sábado, 5 de outubro de 2013

"BACANAL DO CORAÇÃO"





“BACANAL DO CORAÇÃO”

Para o amigo Rondinelli Tomazelli, que me deu um presentaço: o CD "Clarice", da  Simone Guimarães...
Por Fábio Brito

Em “A partida do trem”¹, Clarice Lispector nos diz que taquicardia é “bacanal do coração”. E foi assim que senti o coração, totalmente acelerado, batendo forte mesmo, quando ouvi “Clarice”, o mais recente CD de Simone Guimarães. É sempre assim quando ouço esta moça que veio lá de Santa Rosa de Viterbo, cidade do interior de São Paulo.
Já conheço Simone faz um tempinho. Em 1998, por meio da Music Club, uma loja virtual de CDs, eis que deparei com Aguapé (produzido por Cristina Saraiva e com direção musical de Maurício Maestro), que ela estava lançando pela Cid. Comprei, mas sem conhecer quase nada acerca da intérprete: apenas li algumas informações contidas na revista que a própria Music Club disponibilizava a seus clientes.
Pois é, assim que recebi o CD, sem titubear, fui direto à terceira faixa, “No tempo dos quintais”, de Sivuca e Paulinho Tapajós, que eu já conhecia e que sempre considerei uma das mais belas canções brasileiras de todos os tempos. Eu queria conferir interpretação e arranjo imediatamente. Mesmo que, até aquele momento, Simone fosse uma cantora praticamente desconhecida para mim, já dava ‘pra’ saber, só pela escolha do repertório, que ela primava pelo que chamo de refinamento estético. Fui, então, à faixa! Deus meu, quanta beleza! O piano do Leandro Braga emoldurando a voz cálida e apaixonante da Simone é um momento inigualável. Só ouvindo para saber e sentir:
Era uma vez / Um tempo de pardais / De verde nos quintais / Faz muito tempo atrás / Quando ainda havia fadas / No bonde havia um anjo pra guiar / Outro pra dar lugar / Pra quem chegar sentar / (...) 
“Porque não se pode prolongar o êxtase sem morrer”, como ensina Lispector, parei um pouco para ouvir as demais faixas do CD, que é uma obra-prima e, por isso mesmo, figura, indubitavelmente, entre os melhores trabalhos da grande MPB de todos os tempos. À canção “No tempo...”, juntemos “Outras mulheres” (Joyce / Paulo César Pinheiro), “Minha terra” (Simone / Cristina Saraiva), “Estrela guia” (Ivan Lins / Vitor Martins), com participação do Ivan, “Pato preto” (Tom Jobim), em dueto com Danilo Caymmi, um dos talentosos integrantes do “clã” Caymmi, e outras pérolas.
Pouco tempo depois, revirando o mundo, consegui o Virada pra lua, lançado em 2001 pela Lua Music. Não foi fácil adquiri-lo, uma vez que as lojas não comercializam o que tem valor. Que ironia, não é mesmo? Em vez de oferecerem os tais biscoitos finos à massa, como ensinou Oswald de Andrade, entopem a rapaziada com um cardápio tão indigesto, que tenho engulhos só em pensar. Bom, voltemos ao CD: a faixa que me fisgou de imediato foi nada mais, nada menos que “Imagem e semelhança”, de Bena Lobo, Kiko Continentino e Milton Nascimento, com a participação deste, o nosso Bituca, cuja voz seria a Deus, caso este cantasse, como afirmou Elis Regina:
Pai do céu me manda alguma ajuda / A luz numa mensagem, careço de saber / Senhor, só preciso de um recado / Há coisas nessa vida /  Que não posso entender / (...) / A gente nem merece de longe comparar / Falta de respeito, Do começo, nem se acha um herdeiro da glória de amar / (...) 
Cirandeiro foi o terceiro CD da Simone que me caiu na alma. Os cheiros mineiros estão aí presentes, como em “Maria solidária”, do Milton e do Brant, e “Canoa, canoa”, do Nelson Angelo e do Brant, que eu já conhecia com o próprio Milton (Clube da esquina 2) e com a Simone, mas a Bittencourt de Oliveira (em Face a face). Abrindo o CD, um petardo: “Lamento sertanejo”, canção que reuniu Gilberto Gil e Dominguinhos. Ouvi-a diversas vezes, tamanha a comoção de que fui tomado. A voz está extremamente melodiosa e em total comunhão com o arranjo: 
