domingo, 29 de abril de 2012

"LICORES NA MORINGA E ALECRINS NO CANAVIAL"



Postagem dedicada ao amigo José Manuel Douradinha. A quem mais eu poderia dedicar maravilhas portuguesas... e brasileiras? Todos os textos são para você, meu amigo, que tanto admiro e respeito.

GENTE QUE VEM DE LISBOA

Tavinho  Moura e Fernando Brant

Gente que vem de Lisboa
Gente que vem pelo mar
Laço de fita amarela
Na ponta da vela
No meio do mar

No nevoeiro, na ventania
Navegar
Tempestade enfrentar
Parece um brinquedo,
Navio no mar
Ô marinheiro, eu quero porto
Quero cais
"Té" a terra avistar
A gente só escuta o lamento da...
Gente que vem de Lisboa
Gente que vem pelo mar
Laço de fita amarela
Na ponta da vela
No meio do mar

Terra boa, de sol bendito
Quanta luz
Vai chamar-se Brasil
São rios e são matas
Manhãs de abril
Ô marinheiro, que maravilha de lugar
Por aqui vão crescer os frutos
Os amores e filhos da...
Que vem de Lisboa
Gente que vem pelo mar

Fonte: "Cativante", Tadeu Franco, PolyGram, 815 287-2, 1983.


PORTUGAL, MEU AVOZINHO
Manuel Bandeira 
 Poema musicado por Moraes Moreira

Como foi que temperaste,
Portugal, meu avozinho,
Esse gosto misturado
De saudade e de carinho?



Esse gosto misturado
De pele branca e trigueira,
- Gosto de África e de Europa,
Que é o da gente brasileira?



Gosto de samba e de fado,
Portugal, meu avozinho,
Ai Portugal que ensinaste
Ao Brasil o teu carinho!



Tu de um lado, e do outro lado
Nós… No meio o mar profundo…
Mas, por mais fundo que seja,
Somos os dois um só mundo.



Grande mundo de ternura,
Feito de três continentes…
Ai mundo de Portugal,
Gente mãe de tantas gentes!



Ai Portugal de Camões,
Do bom trigo e do bom vinho,
Que nos deste, ai avozinho,
Este gosto misturado,
Que é saudade e que é carinho!




FADO TROPICAL 
Chico Buarque - Ruy Guerra/1972-1973
Para a peça Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra
Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro abril
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

“Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo...(além da
sífilis, é claro)*
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..."

Com avencas na caatinga
Alecrins no canavial
Licores na moringa
Um vinho tropical
E a linda mulata
Com rendas do Alentejo
De quem numa bravata
Arrebato um beijo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

"Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto

Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto

Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadura à proa
Mas o meu peito se desabotoa

E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa..."

Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre Trás-os-Montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial
* trecho original, vetado pela censura
                    
                       

TANTO MAR 
Chico Buarque
 
1975
(primeira versão)*



Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim


* Letra original,vetada pela censura; gravação editada apenas em Portugal, em 1975.  
1978
(segunda versão)


Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
E inda guardo, renitente
Um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto do jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim
Fonte:   http://www.chicobuarque.com.br/construcao/index.html

IDA E VOLTA EM PORTUGAL
Olival de prata,
veludosos pinhos,
clara madrugada,
dourados caminhos,
lembrai-vos da graça
com que os meus vizinhos,
numa cavalgada,
com frutas e vinhos,
lenços de escarlata,
cestas e burrinhos,
foram pela estrada,
assustando os moinhos
com suas risadas,
pondo em fuga cabras,
ventos, passarinhos...

Ai, como cantavam!
Ai, como se riam!

Seus corpos – roseiras.
Seus olhos – diamantes.

Ora vamos ao campo colher amoras
e amores!
A amar, amadores amantes!

Olival de prata,
veludosos pinhos,
pura Vésper clara,
silentes caminhos,
lembrai-vos da pausa
com que os meus vizinhos
vieram pela estrada.
Morria nos moinhos
o giro das asas.
Ventos, passarinhos,
árvores e cabras,
tudo estacionava.
As flores faltavam.
Sobravam espinhos.

Ai, como choravam!
Ai, como gemiam!

