sábado, 31 de março de 2012

UM ADEUS AO BARTÔ




“OLHA EU... PICOLÉ!”
 (Para o Bartolomeu Campos de Queirós)
 Por Fábio Brito

Amigo Bartô:
           Você não sabe como foi difícil saber de sua partida. Você não faz ideia! Sabe aquele travo bem amargo que fica na garganta da gente durante dias e dias? Pois é, ele está aqui até agora. Ao que tudo indica, ele não quer se mandar. Não está fácil, amigo. O choro tem chegado várias vezes.
Eu nunca lhe disse, mas seus escritos sempre foram para mim algo semelhante àquelas lasquinhas de rapadura enroladas em retalho de pano alvejado que a mãe do menino Antônio (lá do Indez, lembra?) dava para ele. Enquanto o garotinho “chupava aquela trouxinha com cara de quem estava adoçando a vida” - e como estava! - o tempo transcorria sem choro. E são muitas de suas “trouxinhas de rapadura” que, até hoje, ajudam a adoçar – e muito! – a vida de todos nós, que, vez ou outra, ‘se’ mostra amarga ‘pra’ caramba. E o melhor de tudo: muitos de meus alunos/amigos já estão querendo essas “trouxinhas” todos os dias. Pedem insistentemente. Porque não quero choro em meus ouvidos, dou logo: tomem, crianças! E elas param mesmo de chorar! Ê... bálsamo!
Não sei se você lembra, mas, na última Bienal do Livro, no Rio, em setembro de 2011,  muitos desses meus alunos foram comigo fazer um carinho em você, 'beber' suas palavras, pedir seu autógrafo, tirar fotografias. É, meu amigo, fizemos a “marcha da tietagem”, como 'nos' ensinou o Gil. Houve fila no estande, o da CosacNaify, em que você autografava o Vermelho amargo. Rumamos para lá logo depois de ficarmos em êxtase com o que você disse no Café Literário. Não lembra? Preocupe-se não. Lembramos tudinho... “tim-tim-de-cor-por-tim-tim-e-salteado”.
Entre os muitos ensinamentos que vieram de tudo o que você disse nesse Café, está este: “Quem sabe das coisas escreve livro didático. O que move a literatura é a dúvida”. Poxa! Os meninos, meus alunos/amigos, e eu tínhamos inúmeras dúvidas. Sempre tivemos! Por quê? Porque são muitas as metáforas. Porque o mundo é a grande metáfora. E não é fácil – você sabe disso! – chegar ao que elas, as metáforas, revelam. Mas, como você mesmo afirmou, “a metáfora é onde posso me esconder e pôr asas no leitor. Por isso que o leitor está sempre no espaço da liberdade”. Meu Deus! Você não precisava ter dito mais nada, viu? Só isso aí já valeu a visita à Bienal.
 Na volta para casa (e como é chato voltar depois de um encontro como o nosso!), lembrei novamente o Indez, as imagens que seus livros me trazem, como os detalhes da casa do menino Antônio. Meu Deus! O chão de tábuas corridas, os remendos com pedaços de latas de marmelada Colombo e as andorinhas de louça que voavam pela parede... Essa é uma casa em que todos nós, sonhando ou acordados, já estivemos, já moramos. Todas as suas narrativas são assim: carregadinhas de imagens do passado, do presente e do futuro de todos nós. São histórias dos "monstros vestidos de algodão, das pipas pelo ar, dos passeios no mato"... Sabe, amigo, sempre que as leio, lembro-me dos vendedores de picolé de minha infância, que gritavam "com toda a força que havia nos pulmões": "Olha eu... picolé!". Eles passavam quase diariamente por minha rua. Também não posso esquecer o vendedor de "quebra-queixo": com sua bicicleta (acho que a marca era Philips), ele era uma tentação para a criançada. Uma caixa de madeira à frente do guidom - com um vidro e um pano bem branquinho - era a alegria de todos. Lembro-me de todos os detalhes: da "espátula" que ele usava para cortar o doce (que era bem duro!), dos pedacinhos de coco, do papel em que ele punha o quebra-queixo, da bicicleta... Está tudo aqui em mim. Impossível apagar tudo isso. Com seus textos, então, amigo, vem tudo à tona... Pois é, parafraseando um fragmento do seu Escritura, a infância sempre 'me' visita. Mas ela não é o paraíso perdido?!  É nada!
 Amigo nosso, desde que você resolveu 'se' mandar (e cedo à beça, diga-se de passagem), estou com medo de que os corações de muitas crianças não tomem mais sol. Você dirá que não há problemas. Os livros estão aí e vão ficar para sempre (vai o homem, fica a obra, não é mesmo?). Mas a obra poderia aumentar bastante se o homem ficasse mais tempo entre nós. Isso não se faz, amigo. Mas como evitar certas rasteiras, não é mesmo? Tomamos uma! E das grandes.
             Tudo bem! Mesmo agora, depois de sua ida, você continua bem aqui, do lado esquerdo do peito, como nos ensinou o Brant por meio das vozes do Milton, da Elis... Exatamente quando o conhecemos pessoalmente, você resolveu ‘nos’ deixar tristes, cabisbaixos. Pois é, seu coração, “esse menino de rua que não quer saber de banho na hora certa nem refeição equilibrada”, como ensinou nossa Lya Luft, decidiu dar um tempo. Mas tinha de ser agora? Volte, amigo, da forma que achar melhor. Traga de volta para minha rua o "moço do quebra-queixo" e todos os vendedores de picolé. Traga de volta os vizinhos de minha infância que, aos domingos, punham caixas de som nas varandas. Traga de volta o NATAL e o ANO NOVO com meus avós e com todos os meus tios e primos. A infância de todos que o conheceram não pode ficar esquecida por aí, jogada em qualquer canto. Precisamos ouvir novamente, bem alto: "Olha eu... picolé!" Cá entre nós: só você pode fazer esse milagre... Só voce pode evitar nosso abandono.
          Você, agora, passeia em nosso silêncio, amigo. Por isso, não pude evitar: lembrei-me do Para ler em silêncio? É tanta beleza... que transborda: "Um dia, quando já escrevia, a ausência de minha mãe veio ocupar o vazio da casa. Em minha casa vivíamos apenas eu e a memória de outras presenças. Criei força, interrompi o trabalho e me perguntei: - Por onde andará minha mãe agora? Com voz travada e rouca, levantei os olhos e me respondi: - Por certo pisa em estrelas, voa entre nuvens, se esconde muito depois da lembrança e não voltará nunca. Ela passeia em meu silêncio, mas irei encontrá-la um dia, também em silêncio. Ele é o fim e o início de tudo que há".
          Agora, onde você está? Certamente, pisando estrelas, voando entre nuvens, mas muito presente. Sempre!
           Um abraço gigante de todos nós... que estamos aqui, à espera de um sinal seu. 
          