Por ser de lá / Do sertão, lá do cerrado / Lá do interior do mato / Da caatinga, do roçado / Eu quase não saio / Eu quase não tenho amigo / Eu quase que não consigo / Ficar na cidade / Sem viver contrariado / (...)
Em 2002/3, a gravadora Biscoito Fino (o nome tem tudo a ver...), lança Casa de oceano, outra obra primorosa de nossa Simone. Como resistir a “Milagre dos peixes” (Milton / Brant), “Canção brasileira” (Sueli Costa / Abel Silva), “Retrato em branco e preto” (Jobim / Buarque) e “Velho moinho” (Francis / Olivia Hime), por exemplo? Impossível! No entanto, quando ouvi “O silêncio de Iara” (Guinga / Felipe Gama), também incluída no CD que o próprio Guinga lançara naquele mesmo ano, fiquei estupefato:
Iara / Me leva / Agora / Iara / Que a vida / Levaste em tuas asas / (...)
Não sei para onde nos leva a voz da Simone e nem de onde ela vem. O que sei é que ela nos comove porque se mostra inteira. A intérprete recorre, sim, a uma técnica apurada, mas o mais importante é que a emoção e a verdade do canto prevalecem. Para fechar o Casa de oceano, a bela “Piano no fundo do mar”, da própria Simone, que se deixa acompanhar pelo piano e o violão de Jaime Alem, que foi, durante muitos anos, maestro de Maria Bethânia. No encarte, um toque de classe na citação de Lautréamont: “Eu te saúdo, velho oceano!” Um luxo! 
“Flor de pão”, também da Biscoito Fino, saiu em 2007. Sabe o que me pegou de imediato? Tudo, claro! No entanto, sempre há “aquela” canção que nos tonteia e hipnotiza. Desta vez, a hipnose e a embriaguez ficaram a cargo de “Carta à amiga poeta” (Francis Hime / Simone Guimarães). Impossível não prender a respiração ao ouvi-la. Sensação semelhante nos provoca a “Ave Maria”, música de Thiago Amud sobre o texto tradicional em latim. “Via-Crúcis” (Guinga / Edu Kneip), com a participação do excelente Renato Braz, também é comovente. Eis a “Carta...”:
Escreva um poema pra mim / Com jeito de voz falando / Com mãos me tocando e olhos fechados, sentindo palavras sem letra / Escreva com as ondas do mar / Escreva com o frio, com os medos / Com dúvidas, perguntas, com sanha, com gana, com chuva / Escreva sem palma, escreva sem pele / (...)
E, há poucos dias, fui apresentado ao Clarice, uma homenagem à escritora Clarice Lispector, “poeticamente” explicada no texto do encarte, assinado pela própria Simone. O disco é uma festa! Conta com a participação de diversos artistas, entre os quais Miúcha, Novelli, Leonel Laterza, André Mehmari, Paulo Jobim e Ana de Hollanda. Não é qualquer um que consegue reunir um elenco assim.
Entre as catorze faixas que compõem o CD, “Sem mais tristezas”, com melodia de Simone Guimarães e letra de Camilla Inês, é uma das mais bonitas, se não a mais. Nela, realçam os graves – lindos, por sinal! – da Simone e o timbre luxuoso do Leonel Laterza, que me reportou à sofisticação do Carlos Fernando, integrante do grupo Nouvelle Cuisine. O arranjo ficou a cargo do André Mehmari, que também toca piano, baixo, bateria e xilofone. Para que mais? Nobreza, requinte e emoção estão aí, amalgamados.
Impossível não comentar que, novamente, Simone revisita o repertório do Milton. Desta vez, ela nos trouxe “Vera Cruz” (Milton / Márcio Borges). Como todas as canções do Bituca, a construção harmônica não é das mais fáceis. No entanto, Simone passeia por essa canção com uma desenvoltura invejável. Competente e belo esse passeio:

