cheia de um sentimento de amor, gratidão, revolta e vergonha. Mas, como se costuma dizer, o Sol parecia brilhar com mais força. Eu tivera a oportunidade de... E para isso fora necessário um menino magro e escuro... E para isso fora necessário que outros não lhe tivessem dado um doce.
E as pessoas que tomavam sorvete? Agora, o que eu queria saber com autocrueldade era o seguinte: temera que os outros me vissem ou que os outros não me vissem? O fato é que, quando atravessei a rua, o que teria sido piedade já se estrangulara sob outros sentimentos. E, agora sozinha, meus pensamentos voltaram lentamente a ser os anteriores, só que inúteis. Em vez de tomar um táxi, tomei um ônibus. Sentei-me.
- Os embrulhos estão incomodando?
Era uma mulher com uma criança no colo e, aos pés, vários embrulhos de jornal. Ah não, disse-lhes eu. "Dá-dádá", disse a menina no colo estendendo a mão e agarrando a manga de meu vestido. "Ela gostou da senhora", disse a mãe rindo. Eu também sorri.
- Estou desde manhã na rua, informou a mulher. Fui procurar umas amizades que não estavam em casa. Uma tinha ido almoçar fora, a outra foi com a família para fora.
- E a menina? É menino, corrigiu ela, está com roupa dada de menina mas é menino. O menino comeu por aí mesmo. Eu é que não almocei até agora.
- É seu neto?
- Filho, é filho, tenho mais três. Olhe só como ele está gostando da senhora... Brinca com a moça, meu filho! Imagine a senhora que moramos numa passagem de corredor e pagamos uma fortuna por mês. O aluguel passado não pagamos ainda. E este mês está vencendo. Ele quer despejar. Mas se Deus quiser, ainda arranjarei os dois mil cruzeiros que faltam. Já tenho o resto. Mas ele não quer aceitar. Ele pensa que se receber uma parte eu fico descansada dizendo: alguma coisa já paguei e não penso em pagar o resto.
Como a mulher velha estava ciente dos caminhos da desconfiança. Sabia de tudo, só que tinha de agir como se não soubesse - raciocínio de grande banqueiro. Raciocinava como raciocinaria um senhorio desconfiado, e não se irritava.
Mas de repente fiquei fria: tinha entendido. A mulher continuava a falar. Então tirei da bolsa os dois mil cruzeiros e com horror de mim passei-os à mulher. Esta não hesitou um segundo, pegou-os, meteu-os num bolso invisível entre o que me pareceram inúmeras saias, quase derrubando na sua rapidez o menino-menina.
- Deus nosso Senhor lhe favoreça, disse de repente com o automatismo de uma mendiga.
Vermelha, continuei sentada de braços cruzados. A mulheer também continuava ao lado.
Só que não nos falávamos mais. Ela era mais digna do que eu havia pensado: conseguido o dinheiro, nada mais quis me contar. E nem eu pude mais fazer festas ao menino vestido de menina. Pois qualquer agrado seria agora de meu direito: eu o havia pago de antemão.
Um laço de mal-estar estabelecera-se agora entre nós duas, entre a mulher e eu, quero dizer.
- Deixe a moça em paz, Zezinho, disse a mulher.
Evitávamos encostar os cotovelos. Nada mais havia a dizer, e a viagem era longa. Perturbada, olhei-a de través: velha e suja, como se dizem das coisas. E a mulher sabia que eu a olhara.
Então uma ponta de raiva nasceu entre nós duas. Só o pequeno ser híbrido, radiante, enchia a tarde com o seu suave martelar: "dá dá dá".

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Rocco, 1999.
         
 
 

2 comentários:

  1. Sensacional, meu amigo. O texto de Marina Colasanti é excelente: fez-me ver algo tão simples que chegar ser vergonhoso nunca ter percebido sozinho. E Clarice é mais uma vez feliz em sua labuta às entranhas do indivíduo: ela, melhor que qualquer um, talvez, leva-nos aos nossos mais escondidos sentimentos. Adorei!

    Abração,

    Rodrigo Davel

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pois é, meu amigo, Clarice diz exatamente o que gostaríamos de dizer, mas não conseguimos.
      Obrigado e abração,

      Excluir