sábado, 13 de abril de 2013

O CANTO DA SEREIA


Ithamara Koorax - crédito Arnaldo DeSouteiro-001
Crédito: Arnaldo DeSouteiro
O CANTO DA SEREIA
Por Fábio Brito
"Reza a lenda" que as Sereias, seres marinhos com cabeça e tronco de mulher e o restante do corpo igual ao de um peixe (ou de um pássaro), eram donas de um encanto incomum. Devido à beleza de seu rosto e à melodia de seu canto, elas seduziam os navegadores para, depois, arrastá-los para o mar e devorá-los. Na Odisseia, por exemplo, Ulisses, amarrado ao mastro de seu navio, cede bravamente à sedução do canto da ‘sereia’. Nos relatos mais antigos acerca desse mito, a Sereia, com sua voz melodiosa, acalma os ventos, cessando-os bruscamente. Assim, configura-se para nós a dimensão transcendente da música. E por falar em transcendência, uma das vozes mais perfeitas e melodiosas que já ouvi – cujo poder é semelhante ao das Sereias – é a de Ithamara Koorax, intérprete que é prova inconteste de que música é algo sublime mesmo.
Dia 29 de março, assisti ao show (o 22º em 2013) que encerra a temporada de um mês de Ithamara no Sofitel (Copacabana, Rio de Janeiro). Como eu já esperava, nossa diva estava “iluminante”. De roupa preta, anéis e braceletes, ela subiu ao palco acompanhada, desta vez, apenas pelos músicos Lulu Martin (teclados) e Jaime Aklander (baixo). Privilegiou, portanto, canções mais intimistas. Com a desenvoltura, o carisma e o talento de sempre, “the voice” passeou pelo que há de melhor em música. Durante o espetáculo, o público, que lotou o bar do hotel, pôde, durante duas horas, aproximadamente, chegar ao nirvana.
Entre as muitas canções que integraram o show, eis algumas: All Blues, da lenda Miles Davis, abriu a noite.The shadow of your smile (Johnny Mandel / Paul Francis Webster), que está em “Serenade in blue”, veio logo em seguida. É hora, portanto, de prender a respiração e observar tudo: da precisão das notas à intenção de cada música. Nada pode atrapalhar nossa concentração, porque quem está no palco não é somente uma extraordinária cantora dotada de recursos vocais que a maioria avassaladora não tem, mas uma intérprete em plena maturidade, que tem as rédeas da arte em suas mãos. All of me/ Disse alguém (Seymour Simons/Gerald Marks – Haroldo Barbosa), do repertório de Billie Holiday e Frank Sinatra  e também gravada por João Gilberto (“Brasil”, 1981), não poderia faltar. Que bela canção sempre perfeita na voz de Ithamara: “Disse alguém / que há bem no coração / Um salão onde o amor descansa (...)”. Mas que nada (Jorge Ben), que, invariavelmente, ela inclui em seus espetáculos, é a prova cabal de que Ithamara não repete quaisquer interpretações. Ela pode cantar determinada canção centenas de vezes, que  todas as interpretações serão únicas. Quantos intérpretes, no mundo, conseguem essa proeza? Raríssimos! Setembro (Amada) [Ivan Lins, Gilson Peranzzetta e Vitor Martins] é uma das mais belas canções do repertório de Ithamara. A letra é um primor: “Vai, amada, mesmo a vida sendo perigosa / Mesmo que não seja um mar de rosas / Nunca queira desistir de um grande amor (...)”. Insensatez (Tom Jobim / Vinicius de Moraes), que, em inglês, ela incluiu em “Bossa Nova Meets Drum ‘n’ bass” e em “Autumn in New York”, recebeu uma interpretação, em português, delicadíssima. Trata-se, pois, de uma das melhores obras jobinianas: “A insensatez que você fez / Coração mais sem cuidado / Fez chorar de dor o seu amor / Um amor tão delicado (...)”. Fechando a primeira parte do show, nossa musa chega com nada mais, nada menos que a Ária na corda sol da suíte nº 3 (Johann Sebastian Bach). Desnecessário eu dizer que, literalmente, chorei. Impossível tentar conter a emoção, o choro. A verdade do canto de Ithamara toca no que há de mais humano em nós. Dores e saudades guardadas vêm à tona por meio de seu canto tocante e envolvente.