Ah, quisera esquecer / A moça que se foi / Da nossa Vera Cruz / E o pranto que ficou / Do norte que sonhei / Das coisas do lugar  (...)

E o que dizer de “Muito diferente”, do Guilherme Arantes? Desde que a Joia Moderna lançou “A voz da mulher na obra de Guilherme Arantes”, tenho ouvido muito essa canção, que é simples, sim, mas bem distante do banal. E a gravação da Simone é emocionante. No som do carro, ouço-a várias vezes:
(...) Prazer em conhecer, / O gosto sem igual da tal felicidade / Bom saber que há sempre um tempo pra gostar / Sem pressa de gozar / Sem nada a se provar / (...) O amor que tome conta da vida da gente / Por amor que o mundo fiqe muito diferente.
Em “Estrela do mar”, parceira da Simone com Carlos Di Jaguarão, ela convida Danilo Caymmi, que chega inteiro com seus graves profundos: 
Há uma sereia, / Uma alma alheia, / Que é serpente do mar. / (...) / Há uma sereia, / Num cais dourado a brilhar, / E a barca dos navegantes / Que ali passei. / (...)

E “Clarice”, a faixa de abertura e que dá título ao CD? Com letra e melodia da própria Simone, é a confirmação do entusiasmo que nossa intérprete tem em cantar, além, é claro, de comprovar definitivamente o crivo poético exigente da estrela: 
Basta olhar nos seus olhos, Clarice/ Olhar que ninguém vê / Como são claros os seus olhos, Clarice! / Claros de convencer / Tão evidentes, manifestos, inequívocos / Claros, Clarice... mas distinto o seu caminho! / Saudades de você / Só pra encontrar o seu mundo Clarice / Procurei escrever / (...)

E há muito mais nesse Clarice. Nosso “doce deleite” não termina aqui: “Como a vida” (Simone Guimarães / Miúcha), “Passarinhada” (Carla Capalbo), “Raio de luar” (Bena Lobo, Bia Paes Leme e Dudu Falcão), “Gira girassol” (Simone Guimarães), “Beija-flor colibri” (Novelli e Ana de Hollanda), “Janaína meu canto de guerra” (Novelli e Simone Guimarães), “Rastros no asfalto” (Gonzaga da Silva), “Anseios da sereia” (Simone Guimarães e Carlos Di Jaguarão) e “Vi” (Simone Guimarães) completam o álbum.
Desde Piracema, o primeiro disco, até agora, a contribuição de Simone Guimarães para a MPB não é menos que monumental. Ouvidos em conjunto ou separadamente, seus discos atestam a alta qualidade de uma MPB que corre por fora do esquema pasteurizado e feudal das grandes (?) gravadoras brasileiras. A despeito da má vontade da indústria fonográfica, ela continua gravando, mesmo que quixotescamente, como ‘o’ fazem muitos outros artistas de seu quilate. Simone se diferencia, o que pode ser para alguns uma “insultante ofensa”. Paciência! O que não dá ‘pra’ fazer é dobrar-se aos desmandos de um mercado perverso, que nivela por baixo e barateia tudo em nome do “sucesso a qualquer custo”. O povo – pobre povo! – ainda vai comer os biscoitos finos que Simone Guimarães e sua “intrépida trupe” produzem. É o que espero. É o que desejo.

