domingo, 7 de abril de 2013

CLARIDADE


Site da imagem: alémdaimaginação.com
‘CLARIDADE’
Por Fábio Brito
No início de março de 1983, eu começava minha primeira faculdade. Certo dia, saí com amigos e cheguei a casa um pouco mais tarde. No dia seguinte, não me levantei tão cedo, como de costume. Ainda meio sonolento, tomei meu café com alguma pressa, mas a tempo de minha mãe me dar uma notícia bem triste: Clara Nunes estava em coma. Na noite do dia anterior, no “Jornal Nacional”, ela ouvira tal notícia. Fiquei perplexo. Além de Clara ser uma de minhas cantoras favoritas, um ano antes, em janeiro de 82, havíamos perdido Elis Regina. Ou seja, o país ainda não havia ‘se’ recuperado da perda de uma de suas maiores estrelas e, de repente, perde outra.
Além da comoção causada pela perda em si, a morte de Clara não decorreu de causas naturais, mas de um choque anafilático numa cirurgia de varizes. Conforme relatou Vagner Fernandes, seu biógrafo, ela “havia tido uma reação alérgica a alguma das substâncias do anestésico”. Mais espanto. Ninguém, até então, ouvira falar nisso. O coma durou quase um mês. No país inteiro, pessoas rezavam e pediam a recuperação de Clara. No entanto, em dois de abril daquele cinzento 1983, aos quarenta e um anos incompletos, nosso ‘sabiá’ “se foi para cantar / para além do luar / onde moram as estrelas”, como nos diz a letra da linda canção que João Nogueira, Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro compuseram em homenagem à nossa guerreira, “Um ser de luz”, gravada por Alcione e um coro estelar. E Clara era, sem dúvida, um ser iluminado. Não há uma entrevista sequer, ou um vídeo, em que ela não esteja sorrindo e com um semblante muito alegre. Certa vez, em um programa de TV, pude vê-la retornando à sua cidade natal. Que festa! Nas ruas mesmo, ela conversava com todos e relembrava velhas histórias. Uma humildade jamais vista por mim em um ídolo bem popular.
Revolvendo “memórias guardadas”, ou desenrolando o fio de muitos novelos de lembranças, trago de volta um menino que fui e que ainda está comigo: volto a 1968/69, quando, em programas de auditório da antiga TV TUPI de São Paulo, pela primeira vez vi Clara, que cantava Você passa eu acho graça, de Carlos Imperial e Ataulfo Alves. Impossível esquecer: “Quis você pra meu amor / E você não entendeu / Quis fazer você a flor / De um jardim somente meu / Quis lhe dar toda a ternura / Que havia dentro em mim / Você foi a criatura que me fez tão triste assim (...)”. É minha primeira lembrança da Clara. Menino ainda (criança mesmo!), fiquei encantado com sua voz e sua figura: que linda, meu Deus! E que voz melodiosa! Tão melodiosa que comoveu, e ainda comove, a criança que fui, que sou, que serei.
Se Clara agradava às crianças, com os adultos não era diferente: quando ela surgiu, mulher não vendia discos, diziam (antes de Clara, Angela Maria, nossa querida "Sapoti", na década de 50, vendeu muito). Apesar de o cenário musical brasileiro ser repleto de talentosas mulheres, os homens, no quesito vendagem, lideravam. Diziam que só mulheres compravam discos. E elas preferiam homens cantando e, de preferência, bonitos. Pois não é que a mineira guerreira impôs-se nesse cenário machista! Foi a primeira cantora de sua geração a vender bastante e cantando divinamente bem. Clara é de um tempo em que boa vendagem de discos era carimbo de qualidade. Hoje, o horizonte está ‘pra’ lá de nebuloso: boa vendagem pode até ser demérito, por mais estranho que tal declaração possa parecer. Vender muito é sinal de perigo. Mau gosto à vista! A geração de Clara, no entanto, teve excelentes vendedores de discos, mas sem o divórcio entre qualidade e sucesso. Não raro, muitos – Clara era um deles – emplacavam vários sucessos de um mesmo lançamento.