          P.S.: a flor é do jardim aqui de casa (o mesmo de minha infância). Ela é para você, amigo.

PROFUNDAMENTE
Manuel Bandeira
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Com um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente
***
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
           Ref.: BANDEIRA, Manuel. Literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1981. 

ACALANTO
Edu Lobo - Chico Buarque
De "O corsário do rei"
É tão cedo, meu irmão
Abre os olhos, dorme não
Espalha os meus soldados
Estraga os meus brinquedos
Pode me odiar
Nunca mais olhar pra mim
Mas não faz
Não faz mais
Assim

Tão cedo, meu irmão
Põe a mão na minha mão
Pode fechar meus olhos
Alisa os meus cabelos
E a quem perguntar
Deus, que foi que aconteceu
Vou jurar que o teu sangue
É meu
Eu vou rasgar
Meu coração
Pra costurar o teu
Vou te soprar
Esta canção:
O meu irmão
morreu
Ref.: HOLLANDA, Chico Buarque. Letra e música 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

ENTÃO VALE A PENA
Gilberto Gil

Se a morte faz parte da vida
E se vale a pena viver
Então morrer vale a pena
Se a gente teve o tempo para crescer
Crescer para viver de fato
O ato de amar e sofrer
Se a gente teve esse tempo
Então vale a pena morrer

Quem acordou no dia
Adormeceu na noite
Sorriu cada alegria sua
Quem andou pela rua
Atravessou a ponte
Pediu bênção à dindinha Lua
Não teme a sua sorte
Abraça a sua morte
Como a uma linda ninfa nua

Fonte: GIL, Gilberto. Todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.