P.S.:
Depois de ouvir o Clarice, minha vida já mudou bastante. Tenho certeza de que Deus nunca irá permitir que eu seja privado de ouvir discos como esse. Se, porventura, algum dia, eu enlouquecer e deixar de gostar da boa música, a punição não será nada leve: é certo que o DEUS DA MÚSICA, da forma mais torpe possível, ‘me’ deixará trancado num quarto escuro, durante dias e dias, ouvindo todos os CDs das deusas “da/do” axé e, como sobremesa, terei de engolir, sem água, sertanejo universitário.

¹ LISPECTOR, Clarice. Onde estivestes de noite. 7ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.

Foto: Fábio Brito


SÓ CLARICE...

(...) não sacrifique o dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente infeliz agora, tome alguma providência agora, pois só na sequência de agoras é que você existe.
Cada um de nós, aliás, fazendo um exame de consciência, lembra-se pelo menos de vários agoras que foram perdidos e que não voltarão mais. Há momentos na vida que o arrependimento de não ter tido ou não ter sido ou não ter resolvido ou não ter aceito, há momentos na vida em que o arrependimento é profundo como uma dor profunda.
(Aprendendo a viver – In: A descoberta do mundo)

Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor. Há o amor. Que tem que ser vivido até a última gota. Sem nenhum medo. Não mata.
(Mas há a vida – In: A descoberta do mundo)

Eu te dou pão e preferes ouro. Eu te dou ouro, mas tua fome legítima é de pão.
(Desencontro – In: A descoberta do mundo)
(...) é difícil compreender e amar o que é espontâneo e franciscano. Entender o difícil não é vantagem, mas amar o que é fácil de se amar é uma grande subida na escala humana.
(Tempestade de almas – In: Onde estivestes de noite)
Ah, e dizer que isto vai acabar, que por si mesmo não pode durar. Não, ela não está se referindo ao fogo, refere-se ao que sente. O que sente nunca dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. Encarniça-se então sobre o momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja. Então, ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre do homem, e ao prendê-la nas suas, ela doce arde, arde, flameja.
(Vida ao natural – In: Onde estivestes de noite)
Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que passaram e para sempre se perderam. Mas é inútil esquivar-se: há o silêncio. Mesmo o sofrimento pior, o da amizade perdida, é apenas fuga. Pois se no começo o silêncio parece aguardar uma resposta – como ardemos por ser chamados a responder – cedo se descobre que de ti ele nada exige, talvez apenas o teu silêncio. Quantas horas se perdem na escuridão supondo que o silêncio te julga – como esperamos em vão por ser julgados pelo Deus. Surgem as justificações, trágicas justificações forjadas, humildes desculpas até a indignidade. Tão suave é para o ser humano enfim mostrar sua indignidade e ser perdoado com a justificativa de que se é um ser humano humilhado de nascença.
(Silêncio – In: Onde estivestes de noite)  

De Ulisses ela aprendera a ter coragem de ter fé – muita coragem, fé em quê? Na própria fé, que a fé pode ser um grande susto, pode significar cair no abismo, Lóri tinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mãos de Ulisses enquanto a outra mão de Ulisses empurrava-a para o abismo – em breve ela teria que soltar a mão menos forte do que a que a empurrava, e cair, a vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre.
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A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser humano.
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(...) faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, (...)
(In: Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres)
Quem me acompanha que me acompanhe: a caminhada é longa, é sofrida mas é vivida. Porque agora te falo a sério: não estou brincando com palavras. Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para além das palavras. E um silêncio se evola sutil do entrechoque das frases.
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Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a entrelinha- morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. o que salva então é escrever distraidamente.
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Sei que meu olhar deve ser o de uma pessoa primitiva que se entrega toda ao mundo, primitiva como os deuses que só admitem vastamente o bem e o mal e não querem conhecer o bem enovelado como em cabelos no mal, mal que é o bom.
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A harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz. Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio. Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas – escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio.
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Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais.
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Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa. Esses instantes que decorrem no ar que respiro: em fogos de artifício eles espocam mudos no espaço. Quero possuir os átomos do tempo.
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Mas o instante-já é um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga. O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou tocará num imediato que absorve o instante presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acedo e apago, acendo e apago. Só que aquilo que capto em mim tem, quando está sendo agora transposto em escrita, o desespero das palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar. Mais que um instante, quero o seu fluxo.