Dias atrás, conversando com amigos a respeito da Clara, principalmente sobre a falta que ela faz à MPB e a nós, declarei que meu primeiro disco de uma cantora foi o que ela gravou em 1973, há exatos quarenta anos. Eu era bem criança, mas ouvi tanto esse disco, que acabei “decorando” todas as faixas. Até hoje, o vinil está conservadíssimo (e olhe que foi muito ouvido!). Lembro-me de detalhes: colado sobre a capa, por exemplo, há um adesivo, em letras brancas, com o nome “Clara Nunes”. Caprichosamente, com letra redondinha e caneta azul, assinei ao lado desse adesivo (não “nele”!, para não o estragar). O tempo, que costuma devorar quase tudo, não apagou minha assinatura. Minha letra de criança continua lá, redondinha e caprichada. Ele, o tempo, não vai apagar isso nunca. Nessa mesma capa, em um cantinho, lê-se: “Com carinho do Luiz Jasmim”, o ilustrador. Ao escrever este texto, peguei o disco, que tenho até hoje e guardo-o como um troféu, para conferir. É uma relíquia mesmo. Seu estado de conservação prova que “o dono aqui” era – e continua sendo - de um capricho ímpar. Sobre esse mesmo disco, há um detalhe curioso: na biografia “Clara Nunes – Guerreira da utopia”, Vagner Fernandes, o autor, sempre que se refere a esse LP, chama-o de “Brasília”. Num trecho da obra, em que é narrada a participação de Clara no MIDEM, eis o que nos relata o autor: “(...) Brasília, lançado em Paris e para todo o resto da França, simultaneamente, pela Parthé Marconi, venderia como água na Europa”. Aqui no Brasil, ele fora batizado somente de “Clara Nunes”. No livro, inclusive, há uma foto que reúne todos os discos da Clara (o de 73 traz na capa o título “Brasília”). Na caixa que a EMI/Odeon lançou em 2001, reunindo os dezesseis discos gravados por Clara e mais um CD de “raridades”, a capa do de 73 não é a da edição brasileira, mas a que traz o título “Brasília”. Mais: na contracapa, o ano é 74; aqui, o ano de lançamento é 73. É, meu vinil deve ser raridade mesmo. E essa joia rara tocava à exaustão em minha vitrolinha verde em cuja tampa ficava a caixa de som. Assim como eu, ela, a vitrolinha, nunca se cansava de Clara Nunes.
Ainda sobre o disco de 73, vale lembrar que as canções que dele fazem parte são todas preciosidades. Para começar, “Tristeza pé no chão” (Armando Fernandes “Mamão”): “Dei um aperto de saudade no meu tamborim / Molhei o pano da cuíca com as minhas lágrimas (...)”. A voz potente e límpida de Clara impressiona já de saída. Na sequência, “Fala viola” (Eloir Silva) e “Minha festa”, esta dos extraordinários Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, também autores destes belíssimos versos: “Tire o seu sorriso do caminho / Que eu quero passar com a minha dor (...)”, de “A flor e o espinho”. “Umas e outras” (Chico Buarque), que vem logo depois, é uma das faixas mais belas do disco: “ Se uma nunca tem sorriso / É pra melhor se reservar / E diz que espera o paraíso / E a hora de desabafar / A vida é feita de um rosário / Que custa tanto a se acabar (...)”. “Arlequim de bronze (Ao voltar do samba)”, a quarta faixa do lado A, de Synval Silva, também é de uma beleza incomum: “(...) Minha sandália quebrou o salto e eu perdi o meu mulato lá no asfalto (...)”