Seus corpos – granito.
Seus olhos – cisternas.

Este é o campo sem fim de onde
não retornam
ternuras!
Entornai-vos, ondas eternas!
MEIRELES, Cecília. Vaga música.

DISPERSÃO
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que sonhei!... )

E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...

Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...


SÁ-CARNEIRO, Mário de. Obras completas - poesias. Lisboa: Ática. s/d

AUSÊNCIA
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Poemas escolhidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.



AMAR!
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui…além…
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente….
Amar!Amar! E não amar ninguém!


Recordar? Esquecer? Indiferente!…
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!


Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!


E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder… pra me encontrar…


ESPANCA, Florbela. Poemas. São Paulo: Martins Fontes, 1996.


OS GRITOS DE GIORDANO BRUNO

Afinal, não é muito grande a diferença que há entre um dicionário de biografias e um vulgar cemitério. As três linhas secas e indiferentes com que na maior parte dos casos os dicionaristas resumem uma vida são o equivalente da sepultura rasa que recebe os restos daqueles que (perdoe-se o trocadilho fácil) não deixam restos. A página cheia, com autógrafo e fotografia, é o mausoléu de boa pedra, portas de ferro e coroa de bronze, mais a romagem anual. Mas o visitante fará bem em não se deixar confundir pelos alçados de arquitecto, pelas esculturas e cruzes, pelas carpideiras de mármore, por todo o cenário que a morte pomposa desde sempre aprecia. Igualmente deverá dar atenção, se está em campo aberto, sem referências, ao sítio onde põe os pés, não vá acontecer que debaixo dos seus sapatos se encontre o maior homem do mundo.
Não estará, porém, a pisar a sepultura de Giordano Bruno, porque esse foi queimado em Roma, ardeu atrozmente como arde o corpo humano, e dele, que eu saiba, nem as cinzas lhe guardaram. Mas ao mesmo Giordano, para que todas as coisas fiquem nos lugares que lhes competem e justiça enfim se faça, foram reseervadas quatro linhas neste dicionário biográfico. Em tão pouco espaço, em tão poucas letras, ali, entre a data do nascimento (1548) e a data da morte (1600), balizas de um universo pessoal que viveu no mundo, pouco se diz: italiano, filósofo, panteísta, dominicano, deixou as ordens, negou-se a renunciar às suas ideias, foi queimado vivo. Nada mais. Nasce e vive um homem, luta e morre, assim, para isto. Quatro linhas, descansa em paz, paz à tua alma se nela acreditavas. E nós fazemos excelente figura entre amigos, em sociedade, na reunião, à mesa do restaurante, na discussão profunda, se deixamos cair adequadamente, de um modo familiar e entendido, a meia dúzia de palavras de que fizemos uma espécie de gazua ou chave falsa com que julgamos poder abrir uma vida e uma consciência.
Mas, para nosso desconforto, se estamos em hora e maré de lucidez, os gritos de Giordano Bruno rompem como uma explosão que nos arranca das mãos o copo de uísque e nos apaga dos lábios o sorriso intelectual que escolhemos para falar destes casos. Sim, é essa a verdade, a incómoda verdade que vem desmanchar o suave entendimento do diálogo: Giordano Bruno gritou quando foi queimado. O dicionário só diz que ele foi queimado, não diz que gritou. Ora, que dicionário é este que não informa? Para que quero eu uma biografia de Giordano Bruno que não fala dos gritos que ele deu, ali, em Roma, numa praça ou num pátio, com gente à roda, uns que ateavam o lume, outros que assistiam, outros que serenamente escreviam o auto de execução?
Demasiado esquecemos que os homens são de carne facilmente sofredora. Desde a infância que os educadores nos falam de mártires, dão-nos exemplos de civismo e moral à custa deles, mas não dizem quanto foi doloroso o martírio, a tortura. Tudo fica no abstracto, filtrado, como se olhássemos a cena, em Roma, através de grossas paredes de vidro que abafassem os sons, e as imagens perdessem a violência do gesto por obra, graça e virtude da refracção. E então podemos dizer, tranquilamente, uns aos outros, que Giordano Bruno foi queimado. Se gritou,  não ouvimos. E se não ouvimos, onde está a dor?
Mas gritou, meus amigos. E continua a gritar.