Na segunda parte do show, a emoção continuou a toda: Autumn in New York (Vernon Duke) e Fotografia (Tom Jobim), duas canções primorosas, foram interpretadas com a voz “do corpo todo”. É, Ithamara não canta só com a voz da cabeça. A primeira dá nome a um dos CDs mais sofisticados (e todos o são) de Ithamara; a segunda é mais do que adequada para ser interpretada no Sofitel, de onde sempre podemos ver a lua saindo do mar de Copacabana. Por pura armação dos deuses, no dia do show, como noutras vezes, havia uma lua imensa “boiando nua no céu”¹. Lugar comum (João Donato / Gilberto Gil) e Flor de maracujá (João Donato / Lysias Enio) foram duas surpresas para mim: eu ainda não as conhecia com Ithamara. A interpretação de ambas – de um brilho sem par - superou as que eu já conhecia (todas as interpretações de Ithamara não deixam para mais ninguém). Meditação (Tom Jobim / Newton Mendonça) é uma canção que dispensa quaisquer comentários. É linda e pronto! Para combinar com tanta beleza, ganhou de Ithamara, assim como Lígia (Tom Jobim), uma interpretação delicadíssima. Que maravilha (Jorge Ben / Toquinho) é outra que ela sempre traz na manga. No refrão, o coro da plateia é inevitável em todos os espetáculos. Não há quem não conheça essa canção. No roteiro, há também algumas canções pouco recorrentes nos shows de nossa diva, mas tão belas e comoventes como as demais. I Fall in Love Too Easily (Sammy Cahn / Jule Styne)  e  Spirit of Summer (Eumir Deodato), assim como Feel Like Making Love, sucesso de Roberta Flack, e Sunflower (Freddie Hubbard) deram um toque de sofisticação ainda maior ao espetáculo. Hô-bá-lá-lá (João Gilberto) e Bim bom (João Gilberto), que estão em “Bim bom”, outro que está entre os CDs mais premiados de Ithamara, homenageiam o mestre João Gilberto. Zum zum (Fernando Lobo / Paulo Soledade) é uma marcha deliciosa. Do repertório de Dalva de Oliveira, foi sugerida por José Roberto Bertrami, líder do Azimuth que acompanhou Ithamara por um bom tempo e deixou-nos há pouco. Aviso aos navegantes (Lulu Santos) é outra canção que Ithamara não abandona. Dá um prazer enorme “acompanhar” nossa diva no refrão desse música. Recado Bossa Nova (Djalma Ferreira / Luís Antonio), que está em “Obrigado, Dom Um Romão” e “Wave 2001 – Bossa Nova Songbook”, tem uma das metáforas mais bonitas que já ouvi: “Saudade, meu moleque de recado”. Corcovado (Tom Jobim / Vinicius de Moraes), que Ithamara gravou com “Os Cariocas” em “Casa da Bossa”, é, ao lado de Fotografia, minha preferida do Jobim: “Um cantinho, um violão (...)”. Garota de Ipanema/The girl from Ipanema (Tom Jobim / Vinicius – Norman Ginbel) e mais três canções, entre elas Fly Me To The Moon, ganharam a participação luxuosa de João Moita, cantor de voz suave, delicada e afinadíssima. Can’t take my eyes off of you (Bob Crewe / Bob Gaudio), canção conhecida no mundo todo, entrou no ‘bis’. Não houve quem não a cantasse junto com Ithamara.
Finda a temporada no Sofitel, nossa diva, novamente, vai ao mundo, que lhe abre os braços mais uma vez. É preciso viajar e espalhar seu canto por aí. Ficar só por aqui ainda não é possível, uma vez que a indústria fonográfica continua fomentando certos esquemas “feudais” (já denunciados por Elis Regina em fins da década de 70). Ithamara, com seu canto altaneiro, um dos mais belos que há, está entre as melhores cantoras do mundo. Ela é mais que uma cantora: é um vocal. É preciso, portanto, continuar espalhando sua voz impecável a todos os cantos do planeta, mostrando a todos que têm bom gosto seu canto iluminado. Quanto a mim, só tenho de agradecer a Deus e a todas as divindades o privilégio de ouvir sua voz abençoada e insuperável. A bênção, Ithamara Koorax.
¹ Da canção “Da gema”, de Caetano Veloso


