domingo, 26 de janeiro de 2014

NOSSO "BUDA NAGÔ"





SAUDADE DA BAHIA
Dorival Caymmi
Ai, ai que saudade que eu tenho da Bahia
Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia
“Bem, não vá deixar a sua mãe aflita
A gente faz o que o coração dita
Mas esse mundo é feito de maldade e ilusão”
Ai, se eu escutasse hoje não sofria
Ai, esta saudade dentro do meu peito
Ai, se ter saudade é ter algum defeito
Eu, pelo menos, mereço o direito
De ter alguém com quem eu possa
me confessar

Ponha-se no meu lugar
E veja como sofre um homem infeliz
Que teve que desabafar
Dizendo a todo mundo
O que ninguém diz
Vejam que situação
E vejam como sofre um pobre coração
Pobre de quem acredita
Na glória e no dinheiro
Para ser feliz

Ref.: “Eu vou pra Maracangalha”, Dorival Caymmi, ODEON, 1957 (CD 530595 2 – Caixa “Caymmi e o mar”, ODEON)


 "(...) Nessas tortuosas trilhas / A viola me redime / Creia, ilustre cavalheiro / Contra fel, moléstica, crime / Use Dorival Caymmi (...)"
                                                               (Chico Buarque, "Paratodos")
 
"Dorival Caymmi falou pra Oxum: / Com Silas tô em boa companhia / O céu abraça a terra / Deságua o Rio na Bahia (...)"
 
(João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio, "Nação")

"Todas as coisas ruins que se apresentam de modo tão estridente ao nosso redor agora mesmo estão sob o jugo de sua calma, de sua teimosa paciência, de sua doçura, de sua luminosa inspiração. (...) As coisas ruins vão ter de se virar para enfrentá-lo."

(Caetano Veloso, "O Globo", 27-04-14)
            "Quando Dorival Caymmi saiu pro mar na última jangada, me pediram depoimentos. Entre outras coisas, eu disse que o Brasil havia perdido seu Pai e que sentia a partida como se fosse uma catástrofe ecológica. De um momento pro outro, ficamos sem mar, sem vento, sem verde, perdidos numa escuridão muito pior que a da Lagoa do Abaeté. (...)"
                                   (Aldir Blanc, "O Globo, 27-04-14)
         