. O compositor também é autor de “Adeus, batucada”, sucesso de Carmem Miranda. Fechando o primeiro lado, em parceria com Jards Macalé, uma das mais belas canções, se não a mais, de Vinicius de Moraes: “O mais-que-perfeito”: “Ah, quem me dera / ir-me contigo agora / A um horizonte firme, comum / Embora amar-te / Ah, quem me dera amar-te / Sem mais ciúmes / De alguém em algum lugar / Que nem presumes / Ah, quem me dera ver-te / Sempre a meu lado / Sem precisar dizer-te / Jamais contado / Ah, quem me dera ter-te / Como um lugar / Plantado num chão verde / Para eu morar-te / Ah, quem me dera ter-te / Morar-te até morrer-te”. Abrindo o lado B, uma das primeiras músicas “trabalhadas”, como se dizia, do disco: “Quando vim de Minas” (Xangô [da Mangueira]): “Quando eu vim de Minas / Trouxe ouro em pó / Quando eu vim (...)”. Eu a cantarolava o tempo todo. Depois, vêm “Meu cariri” (Rosil Cavalcanti / Dilu Mello) e “Homenagem a Olinda, Recife e Pai Edu” (Baracho). Sobre a primeira, vale a pena lembrar uns versos: “No meu Cariri / Quando a chuva não vem / Não fica lá ninguém / Somente Deus ajuda / Se não vier do céu chuva que nos acuda, / Macambira morre, xique-xique seca, juriti se muda (...)”. A letra, bem imagética, encantava-me. Eu imaginava tudo o que nela é descrito. “É doce morrer no mar” que é, sem dúvida, um das mais belas canções de Dorival Caymmi (ao lado de “Adeus”), é a próxima faixa. Meu Deus, como ouvi (e continuo ouvindo) essa canção: “É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar (...)”. Depois, mais uma de Vinicius: “Amei tanto”, em parceria com Baden Powell: “Nunca fui covarde / Mas agora é tarde / Amei tanto / Que agora nem sei mais chorar (...)”. Fechando, “Valeu pelo amor”, um primor do Ivor Lancellotti: “(...) Pra que serve essa rosa perfumada, amor? / Por que seus belos sonhos valem nada, amor? / Pra mim, valeu / Valeu como esse pinho encabulado / Que me arranca dessa mágoa, amor / Pra que essa saudade de um passado em flor? / Por que se o ideal vivemos agora, amor? / Pra mim, valeu / Valeu como a viola tão sonora / Que me dá tanta alegria, amor / Pra que todo esse choro lhe virando em dor? / Por que levar a vida sem nenhum calor? / Vamos viver e dizer que a vida / É sempre tão incerta / E cantar de voz aberta, amor / Pra nós, valeu / Valeu pelo amor que temos agora / Venha ouvir minha viola, amor / O amor valeu”. Pois é, Clara, valeu por tudo. Valeu pelo amor, principalmente.  
Clara tinha uma voz apolínea, redondamente musical. Eu gostava – e continuo gostando – de ouvi-la a toda hora, principalmente de manhã. Ela é solar. Sua voz abre o dia, abençoa-o. No entanto, nem só a voz era/é digna de muita admiração. Extremamente carismática, nossa "guerreira" tinha uma presença “de” palco que impressionava muito. Quando ela aparecia, eu ficava fascinado. Até hoje, sempre que ouço Clara, tenho vontade de rezar. Rezar por tudo, principalmente para ela, que me fez, e me faz, tão feliz. Que ajudou a moldar meu gosto musical. Que me mostrou belíssimas canções. Que me deixava com os olhos grudados na TV quando ela aparecia, toda de branco, parecendo um anjo. E os anjos, como sabemos, estão noutra esfera. Lembrando Caetano (em Recanto escuro), “coisas sagradas permanecem”. Clara permanece... em mim, em nós, na Música Popular Brasileira da melhor qualidade. Saudades imensas de você, Clara. Jamais a esquecerei...