A VOZ DE UMA PESSOA VITORIOSA
Caetano Veloso / Wally Salomão

Sua cuca batuca
Eterno zig-zag
Entre a escuridão e a claridade
Coração arrebenta
Entretanto o canto aguenta
Brilha no tempo a voz vitoriosa
Sol de alto monte
Estrela luminosa
Sobre a cidade maravilhosa
E eu gosto dela ser assim
Vitoriosa
A voz de uma pessoa assim
Vitoriosa
Que não pode fazer mal
Não pode fazer mal nenhum
Nem a mim, nem a ninguém
Nem a nada
E quando ela aparece
Cantando gloriosa
Quem ouve nunca mais dela
Se esquece
Barcos sobre os mares
Voz que transparece
Uma vitoriosa forma
De ser e viver 
Fonte: CD “Álibi”, Maria Bethânia, Universal Music, 8360112 (LP de 1978).

RAINHA DO MAR
Dorival Caymmi

Minha sereia, rainha do mar
Minha sereia, rainha do mar
O canto dela faz admirar
O canto dela faz admirar

Minha sereia é a moça bonita
Minha sereia é a moça bonita
Nas ondas do mar aonde ela habita
Nas ondas do mar aonde ela habita

Ai, tem dó
De ver o meu penar
Ai, tem dó
De ver o meu penar
Fonte: CD “Gal canta Caymmi”, Gal Costa, Universal Music, 60252748401 (LP 1976)


PRESENTE
Zé Miguel Wisnik
 Eu quero simplesmente
 te dar um presente
a rosa dos tempos desabrocha
 desabrocha novamente

Eu quero simplesmente
 a vida semente
a mente que vibra
 vibra as fibras da cidade
que vibra novamente

Eu quero simplesmente
 você nesse instante
amante da vida
da vida amante
E o gozo do mundo
gozo sem fundo
gozamos durante 
Fonte: CD “Pérolas aos poucos”, Zé Miguel Wisnik, Maianga Discos, MG 09010.

MÓDULO DE VERÃO

As cigarras começaram de novo, brutas e brutas.
Nem um pouco delicadas as cigarras são.
Esguicham atarrachadas nos troncos
o vidro moído de seus peitos, todo ele
(chamado canto) cinzento-seco, garra
de pelo e arame, um áspero metal.
(...)
A cigarra atrela as patas
 é no meu coração.
O que ela fica gritando eu não entendo,
 sei que é pura esperança.
 PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S.A., 1986.




 



6 comentários:

  1. Fábio! Mais um belo texto.
    Acabo por querer ouvi-la devido o quanto fala nela, a voz é lindíssima! Vi em um programa matinal.
    Ithamara Koorax, o show deve ser ótimo, afinal Rodrigo, Adriano também elogiaram muito!
    Luiz Fernando Gava Fernandes

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  2. Luiz, meu amigo, você será o próximo a assistir a um 'show' da Ithamara comigo. Registre aí em sua agenda. Tenho certeza de que você ficará encantado com tudo: com o espetáculo mesmo, que é fantástico, e com a própria Ithamara, que é de um carinho sem fim. Abração, amigo. Obrigado pela visita ao "blog".

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  3. Fábio, belo texto, aliás... falar assim de seus textos é uma redundância... os seguidores de Ithamara vão aumentar no ES... mais 4. Falo depois quem são. Bjos.

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    1. Fê, não dá para não escrever sobre a Ithamara, cujo canto é sempre comovente para mim. "O canto da sereia", por exemplo, nasceu no dia do 'show'. As ideias nasceram lá. Quanto aos novos fãs, por favor, diga-me os nomes. Bjs.

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  4. Canta e encanta rouxinol!
    Beijo cronista!

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    1. Obrigado, Hércules. Ithamara é - e sempre será - uma de minhas paixões. Beijos. Fábio

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