           NOSSO “BUDA NAGÔ”
               Uma homenagem ao centenário de Dorival Caymmi

 Por Fábio Brito

Se eu tivesse de escolher a mais bela canção do Caymmi, nosso “Buda nagô”, como bem disse Gilberto Gil, escolheria “Saudade da Bahia”. O motivo é um só: é essencial que a humanidade entenda isto: “pobre de quem acredita / na glória e no dinheiro / para ser feliz”. Assim, fica resumido, para mim, o saber viver. Não há filósofo no mundo que dê conta de uma definição mais precisa do que essa do Caymmi.
Lembro que, em 1973, numa das escolas públicas em que estudei, as professoras nos organizavam em filas antes de entrarmos para as salas de aula. Assim, cantávamos algumas canções, entre as quais, lembro perfeitamente, estava a “Marcha dos pescadores (Suíte dos pescadores)/ História de Pescadores – Canção da partida”, do Caymmi: “Minha jangada vai sair pro mar / vou trabalhar / Meu bem-querer / Se Deus quiser / Quando eu voltar do mar / Um peixe bom eu vou trazer / Meus companheiros também vão voltar / E a Deus do céu vamos agradecer // A estrela-d’alva me acompanha / Iluminando o meu caminho / E eu sei que nunca estou sozinho / Pois tenho alguém que está pensando em mim”. Jamais esqueci tal canção. Eu não sabia quem era o compositor ou quem a cantava. Nem sei se as professoras disseram-nos. Talvez sim. O fato é que essa canção, cantada com vontade pela criançada, era praticamente de “domínio público”. Entre as que “entoávamos”, essa do Caymmi era a de que eu mais gostava. Minha cabecinha de criança que imaginava muito e que, além da música, já gostava bastante de literatura, viajava: todas as imagens, e mais algumas, que a letra evocava (e evoca) estão comigo até hoje. Enquanto eu cantava, imaginava os pescadores saindo para o mar e voltando carregadinhos de peixe. Imaginava, principalmente, que eles saíam à noite, sempre “acompanhados” não só da “estrela-d’alva”, mas de muitas outras estrelas.
  Um ano depois, mais um pouquinho de Caymmi chega à minha vida. Dessa vez, trazido por Clara Nunes, que regravara “O que é que a baiana tem?”, sucesso de Carmem Miranda, em seu disco daquele já distante 1974: “O que é que a baiana tem? / Que é que a baiana tem // Tem torço de seda, tem! / Tem brincos de ouro, tem! / Corrente de ouro, tem! / Tem pano-da-costa, tem! / Tem bata rendada, tem! / Pulseira de ouro, tem! / Tem saia engomada, tem! / Sandália enfeitada, tem! // Tem graça como ninguém... / Como ela requebra bem... // Quando você se requebrar, / Caia por cima de mim... // (...) Um rosário de ouro / Uma bolota assim / Quem não tem balangandãs / Ô não vai no Bonfim / Ô não vai no Bonfim...” Mais imagética impossível! A “baiana” está toda aí, da cabeça aos pés. Eu ouvia a canção desenhando a baiana em minha cabeça. Quer exercício melhor para uma criança?  
   Em 1976, Gal Costa, em estado de graça, gravou um disco somente com canções do Caymmi: "Gal canta Caymmi". "O brilho agudo, musical", como disse Bethânia em letra musicada por Caetano, da voz espetacular de Gal entregou-se belamente a uma obra rara e deixou para a posteridade um dos momentos mais sublimes da MPB. "Vatapá", "Festa de rua", "Dois de fevereiro", "Só louco" e "Pescaria (canoeiro)" estão entre as obras-primas desse disco.   
            Tempos depois, mais canções do Caymmi me arrebatariam, como "Saudade" (parceria com Fernando Lobo, pai do Edu), da qual conheci nterpretações memoráveis e comoventes: Orlando Silva, que a gravou em  1947, e Nana Caymmi, que a registrou em 1975 e 2007: “Tudo acontece na vida / Tudo acontece a todos nós / Sempre uma dor / E de um infeliz se ouve a voz, ai // Sinto saudades, tristezas / Bem dentro de mim / Coisas passadas, já mortas / Que tiveram fim / Tenho meus olhos parados, / Perdidos, distantes / Como se a vida me fora / O que era antes / Cartas, palavras, notícias / Não vêm sequer / E a certeza me diz / Que ela era o meu bem // O que dói profundamente / É saber que infelizmente / A vida é aquilo que a gente não quer”.