MINEIRA
João Nogueira / Paulo César Pinheiro

Clara
Abre o pano do passado
Tira a preta do serrado
Põe Rei Congo no Gongá
Anda
Canta o samba verdadeiro
Faz o que mandou o mineiro
Ô mineira

Samba-que-samba no bole-que-bole
Oi, morena do balaio mole
Oi, se embala no som dos tantãs
Quebra no balacoxê do cavaco
Oi, rebola no balacobaco
Oi, se embola nos balangandãs

Mexe no meio que eu sambo do lado
Oi, bem naquele bamboleado
Oi, de que eu também sou bambambã

Ai, cai no samba cai
Que o samba vai
Até de manhã

Oi, saravá mineira guerreira
Que é filha de Ogum com Iansã
Fonte: CD “Canto das três raças”, Clara Nunes, EMI 591765 2 (LP lançado em 1976).
  
Quando o Brasil ainda era um país desconhecido do resto do mundo, a nossa música era apenas sons dispersos na boca do índio habitante. Porque fazer som e ritmo é próprio do instinto humano. Mas nada havia de definido em termos musicais. Até que aqui chegou o português colonizador e a história da MPB começa.
A terra foi tomada em nome do rei. E o índio guerreiro foi vencido e escravizado ao trabalho da lavoura, em favor da civilização e, do cativeiro, ecoaram os primeiros cantos tristes que começaram a definir o nosso canto brasileiro.
Dado ao gigantismo da nova nação descoberta, precisavam os conquistadores de muitos e muitos braços para o trabalho, que se prenunciava tão grande quanto o próprio território. E importaram de suas colônias africanas a raça nascida escrava: a raça negra.
E o canto do índio cativo juntou-se ao lamento do preto sofrido das senzalas e dos quilombos. E a música passou a tomar novas formas, proporções e grandeza, às quais o mundo inteiro ainda viria a se curvar.
Para a nova terra partia toda espécie de gente: desde os homens de confiança da coroa até aventureiros buscando riquezas. E aqui, saudosos de seus lugares de origem, passaram também a criar seus cantos.
A colônia crescia e os próprios brancos já sentiam a necessidade da quebra das correntes que uniam Brasil e Portugal.
Até que se deu a Independência. E a expressão “música popular brasileira”, desde aí, passou a ter a sua definitiva validade.
Esta é a sua história. A história da música de um país feita pela união das três raças que o construíram. E, tendo sido feita pelo povo, só o próprio povo tem o direito de julgar e consagrar a música popular, porque somente ele sabe os que melhor interpretam seus sentimentos. Os grandes mestres saíram sempre do povo. Os grandes intérpretes foram, antes de serem grandes, anônimas criaturas do povo. O bom intérprete sente um estranho afeto pela composição que interpreta. E, nesse instante, letra e melodia são suas. O autor é ele.
Por isso, Clara Nunes tem o quilate de uma grande intérprete. Porque, quando canta, se une ao povo num sentimento comum. E o povo sente e gosta e canta com ela. Porque também do povo é o compositor que ainda está por surgir, o mestre que ainda não apareceu.
O povo é simples nas suas origens. E entende melhor as coisas simples. Por isso Clara, porque também veio do povo e tem a mesma simplicidade, porque traz dentro de si a força do talento, porque dedicou-se completamente à música de sua terra e ao canto de seu povo que ela tanto ama, pode ser chamada por nós de Cantora das Três Raças.
A brasileira Clara Nunes.
Mineira carinhosamente.
Ou somente CLARA.
Paulo César Pinheiro
Texto-apresentação do disco “Canto das três raças”, lançado em 1976.


GUERREIRA
João Nogueira / Paulo César Pinheiro

Se vocês querem saber quem eu sou
Eu sou a tal mineira
Filha de Angola, de Ketu e Nagô
Não sou de brincadeira
Canto pelos sete cantos
Não temo quebrantos
Porque eu sou guerreira
Dentro do samba eu nasci,
Me criei, me converti
E ninguém vai tombar a minha bandeira

Bole com samba que eu caio e balanço o balaio no som dos tantãs
Rebolo, que deito e que rolo,
Me embalo e me embolo nos balangandãs
Bambeia de lá que eu bambeio nesse bamboleio
Que eu sou bam-bam-bam
E o samba não tem cambalacho,
Vai de cima embaixo pra quem é seu fã
Eu sambo pela noite inteira,
Até amanhã de manhã
Sou a mineira guerreira,
Filha de Ogum com Iansã
Parte falada:

Salve o Nosso Senhor Jesus Cristo – Epa – Babá, Oxalá
Salve São Jorge Guerreiro – Ogum, Ogunhê, meu pai
Salve Santa Bárbara – Eparrei, minha mãe Iansã
Salve S. Pedro – Kaô – Kabecilê, Xangô
Salve S. Sebastião – Okê – Arô – Oxóssi
Salve Nossa Senhora da Conceição – Odô – Fiabá – Iemanjá
Salve Nossa Senhora da Glória – Ora – Ye – Ye – Ô, Oxum
Salve Nossa Senhora de Santana – Nanã – Buruquê, Saluba, Vovó
Salve S. Lázaro – Atotô, Abaluai – ê
Salve S. Bartolomeu – Arrobobô, Oxum – Maré
Salve o povo da rua
Salve as crianças
Salve os Preto Velho – Pai Antônio, Pai Joaquim D’Angola, Vovó Maria Conga, Saravá / E salve o Rei Nagô.