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Mesmo para os descrentes há o instante do desespero que é divino: a ausência do Deus é um ato de religião. Neste mesmo instante estou pedindo ao Deus que me ajude. Estou precisando. Precisando mais do que a força humana. Sou forte mas também destrutiva. O Deus tem que vir a mim já que não tenho ido a Ele. Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu não mereça. Venha. Ou talvez os que menos merecem mais precisem. Sou inquieta e áspera e desesperançada. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor. Às vezes me arranha como se fossem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e no entanto continuo inquieta é porque preciso que o Deus venha. Venha antes que seja tarde demais. Corro perigo como toda pessoa que vive. E a única coisa que me espera é exatamente o inesperado. Mas sei que terei paz antes da morte e que experimentarei um dia o delicado da vida. Perceberei – assim como se come e se vive o gosto da comida.
(In: Água viva) 

Eu não faço literatura: eu apenas vivo ao correr do tempo. O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever. Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim.
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Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras – quais? talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo.
(In: Um sopro de vida)  

Eu não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura.
(Menino a bico de pena – In: Felicidade clandestina) 

A um certo modo de olhar, a um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é mais necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais.
(O ovo e a galinha – In: A legião estrangeira)

(...) tendo apenas a mim, e obrigado a iniciar-se amando o ruim, ele começara pelo que poucos chegavam a alcançar. Sereia fácil demais querer o limpo; inalcançável pelo amor era o feio, amar o impuro era a nossa mais profunda nostalgia. Através de mim, a difícil de se amar, ele recebera, com grande caridade por si mesmo, aquilo de que somos feitos.
(Os desastres de Sofia – In: A legião estrangeira)

Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda.
(...)
Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha maior não  se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
(Perdoando Deus – In: Felicidade clandestina)

Mas é que o erro das pessoas inteligentes é tão mais grave: elas têm os argumentos que provam.
(Mas é que o erro... - In: Para não esquecer)



14 comentários:

  1. Texto maravilhoso, porque nunca eu tenho palavras pra falar de Simone. Não há como escutar Simone Guimarães e não ficar perplexo!

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    1. Muito obrigado, Galvão, pela visita ao blog. Pois é, Simone Guimarães é fantástica! Abração.

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  2. Vou procurar conhecer, afinal confio em seu bom gosto...
    Mais um excelente texto Fábio (mas isso é chover no molhado).
    Apresentei textos seus a outros professores e agora você tem mais fãs.
    Um grande abraço, meu amigo!
    Luiz Fernando Gava Fernandes

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    1. Luiz Fernando, meu amigo, que ótimo vê-lo "passeando" pelo 'blog'! Obrigado pelos comentários. Abração.

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  3. Não sei para onde nos leva a voz da Simone e nem de onde ela vem. O que sei é que ela nos comove porque se mostra inteira.

    É isso. E se você ouvisse as dezenas de músicas que ela tem inéditas...

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    1. Obrigado, Lilia, pela visita ao 'blog'. Nossa! Fico imaginando a riqueza ainda inédita da produção da Simone. Abração.

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  4. Simone Guimarães canta com a voz do coração...flui como flui as coisas boas, o vento bom que chega e refresca...amo! Adorei seu blog e já me sinto em casa! Um abraço

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    1. Muitíssimo obrigado, Flávia, pela visita ao 'blog' e pelo comentário. Sinta-se em casa mesmo. Pois é, Simone Guimarães é excelente. Abração.