Nosso mestre cantando "Sargaço mar", que, como disse Antônio Carlos Miguel, "é uma canção em tons impressionistas, carregada de sua paixão por Debussy, Ravel e companhia", em disco gravado em Montreux (1991), é inebriante. Desde que ouvi essa canção, os graves profundos do velho "Algodão" não puderam mais ser esquecidos: "Quando se for esse fim de som / Doida canção / Que não fui eu que fiz / Verde luz, verde cor de arrebentação / Sargaço mar, sargaço ar / Deusa do amor, deusa do mar / Vou me atirar, beber o mar / Alucinado, desesperar / Querer morrer para viver / com Iemanjá (...)". Nana também a registrou em 2001 ("O mar e o tempo") e com o mesmo brilho. 
“Mãe Menininha do Gantois” é, como todos sabemos, a ialorixá mais famosa do Brasil. Mesmo depois de sua morte, ela continua sendo uma lembrança muito forte, emblemática. Em 1972, Caymmi nos trouxe uma homenagem a essa senhora iluminada: a “Oração de Mãe Menininha”. No ano seguinte, Gal e Bethânia, em dueto, registraram-na(“Phono 73 – o canto de um povo"). No mesmo ano, Clementina de Jesus, a rainha Quelé, também a gravou: é a canção que abre a segunda faixa - "Cinco cantos religiosos" - do lado B do LP "Marinheiro só". Simone gravou-a em 74 (“Festa Brasil”, disco dividido com João de Aquino), D. Yvonne Lara, no vol. 2 do "Songook Dorival Caymmi",  e, há poucos anos, o português Luis Represas gravou-a com a participação de Martinho da Vila (“Navegar é preciso”). D. Canô, mãe de Caetano e Bethânia, referindo-se a essa canção, disse que ela “é comovente”. E é uma oração mesmo. Uma comovente oração: “Ai, minha mãe / Minha mãe Menininha / Ai, minha mãe / Menininha do Gantois // A estrela mais linda, hein? / Tá no Gantois / E o sol mais brilhante, hein? / Tá no Gantois / A beleza do mundo, hein? / Tá no Gantois / E a mão da doçura, hein? / Tá no Gantois / O consolo da gente, ai / Tá no Gantois / E a Oxum mais bonita, hein? / Tá no Gantois // Olorum quem mandou / Essa filha de Oxum / Tomar conta da gente / De tudo cuidar / Olorum quem mandô-ê-ô / Ora, iê-iê-ô...”
Não dá para não tecer mais comentários sobre outras canções de nosso “Buda Nagô”. Impossível não me lembrar, por exemplo, de “Adeus”, gravada pelo próprio Caymmi em 1960, e pela filha, Nana, em dois álbuns só com canções do pai: “O mar e o tempo” e “Quem inventou o amor”, de 2002 e 2007, respectivamente. Que canção extraordinária! As três gravações trazem uma dor tão profunda, que é impossível não chorar: “Adeus, vivo sempre a dizer / Adeus / Adeus, pois não posso esquecer / Adeus / Inda me lembro de um lenço, de longe, / acenando pra mim / Talvez com indiferença, sem pena / de mim / Adeus / Quando olho pro mar / Adeus / Adeus, quando vejo o luar / Adeus / Tudo o que é belo na vida, recorda / um amor que eu perdi / Tudo recorda uma vida feliz que eu vivi / (...) E a saudade pra martirizar / No meu peito já veio morar / Só pra me ver chorar”. Também de "Quem inventou o amor" e "O mar e o tempo", colho outra que, para mim, está entre as mais belas composições do mestre: "Desde ontem". Nana, como sempre, canta com a alma. A gravação do segundo disco está mais doída ainda. Nos versos "eram horas de tormento e solidãããããoooo", é possível sentir a "solidão" de forma avassaladora com a voz espetacular da primogênita de Caymmi.  