Fontes: CD “Guerreira”, Clara Nunes, EMI, 421096-2.
http://letras.mus.br/clara-nunes/81897/



                                            MINHA MISSÃO
João Nogueira / Paulo César Pinheiro

Quando eu canto
É para aliviar meu pranto
E o pranto de quem já
Tanto sofreu
Quando eu canto
Estou sentindo a luz de um santo
Estou ajoelhando aos pés de Deus
Canto para anunciar o dia
Canto para amenizar a noite
Canto pra denunciar o açoite
Canto também contra a tirania
Canto porque numa melodia
Acendo no coração do povo
A esperança de um mundo novo
E a luta para se viver em paz

Do poder da criação
Sou continuação
E quero agradecer
Foi ouvida minha súplica
Mensageiro sou da música
O meu canto é uma missão
Tem força de oração
E eu cumpro o meu dever
Aos que vivem a chorar
Eu vivo pra cantar
E canto pra viver

Quando eu canto, a morte me percorre
E eu solto um canto da garganta
Que a cigarra quando canta morre
E a madeira quando morre canta
Fonte: LP "Clara", Clara Nunes, EMI, 1981, 062421224.








AI, QUEM ME DERA
Vinicius de Moraes

Ai, quem me dera terminasse a espera
Retornasse o canto simples e sem fim
E ouvindo o canto se chorasse tanto
Que do mundo o pranto se estancasse enfim

Ai, quem me dera ver morrer a fera
Ver nascer o anjo, ver brotar a flor
Ai, quem me dera uma manhã feliz
Ai, quem me dera uma estação de amor

Ah, se as pessoas se tornassem boas
E cantassem loas e tivessem paz
E pelas ruas se abraçassem nuas
E duas a duas fossem ser casais

Ai, quem me dera ao som de madrigais
Ver todo mundo para sempre afim
E a liberdade nunca ser demais
E não haver mais solidão ruim

Ai, quem me dera ouvir o nunca-mais
Dizer que a vida vai ser sempre assim
E, finda a espera, ouvir na primavera
Alguém chamar por mim

Fonte: MORAES, Vinicius. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.



SAGARANA
João de Aquino / Paulo César Pinheiro

A ver, no em-sido
Pelos campos-claros: estórias
Se deu-passado esse caso
Vivência é memórias
Nos Gerais
A honra é-que-é-que se apraz
Cada quão
Sabia a sua distrição
Vai que foi sobre
Esse era-uma-vez,
 'sas passagens,
Em beira-riacho
Morava o casal: - Personagens
A mulher
Tinha o morenez que se quer,
Verdeolhar,
Dos verdes do verde invejar
Dentro lá deles
Diz-que existia outro Gerais
Quem o qual,
Dono seu,
Esse era erroso,
No a-ponto-de ser feliz demais...
Ao que a vida,
No bem e no mal dividida,
Um dia ela dá o que faltou!... 
É buriti, Buritizais
É o batuque corrido dos Gerais
O que aprendi
O que aprenderás
Que nas veredas por em-redor
Sagarana
Uma coisa é o Alto Bom-Buriti
Outra coisa é o Buritirana...
A pois, que houve,
No tempo das luas-bonitas,
Um moço êveio:
- Viola enfeitada de fitas.
Vinha atrás
De uns dias para descanso e paz
Galardão:
- Mississol-redó: falanfão
No-que: - Se abanque,
Que ele deu nos óio o verdejo
Foi se afogando,
Pensou que foi mar, foi desejo...
Era ardor
Doidava de verde o verdor!
E o rapaz
Quis logo querer os Gerais
E a dona deles:
Que sim! - que ela disse, verdeal,
Quem o qual
Dono seu,
Vendo as olhâncias,
No-avoo virou bicho-animal,
- Cresceu nas facas:
- O moço ficou sem ser macho
E a moça sem verde ficou!...
É Buriti, Buritizais...
Quem quiser que cante outra
Mas à-moda dos Gerais
Buriti, Rei-das-Veredas
Guimarães: Buritizais!
Fonte: PINHEIRO, Paulo César. Histórias das minhas canções. São Paulo: Leya, 2010.

CANTO DAS TRÊS RAÇAS
Mauro Duarte / Paulo César Pinheiro

Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil
Um lamento triste sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro e de lá cantou
Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
Do Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou
Fora a luta dos Inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou
E de guerra em paz,
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
 Canta de dor
E ecoa noite e dia
É ensurdecedor
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador!
Esse canto que devia
Ser um canto de alegria
Soa apenas como um soluçar de dor




Fonte: PINHEIRO, Paulo César. Histórias das minhas canções. São Paulo: Leya, 2010.