SARAMAGO, José. A bagagem do viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.


"Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu fizeram-no de carne. E sangra todo dia."

"A Globalização não suporta os direitos humanos."

"A palavra escrita está ali, como uma crisálida, à espera de que alguém a desperte."

José Saramago
TABACARIA
Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(...)
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
(...)
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho.
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
(...)

          A LITERATURA PORTUGUESA EM MIM
          Por Fábio Brito

          Na literatura, um país que presenteou o mundo com Pessoa, Camões e Saramago, por exemplo, poderia ter "deitado em berço esplêndido" e descansado, tamanha sua contribuição. A genialidade desses três é de encher de orgulho qualquer nação. No entanto, generosa que é, a nação portuguesa ofertou-nos mais "presentes": aí estão nomes importantíssimos que vão de Paio Soares de Taveirós a Lobo Antunes, passando por Gil Vicente, pelos historiadores de Alcobaça, Sóror Maria Alcoforado, Padre Antônio Vieira (luso-brasileiro), Bocage, Filinto Elísio, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Júlio Diniz, João de Deus, Eça de Queirós, Antero de Quental, Cesário Verde, Raul Brandão, José Régio, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Miguel Torga, Adolfo Casais Monteiro, Alves Redol, Augusto Abelaira, Fernando Namora, Florbela Espanca, Antônio Ramos Rosa, D. Sophia de Mello Breyner Andresen, Raul de Carvalho, Augustina Bessa-Luís, Maria Velho da Costa e chegando às literaturas africanas de língua portuguesa, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, que são, hoje, países independentes, mas que pertenciam ao antigo Ultramar português. Dessas nações, vêm mais "presentes": Ovídio Martins, Agostinho Neto, José Craveirinha, José Eduardo Agualusa e o "universal" Mia Couto.
          Meu primeiro contato com a literatura portuguesa deu-se ainda na década de 70, por meio dos textos de Pessoa presentes em discos e "shows" de Maria Bethânia, como o "Poema VIII de O guardador de rebanhos", que está em "Rosa dos Ventos - o show encantado", disco "ao vivo" de 1971, e em "Maricotinha ao vivo", de 2002. Mesmo sem saber nada do autor, o adolescente que eu era (ouvi "Rosa dos ventos" alguns anos depois de seu lançamento) ficou em estado de choque (pausa: que adolescente, hoje, fica em estado de choque diante de um poema?) ao conhecer versos pessoanos. Até hoje, e cada vez mais, tudo o que Pessoa fez é muito comovente para mim. Chego literalmente às lágrimas lendo-o no silêncio de qualquer cantinho em que eu possa meditar.
          Na década de 90, fui convidado para ministrar "literatura portuguesa" a alunos de Letras.  Meu Deus, o que mais poderia querer uma pessoa apaixonada por literatura? Nada, não é mesmo? E lá fui, com cara, coragem e a leitura de algumas obras portuguesas na bagagem, enfrentar a sala de aula (que eu já havia enfrentado anos antes, mas com outras disciplinas). Fui sem medo. Topei a empreitada, como dizem. E, graças aos deuses, deu tudo certo. Tem dado, até hoje, tudo certo. Tenho conseguido formar discípulos, o que é raro hoje em dia. No máximo, muitos conseguem formar apenas alunos.
          Depois de Pessoa, chegou a vez de eu admirar Gil Vicente, seus autos e suas farsas. Com ele, aprendi, de fato, que "rindo, castigam-se os costumes" (ridendo, castigat mores). Por meio do lema do teatro vicentino, estabeleceu-se para mim a certeza de que a via do humor é sempre o melhor caminho. Muito à frente de seu tempo (como todos os gênios), Gil Vicente mostrou-nos que a humanidade, muito tempo depois, não estaria tão diferente em termos de caráter e manifestação da fé. Ainda hoje, em pleno século XXI, continuam vendendo "um cantinho no céu" a muitas pessoas. Pior: continuam vendendo "Cristo" em qualquer esquina. A banalização e o comércio da fé são, infelizmente, marcas muito fortes deste início de século. Quer mais? Até hoje, todas as pessoas continuam não se considerando "merecedoras" da barca do inferno. Ninguém que conheço deixará de ir para o céu! E todos, sem exceção, têm uma explicação bem "convincente" para tal merecimento. Haja paciência!