Caymmi, para mim, é o “Rubem Braga da música”. Ele é "a" simplicidade. Em sua crônica “Um sonho de simplicidade”, o mais ilustre dos cachoeirenses nos diz da felicidade que há no mais simples: “Que restaurante ou boate me deu o prazer que tive na choupana daquele velho caboclo no Acre? A gente tinha ido pescar no rio, de noite. Puxamos a rede afundando os pés na lama, na noite escura, e isso era bom. Quando ficamos bem cansados, meio molhados, com frio, subimos a barranca, no meio do mato, e chagamos à choça de um velho seringueiro. Ele acendeu um fogo, esquentamos um pouco junto do fogo, depois me deitei numa grande rede branca – foi um carinho ao longo de todos os músculos cansados. E então ele me deu um pedaço de peixe moqueado e meia caneca de cachaça. Que prazer em comer aquele peixe, que calor bom em tomar aquela cachaça e ficar algum tempo a conversar, entre grilos e vozes distantes de animais noturnos.
As canções de Caymmi são esse “pedaço de peixe moqueado e essa meia caneca de cachaça” de que nos fala o velho Braga. Só o mais simples. A roupa, por exemplo: quanto menos “enfeitada”, mais chique, não é? Nada de “oncinhas”, “jaguatiricas” e brincos parecendo um “candelabro”. Caymmi é esse requinte que está, e que mora, na simplicidade. O que muitos pensam ser sofisticação não passa de pura breguice. Não passa do mais pesado mau gosto. Caymmi é aquele tubinho preto que, com um fiozinho de pérolas no pescoço, arrasa em qualquer festa. Mais nada. No entanto, atenção! Simples, aqui, não significa simplório, como eu já disse em texto sobre o Braga. Simples é o essencial, o fundamental, como o são, na literatura, Quintana, Adélia Prado e Bandeira, por exemplo. Até as tão comentadas harmonias sofisticadas de Caymmi (ele “lançou mão de um vocabulário harmônico mais amplo que o até então utilizado na música brasileira”, como afirma Luís Antônio Giron), que, anos mais tarde, estariam na Bossa Nova, também não deixam de integrar o que chamo de “pacote de simplicidades”. À primeira vista, ou “à primeira ouvida”, sofisticação e simplicidade podem parecer palavras que se opõem. Não é bem assim. Sofisticação, aqui, não significa algo inacessível ou incompreensível, mas belo, equilibrado e exato.
E por falar em exatidão, foi o próprio Caymmi que, em entrevista à antiga “Revista da Música Popular”, disse que sua meta era a “função exata da canção”, cuja inspiração foi a leitura, entre outros, de Drummond, Neruda e Bandeira, além da música de Mozart, Fauré, Bach e do folclore da Bahia. E é essa sensação do “exato”, do pontual, do irretocável que temos ouvindo esse mestre, esse "patriarca da música popular, um obá da Bahia", como afirmou Jorge Amado no encarte do disco de Caymmi de 72. Comparando-o com outros compositores, vê-se que ele não compôs muito, mas o que está aí é “joia raríssima”. Tudo inteiro e completo. Se, como dizem, ele levava muito tempo para concluir uma canção, é porque buscava, com certeza, a exatidão. Nada sobrou, nada foi pouco em se tratando de Dorival Caymmi. Ele foi, simplesmente, exato. Caymmi é um clássico. É atemporal.
  
NEM EU
Dorival Caymmi

Não fazes favor nenhum
Em gostar de alguém
Nem eu
Nem eu
Nem eu
Quem inventou o amor
Não fui eu
  Não fui eu  
Não fui eu
Não fui eu nem ninguém

O amor acontece na vida
Estavas desprevenida
E por acaso eu também
E como o acaso é importante, querida,
De nossas vidas a vida
Fez um brinquedo também


SÓ LOUCO
Dorival Caymmi

Só louco
Amou como eu amei
Só louco
Quis o bem que eu quis

Oh! insensato coração
Por que me fizeste sofrer?
Porque de amor para entender
É preciso amar

Porque


VOCÊ NÃO SABE AMAR
 Dorival Caymmi / Carlos Guinle / Hugo Lima 

Você não sabe amar, meu bem
Não sabe o que é o amor
Nunca viveu
Nunca sofreu
E quer saber mais que eu

O nosso amor parou aqui
E foi melhor assim
Você esperava
E eu também
Que esse fosse o seu fim

O nosso amor não teve, querida,
As coisas boas da vida
E foi melhor para você
E foi também melhor pra mim

Você não sabe amar, meu bem...