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  5. Bela resenha, Fábio. Ainda não ouvi o CD, exceto três faixas. Estou louco pra ouvi-lo, sobretudo pela gravação de Passarinhada, música marcante na vida da Simone e na minha também. Foi um "hino nacional" na época em que fui casado com a Carla Capalbo e a Si veio morar com a gente, na primeira vez que ela veio viver no Rio, em 89.

    Quanto às músicas inéditas, não me conformo de ela não ter feito ainda um CD com uma excepcional safra de músicas (e letras) dela, da qual faz parte "Passas por mim", que tem uma gravação demo no Youtube. Se você não conhece, dê uma conferida em: http://youtu.be/VxpY48-tfLw

    Grande abraço!

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    1. Obrigadíssimo, Tuca, pelos comentários e por "Passas por mim". "Passarinhada" é um deslumbre. Carla foi brilhante. Aliás, o CD todo está excelente. Não me canso de ouvi-lo. Pois é, as músicas inéditas estão em que baú? É preciso convencê-la a gravá-las e já! Valeu a visita ao 'blog'. Seja sempre bem-vindo. Abração.

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  6. Num misto de vergonha por não conhecer (ainda?!...vou tratar de encontrar) o trabalho da Simone Guimarães, e deleite pelo caudaloso e excelente texto, aproveito para parabenizá-lo, também, pelo nome "mineirésimo" do seu oportuno e diferencial e inteligente "blogue", meu prezado domador de palavras. Os que somos bons mineiros, reconhecemos especificidades, não é mesmo? Fiquei super comovido pelas referências à melhor escritora que conheço: Clarice Lispector e, depois, pela lembrança saudosa e aprazível que acometeu-me ao ler a citação da música deslumbrante "No tempo dos quintais", que conheci na voz excepcional/divina Elizeth Cardoso (madrinha musical da I.K). Obrigado pelo presente dos ótimos momentos proporcionados pelo seu post "trembãodimaisdaconta", ou mais modernamente:koraxiano.Abraço forte.
    Marino Monti.

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    1. Marino, meu querido, que alegria encontrar comentário seu aqui no ‘blog’. Que honra para mim, rapaz! Pois é, Simone Guimarães é excelente. No texto, cito vários de seus trabalhos. Você precisa conhecê-los. Você precisa conhecê-la. Ai... “No tempo dos quintais” é uma das músicas mais lindas que já ouvi. É de outro mundo, não é? Também conheço – e tenho – a gravação da “Divina” Eliseth, madrinha musical de nossa Ithamara. Linda a gravação. Clarice também é outra paixão antiga. Meus alunos que o digam. Pura epifania. E o que dizer de Minas, meu Deus?! Saudade ‘grandona’ de lá. Preciso voltar. Preciso rever as montanhas. Como diz Fernando Sabino em “O grande mentecapto”, “Ai, Viramundo de minha vida, que vira Minas pelo avesso sem revelar aos meus olhos o seu mais impenetrável mistério. Ai, Minas de minha alma, alma de meu orgulho, orgulho de minha loucura (...)”. Adorei o “trembãodimaisdaconta”! Este ‘blog’ é nosso, meu amigo. Volte sempre. Visite-o sempre. Ah, há mais textos sobre a Ithamara. Abração.

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  7. Estou atualizando minhas leituras por aqui... já disse e repito: gosto de passar por aqui com tempo, sem correrias... estou de férias em Minas Gerais... pertinho da bela Divinópolis... ler seus textos é espanto puro, senti nas suas palavras, no som e no tom o poder que uma música tem de nos trazer a ALEGRIA... sempre ela que cura a alma, o bom som tem esse poder... Forte abraço poeta! Obrigado!!
    Hércules Campos

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  8. Mais uma vez, obrigadíssimo, Hércules, pela visita ao "blog", o que me deixa muito feliz. É uma honra para mim tê-lo como leitor. Concordo com você, amigo: a música "cura a alma" mesmo. Ah, não deixe de ouvir a Simone Guimarães, outro talento extraordinário. Um beijo, querido.

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