BASTA UM DIA
Chico Buarque

Pra mim
Basta um dia
Não mais que um dia
Um meio dia
Me dá
Só um dia
E eu faço desatar
A minha fantasia
Só um
Belo dia
Pois se jura, se esconjura
Se ama e se tortura
Se tritura, se atura e se cura
A dor
Na orgia
Da luz do dia
É só
O que eu pedia
Um dia pra aplacar
Minha agonia
Toda a sangria
Todo o veneno
De um pequeno dia
Só um
Santo dia
Pois se beija, se maltrata
Se como e se mata
Se arremata, se acata e se trata
A dor
Na orgia
Da luz do dia
É só
O que eu pedia, viu
Um dia pra aplacar
Minha agonia
Toda a sangria
Todo o veneno
De um pequeno dia

Fonte: HOLLANDA, Chico Buarque de. Tantas palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.



 SEM COMPANHIA
Ivor Lancellotti  / Paulo César Pinheiro

Tudo o que esperei
De um grande amor
Era só juramento
Que o primeiro vento
Carregou
Outra vez tentei
Mas pouco durou
Era um golpe de sorte
Que um vento mais forte
Derrubou
E assim de quando em quando
Eu fui amando mais
Passei por ventos brandos
Passei por temporais
Agora estou num cais
Onde há uma eterna calmaria
E eu não aguento mais
Viver em paz
Sem companhia.
Fonte: LP "Brasil mestiço", Clara Nunes, EMI, 1980, 062421207.


LAMA
Mauro Duarte

Pelo curto tempo que você sumiu
Nota-se aparentemente que você subiu
Mas o que eu soube a seu respeito
Me entristeceu, ouvi dizer
Que pra subir você desceu
Você desceu

Todo mundo quer subir
A concepção da vida admite
Ainda mais quando a subida
Tem o céu como limite

Por isso não adianta estar
No mais alto degrau da fama
Com a moral toda enterrada na lama
Fonte: http://letras.mus.br/clara-nunes/118689/


A DEUSA DOS ORIXÁS
Romildo / Toninho
Iansã, cadê Ogum? Foi pro mar
Mas Iansã, cadê Ogum? Foi pro mar

Iansã penteia os seus cabelos macios
Quando a luz da lua cheia clareia as águas do rio
Ogum sonhava com a filha de Nanã
E pensava que as estrelas eram os olhos de Iansã

Mas Iansã, cadê Ogum? Foi pro mar...

Na terra dos orixás, o amor se dividia
Entre um deus que era de paz
E outro deus que combatia
Como a luta só termina quando existe um vencedor
Iansã virou rainha da coroa de Xangô

Mas Iansã, cadê Ogum? Foi pro mar...
Fonte: http://letras.mus.br/clara-nunes/120356/




PORTELA NA AVENIDA
Mauro Duarte / Paulo César Pinheiro

Portela
Eu nunca vi coisa mais bela
Quando ela pisa a passarela
E vai entrando na avenida
Parece
A maravilha de aquarela que surgiu
O manto azul da padroeira do Brasil
Nossa Senhora Aparecida
Que vai se arrastando
E o povo na rua cantando
É feito uma reza, um ritual
É a procissão do samba abençoando
A festa do divino carnaval
Portela
É a deusa do samba, o passado revela
E tem a velha guarda como sentinela
E é por isso que eu ouço essa voz que me chama
Portela
Sobre a tua bandeira, esse divino manto
Tua águia altaneira é o Espírito Santo
No templo do samba

As pastoras e os pastores
Vêm chegando da cidade e da favela
Para defender as tuas cores
Como fiéis na santa missa da capela
Salve o samba, salve a santa, salve ela
Salve o manto azul e branco da Portela
Desfilando triunfal
Sobre o altar do carnaval.
 Fonte: LP “Clara”, Clara Nunes, EMI, 1981, 062421224


TU QUE ME DESTE O TEU CUIDADO...
Poema de Manuel Bandeira musicado por Capiba
Gravação: 1978, "Guerreira"

Tu que me deste o teu carinho
E que me deste o teu cuidado,
Acolhe ao peito, como o ninho
Acolhe ao pássaro cansado,
O meu desejo incontentado.