O BEM DO MAR
Dorival Caymmi 

O pescador tem dois amor
Um bem na terra
Um bem no mar

O bem de terra 
É aquela que fica na beira da praia
Quando a gente sai
(O bem de terra
É aquela que chora
Mas faz que não chora
 Quando a gente sai*)
O bem do mar 
É o mar
É o mar
Que carrega com a gente
Pra gente pescar

*Gal Costa, "Água viva", 1978

JOÃO VALENTÃO
Dorival Caymmi 

João Valentão
é brigão
Pra dar bofetão
não presta atenção
e nem pensa na vida
A todos João intimida
faz coisas que até Deus duvida,
mas tem seu momento na vida

É quando o sol vai quebrando
lá pro fim do mundo
 pra noite chegar
É quando se ouve mais forte
o ronco das ondas na beira do mar
É quando o cansaço da lida da vida
obriga João se sentar
É quando a morena se encolhe
se chega pro lado querendo agradar

Se a noite é de lua
a vontade é contar mentira
é se espreguiçar
Deitar na areia da praia
que acaba onde a vista não pode alcançar
E assim adormece esse homem
que nunca precisa dormir
pra sonhar
Porque não há sonho mais lindo
do que sua terra
não há

(Fonte: caixa "Caymmi e o mar", Odeon)

Caetano Veloso, em sua coluna de "O Globo" do dia 27-04-14, contou-nos uma história excelente, que reforça mais ainda a grandeza de Caymmi. Disse-nos que, certa vez, ele e outros artistas foram à casa de veraneio de "Seu Dorival", como diz o Renato Braz, para a gravação de um encontro com o mestre. Ao chegarem, Caymmi o levou a uma sala para mostrar-lhe algo importante que ele havia feito: "Olha o que eu fiz: botei o ventilador de frente para a poltrona. Eu me sento aqui e fico só pensando coisas boas". 

                                                         Foto: Fábio Brito



12 comentários:

  1. Precisamos percorrer os caminhos de Caymmi na BA. O que acha?

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    1. Acho a ideia maravilhosa, Fernando. Lembrei-me de "A Bahia te espera", que Dalva e Bethânia gravaram: "A Bahia da magia / dos feitiços e da fé / Bahia que tem tanta igreja / que tem tanto candomblé (...)". Bjs. e obrigado pela visita ao 'blog'.

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  2. Fábio, meu amigo das Letras: dos escritas e das cantadas. Como não ficar boquiaberta com seu texto, seu conhecimento e sua sensibilidade. Vou me repetir e comentar, mais uma vez, o quanto aprendo com você. Se não fosse por você, eu ficaria eternamente me perguntando: "Doncovimeproncovô"?
    Sincronicamente, enquanto digito meu comentário, o facebook me alerta que você postou "algo" em minha linha do tempo. Sabe 'Proncovô', agora?
    Meu beijo, querido!

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  3. Graça, minha amiga queridíssima, fico comovido com suas palavras, sabia? Muito, muito, muito obrigado! Sua passagem por este 'blog' é sempre uma felicidade imensa para mim. Pois é, só posso dizer que eu também aprendo muito com você. Muito mesmo! Um beijo imenso, minha amiga. Saudade infinda...

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  4. Você brilhou, irretocavelmente, mais uma vez e ..."comme d"habitude", com destaque para sua sacada de mestre:"Caymmi, para mim, é o “Rubem Braga da música”. Aplausos sinceros e cheios de admiração. Terei de fazer dois posts...desculpe.

    Nosso gênio compunha com tamanha poeticidade e realeza, que as canções pareciam nascidas por geração espontânea, de tão naturais soam aos ouvidos. Parecem acontecimentos vindos diretamente da natureza para nossa sensibilidade, presenteando -nos com manifestações involuntárias de brasilidade e baianidade.Hoje seriam comemorados 100 anos de Caymmi se vivo estivesse.Ele compunha música para ser "vista", além de ouvida, e sentida, com sua simplicidade caymmiana de grande e iluminada sofisticação .Como o Jorge Amado disse que Gabriela poderia ter outras faces mas somente a voz de Gal e você não se referiu ao extraordinário disco GAL CANTA CAYMMI, farei minhas, além das suas, as palavras benditas e bem ditas do Jeocaz Lee-Meddi, a seguir. Beijão procê, talentoso e querido.