O TEMPO

O despertador é um objeto abjeto.
Nele mora o Tempo. O Tempo não pode viver sem nós,
                                                                     para não parar.
E todas as manhãs nos chama freneticamente como um
velho paralítico a tocar a campainha atroz.
Nós
é que vamos empurrando, dia a dia, sua cadeira de rodas.
Nós, os seus escravos.
Só os poetas
os amantes
os bêbados
podem fugir
por instantes
ao Velho... Mas que raiva impotente dá no Velho
quando encontra crianças a brincar de roda
e não há outro jeito senão desviar delas a sua cadeira
                                                                             de rodas!
Porque elas, simplesmente, o ignoram...

Fonte: QUINTANA, Mario. Nova antologia poética. Rio de Janeiro: Globo, 1985.



10 comentários:

  1. "Tudo que morre, fica vivo na lembrança. Como é difícil viver carregando um cemitério na cabeça." - Bruno (Biquini Cavadão).

    Beijo Fábio. Texto mais que lindo!

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    1. Obrigado, Rondi. Lembro-me de quando você me disse os versos aí de cima, do Bruno.
      Bjs,

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  2. "A saudade eterniza a presença de quem se foi" (Fábio de Melo). Sabe poeta, quando lia o seu emocionante texto passou tanta coisa aqui na minha cabeça, no meu coração... mas de todas peguei a me pensar que no seu solilóquio está descrito a função da literatura, da prosa, da escrita, da poesia, da tecitura (como gosto de chamar a arte-vocação de se escrever. Releia seu texto e perceba que quem nele está descrito cumpriu a sua função!! Pense quantos puderam ter esses devaneios, essas lembranças, essas marcas e essas histórias... viva os poetas, os escritores, os homens que tem poder de aliviar os fardos do mundo moderno!!! Sobre a flor dama da noite prefiro não tecer nenhum comentário para não ser injusto... só uma colocação: sempre achei muito injusto que ela durasse tão pouco e quase sempre florisse quando eu estava a dormir... abraço carinhoso!!!

    Hércules Campos

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    1. Hércules, meu amigo, muito obrigado por sua visita, sempre muito honrosa para mim. Gosto muito de seus comentários inteligentes. Pois é, o passado está todo aqui. Gosto muito de rememorações.
      Amigo, sobre a "dama da noite", fico "de plantão" para fotografá-la. E também acho uma pena que ela dure somente uma noite. Ou melhor, menos de uma noite: por volta das 21h ela começa a desabrochar e, antes das 5h, ela fecha.
      Um abração,

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  3. Fábio obrigado por esta bela Ária de Bach.
    Abraço

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  4. Obrigado, amigo.
    Também adoro essa "ária". Engraçado que, quando pensei em escrever "para" o Bartolomeu, antes mesmo de quaisquer palavras, veio-me à cabeça a música.
    Um abração e, mais uma vez, é um luxo tê-lo por aqui.
    Gosto muito de você, amigo.

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  5. Gente, tô ficando lesado... agora que fui entender a sincopada inicial... rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs

    Achei que eu estava emburrecendo...

    Ficou ótimo!!! Parabéns!!!

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    1. Bartolomeu Campos de Queirós, Fê. Beijos e obrigado pela leitura.

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  6. Fábio, meu amigo, parabéns por esta obra de arte! Quanta emoção nessas palavras, e quanta emoção me trouxe. Ainda tá difícil aceitar que ele se foi. Não. Eu quero mais e mais desse amigo Bartô. Ah!, dizer que vamos sentir saudade não é correto; vamos sentir muita falta.

    Grande abraço, meu amigo, estou muito emocionado com sua carta.

    Abração,

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    1. Obrigado, Rodrigo, pelas palavras de carinho. Também fiquei muito comovido ao escrever o texto. Tenha certeza de que ele saiu "de uma vez só". Junto com a saudade do Bartô, vieram muitas outras... de muita gente que amo, mas que não está mais por aqui. Há pouco mesmo, minha sobrinha publicou em meu "face" uma foto em que ela está com meu pai. Nem é preciso dizer que estou chorando até agora. Vamos em frente! Mais uma vez, muito obrigado, amigo.

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