Há longos anos ele arqueja
Em aflitiva escuridão.
Sê compassiva e benfazeja.
Dá-lhe o melhor que ele deseja:
Teu grave e meigo coração.

Sê compassiva. Se algum dia
Te vier do pobre agravo e mágoa,
Atende à sua dor sombria:
Perdoa o mal que desvaria
E traz os olhos rasos de água.

Não te retires ofendida.
Pensa que nesse grito vem
O mal de toda a sua vida:
Ternura inquieta e malferida
Que, antes, não dei nunca a ninguém.

E foi melhor nunca ter dado:
Em te pungido algum espinho,
Cinge-a ao teu peito angustiado.
E sentirás o meu carinho.
E sentirás o meu cuidado.
Fontes: CD "Guerreira", EMI 421096 2.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

 

CONTO DE AREIA
Romildo / Toninho

É água no mar
É maré cheia ô
Mareia ô, mareia

Contam que toda tristeza que tem na Bahia
Nasceu de uns olhos morenos molhados de mar
Não sei se é conto de areia ou se é fantasia
Que a luz da candeia alumia pra gente contar

Um dia morena enfeitada de rosas e rendas
Abriu seu sorriso moça e pediu pra dançar
A noite emprestou as estrelas bordadas de prata
E as águas de Amaralina eram gotas de luar

Era um peito só
Cheio de promessa era só

Quem foi que mandou o seu amor
Se fazer de canoeiro
O vento que rola nas palmas
Arrasta o veleiro
E leva pro meio das águas
de Iemanjá
E o mestre valente vagueia
Olhando pra areia sem poder chegar

Adeus, amor
Adeus, meu amor não me espera
Porque eu já vou- me embora
Pro reino que esconde os tesouros
de minha senhora
Desfia colares de conchas pra vida passar
E deixa de olhar pros veleiros
Adeus, meu amor, eu não vou mais voltar

Foi beira mar, foi beira mar quem chamou
É água no mar...

Fontes: CD “Clara Nunes com vida”, EMI 835657 2, 1995 e LP "Clara Nunes / Alvorecer”, EMI, 1974.
Obs.: na capa do LP, não consta um nome de batismo, que figura apenas no “centro” do LP. Inclusive, Adelzon Alves, o produtor, em texto que está na contracapa, diz: “’MENINO DEUS’ ou ‘ALVORECER’ poderia muito bem ser o nome desse novo disco de CLARA NUNES, (...)”.
 

                                              UM SER DE LUZ
João Nogueira / Mauro Duarte / Paulo César Pinheiro

Um dia
Um ser de luz nasceu
Numa cidade do interior,
E o menino Deus lhe abençoou,
De manto branco ao se batizar
Se transformou num sabiá,
Dona dos versos de um trovador
E a rainha do seu lugar

Sua voz então
A se espalhar
Corria chão
Cruzava o mar
Levada pelo ar
Onde chegava espantava a dor
Com a força do seu cantar

Mas aconteceu um dia
Foi que o Menino Deus chamou
E ela se foi pra cantar
Para além do luar
Onde moram as estrelas
E a gente fica a lembrar
Vendo o céu clarear
Na esperança de vê-la, sabiá!

Sabiá
Que falta faz sua alegria
Sem você
Meu canto agora é só melancolia
Canta, meu sabiá
Voa, meu sabiá
Adeus, meu sabiá...
Até um dia!

Fonte: PINHEIRO, Paulo César. Histórias das minhas canções. São Paulo: Leya, 2010.


4 comentários:

  1. Só tem uma palavra para Clara!!! FODA!!! Até hoje tento entender como ela fala aquela ladainha em Guerreira de forma afinada e cadenciada.

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    1. Pois é, Fê, Clara foi minha primeira paixão musical. Fiquei tristíssimo quando ela se foi. Sinto muitas saudades. Ah, "Guerreira" é linda. Um beijo e obrigado pela visita.

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  2. Eu não quero falar de nem sobre Clara Nunes. Hoje, só tenho uma pergunta, "e o livro, quando sai?"

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    1. Rê, amor meu, se Deus quiser, e Ele quererá, o livro vai sair. Só preciso de tempo para selecionar as crônicas, organizá-las... Um beijo grande. Obrigadíssimo pela visita ao 'blog'.

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