          Na esteira, eis que me chega Camões, com sua épica e sua lírica igualmente desconcertantes. Com sensibilidade extrema, nosso Camões produziu Os lusíadas, com suas 1102 estâncias, distribuídas por dez cantos, unindo uma narrativa histórica e outra mitológica. Um fenômeno, sem dúvida! No canto III, por exemplo, encontramos o episódio de Inês de Castro, um dos mais líricos para mim, que teve, aqui no Brasil, um registro primoroso: ninguém mais, ninguém menos que Cacilda Becker representou Inês de Castro em um teleteatro exibido, há anos, pela TV Bandeirantes. Bons tempos! Toda a obra de Camões é primorosa. Um de seus mais conhecidos sonetos, o que nos diz que "amor é fogo que arde sem se ver", recebeu uma adaptação de Renato Russo, da banda Legião Urbana, que também recorreu ao texto bíblico. Assim, em 1989, Camões ganhou um considerável público, principalmente adolescente, aqui no Brasil. Até hoje, não há ninguém que não saiba cantarolar quase todos os versos de Monte Castelo: "(...) Amor é fogo que arde sem se ver / É ferida que dói e não se sente (...)".    
          Outro de meus momentos inebriantes foi o contato com a obra de D. Sophia de Mello. Ainda nos tempos de "aluno de Letras", essa autora chegou a mim com muita densidade. Lembro que, em 2008, quando meu pai faleceu, busquei consolo em seus Poemas escolhidos, selecionados por Vilma Arêas e publicados em 2004, ano em que "perdemos a menina do mar", como disse, à época, a também escritora Maria Velho da Costa. A eterna presença de meu pai ficou menos doída e mais bela com a ajuda de D. Sophia: "(...) Nenhuma ausência é mais funda do que a tua", "disse-me" ela. Lembro-me 'dele' constantemente, mas sempre com alegria... e saudades, é claro! Agora, nossa grande escritora deve, com muita certeza, estar voltando para "buscar os instantes que não" viveu "junto do mar". Outro de seus belos poemas, 25 DE ABRIL, é um dos mais comoventes e, como o próprio título anuncia, é sobre a Revolução dos cravos: "Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo".  
            Não faz muito tempo, cerca de quinze, dezesseis anos, veio a meu encontro a poesia estarrecedora de Natália Correia. Meu Deus! Dificílimo descrever tanta beleza. A defesa do poeta, por exemplo, é um de seus poemas mais conhecidos e um dos mais encantadores: "Sou um instantâneo das coisas / apanhadas em delito de paixão / a raiz quadrada da flor / que espalmais em apertos de mão. / (...) Ó subalimentados do sonho! / A poesia é para comer". É ou não é algo estarrecedor? O que há de "subalimentos do sonho" por aí... Dificílimo mensurar. Por falar em gente "subalimentada do sonho" e, por conseguinte, sem poesia", lembrei-me de um episódio envolvendo o "papa" da Bossa Nova, João Gilberto, relatado na livro Chega de saudade*, de Ruy Castro. Em rápida passagem pelo ambulatório de um hospital na Bahia, nosso João, ao olhar por uma das janelas da sala em que se encontrava, estava, como sempre, muito à frente de tudo, tanto que disse a uma das psicólogas com quem conversava que o vento estava descabelando as árvores. Recebeu como resposta que árvore não tem cabelo. Que erro! Da psicóloga, claro! Imediatamente, veio a resposta um tom acima do mestre João: "E há pessoas que não têm poesia". Essas pessoas que não têm poesia são, portanto, os "subalimentados do sonho". Por isso que D. Natália chegou para ficar... e para sempre... porque não podemos ficar subnutridos de poesia. Precisamos do sonho... "e é dele que vou viver / porque sonho não morre", como disse nossa Adélia Prado.
           Pois é, eu poderia ficar durante horas "infindas" relatando minha admiração e minha paixão  pelos escritores portuguesas. Infortunadamente, aqui, há pouco espaço. No coração e na alma, no entanto, haverá sempre um espaço imenso para muita literatura portuguesa. Para toda a literatura portuguesa. Pois que venham, então, Pessoa, Camões, Natália Correia, Eça, D. Sophia de Mello, Florbela Espanca, Sá-Carneiro e tantos outros.  

* CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

9 comentários:

  1. "E há pessoas que não têm poesia". Essas pessoas que não têm poesia são, portanto, os "subalimentados do sonho". Por isso que D. Natália chegou para ficar... e para sempre... porque não podemos ficar subnutridos de poesia. Precisamos do sonho... "e é dele que vou viver / porque sonho não morre", como disse nossa Adélia Prado.

    Meu Deus, quanta coisa maravilhosa, será que vou conseguir viver o suficiente para ler pelo menos um "cadinho" dos citados aí, ando com tantos na cabeça... preciso enfrentar e desbravar o Sertão Veredas (paixão e desejo despertados em mim pela Beatriz), chegar a Cervantes, re-beber de Pessoa, de Camões... verdade poeta, são tantos!!!! rsrsrsrsrsrsrs... é preciso viver outra vida!!
    Textos maravilhosos!!
    Obrigado por embelezar minha vida!! Convida-me um dia para uma aula dessas? Enquanto não me sobra tempo para cursar português-literatura????
    Forte abraço.

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    1. Hércules, meu querido, mais uma vez, muitíssimo obrigado. Como sempre, é um luxo tê-lo "por aqui". Seus comentários deixam-me com mais vontade ainda de publicar mais e mais.
      Pois é, sobre Guimarães: não podemos passar por este mundo sem o "Grande sertão: veredas".
      Que tal um encontro para discutirmos a literatura portuguesa? Vamos combinar? Abração,

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    2. Esse encontro seria um presente... um final de semana que eu não estiver pro mestrado...um convite pra uma boa prosa é uma tentação e ainda sobre literatura!!! Vou cobrar esse encontro, essa prosa!!!
      Forte abraço!!! Me avise das próximas postagens!!!

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    3. Avisarei, sim, Hércules, quando houver mais postagens. Até sexta, postarei "Reizinhos 'mandões'", que é sobre alunos que "mandam nas escolas". Acho que ficou legal.
      Sobre o encontro para conversarmos sobre literatura: vamos marcá-lo. Abração,

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  2. Queria escrever algo mas não tenho "algo" para escrever, apenas que todos esses poetas da renascença ao modernismo são ícones da poesia e da literatura portuguesa. Desculpem-me os literatos brasileiros quando me insurjo contra o acordo ortográfico, apenas o faço porque, entendo, se basearam na política e não no curso evolutivo da língua escrita ou falada, não por falta de reconhecimento do valor literário e linguístico do português brasileiro, porque vivi e conheci esse meio académico e como tal entendo a separação de tais valores sem adultera-las.

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    1. Amigo José Manuel, também não gosto desse acordo ortográfico. No entanto, a literatura é soberana e, como tal, paira acima disso tudo.
      Mais uma vez, obrigado pela visita ao 'blog'.
      Saudades de você.
      Abração,

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  3. Parabéns Fábio.
    Quem sou para elogiá-lo, mas este é um dos textos que mais gostei.
    E a Música linda, "GENTE QUE VEM DE LISBOA", me fez lembrar Milton Nascimento. Quando vi que Fernando Brant, era um dos autores estava tudo explicado.
    Post maravilhoso. Espero um dia falar de tantos autores com tanta propriedade.
    Um Abraço do seu aluno/um dia discípulo
    Luiz Fernando Gava Fernandes

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    1. Luiz, meu amigo e discípulo, muitíssimo obrigado pela visita. Fico muito feliz em saber que você gostou dos textos. Você não imagina o prazer que tenho em selecionar material para postagem e, depois, presentear meus amigos. É bom à beça, viu? Ah! Reforçando: você é, sim, discípulo! E não são muitos... Abração,

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