    "(...) é tempo de revisitarmos a sua imensa obra, um acervo com mais de 100 canções. Nada mais agradável do que começar pelo álbum “Gal Canta Caymmi”, de 1976, um dos mais belos e definitivos registros da obra do grande compositor baiano. O universo de Dorival Caymmi traduzido no canto de Gal Costa revela-nos a pluralidade da Bahia, que presenteou o Brasil com tão soberba e talentosa dupla. Gal Costa e Dorival Caymmi, duas vezes Bahia, duas vezes emoção, mil vezes Brasil.
    Em 1975 a Rede Globo decidiu adaptar o romance “Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado, para uma das suas telenovelas. Começava uma grande corrida das atrizes para conseguir o papel de Gabriela. O todo poderoso da emissora carioca, Daniel Filho, tinha em mente um nome, Gal Costa. Mas a cantora, mesmo diante da insistência de Daniel Filho, declinou do convite, por não se achar uma atriz. Após intensa seleção, Sonia Braga, então atriz de papéis secundários na emissora, foi a escolhida para protagonista de “Gabriela”. Dorival Caymmi compôs o tema de abertura da novela, “Modinha Para Gabriela”. A canção foi dada a Gal Costa, que com uma interpretação sensual e mítica, fincaria de vez a sua voz na personagem de Jorge Amado.
    Apesar de conhecer a obra de Caymmi do avesso e cantar suas canções nos seus shows, até então, Gal Costa só tinha gravado do compositor a música “Oração de Mãe Menininha”, em 1973, e mesmo assim em dois registros de shows, lançados em 1973, nos álbuns “Phono 73 - O Canto de Um Povo”, dueto com Maria Bethânia, e “O Banquete dos Mendigos”, numa interpretação a solo.
    Com o grande sucesso da novela “Gabriela”, a Bahia ficou em grande evidência, tornando-se moda no país inteiro. Jorge Amado, Gal Costa e Dorival Caymmi tornaram-se os grandes protagonistas desse modismo. O resultado deste momento, foi um show histórico de Gal Costa e Dorival Caymmi, que percorreria apenas quatro cidades do país. O suficiente para que a química musical entre ambos contagiasse o Brasil. Estava lançada a semente para um encontro entre Gal Costa e Dorival Caymmi em um disco. Ainda no calor do sucesso de “Modinha Para Gabriela”, e do show que teve gosto de pouco, em dezembro de 1975, Gal Costa entrou em estúdio para gravar um disco só com canções de Dorival Caymmi.

    Em março de 1976 era lançado o mítico “Gal Canta Caymmi”, um dos mais belos registros musicais da essência baiana no cenário da MPB.Trazia na sua capa uma Gal Costa fotografada por Tereza Eugênia, com cabelos e bocas sensuais, a lembrar uma Gabriela de todos nós.

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    1. Marcos, meu querido, obrigado pelas palavras sempre generosas. Obrigado pelo belo texto de Jeocaz Lee-Meddi. Pois é, não citei "Gal canta Caymmi", que é um disco que adoro. Não foi por esquecimento. Lembrei-me dele, claro! Porque minha intenção era produzir um texto curto, preferi não comentar algo sobre essa obra maravilhosa, o que demandaria muito tempo. "Taí" uma excelente dica: escrever um outro texto focando a releitura de Gal, que é fantástica. Além desse disco da Gal, há outros também excelentes sobre a obra do mestre, como o "Mar de algodão", da Olívia Hime, por exemplo. Ah, na caixa que a Universal lançou em 2010 e que traz 15 álbuns mais um de raridades, os "tambores voltaram". Adoro Gal, meu amigo! Mais uma vez, obrigadíssimo! Abração.

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  5. "Gal Canta Caymmi” nasce do grito da Bahia milenar, folclórica, com sua eterna pulsação geradora de arte e de artistas. Começa com uma vinheta trazendo o toque dos tambores (infelizmente cortados da versão do LP para o CD). O show vai começar. O tempero baiano está no ar, apimentado e pincelado pela receita de “Vatapá”. É a simplicidade de Caymmi na voz de Gal Costa, que de pequenos momentos, como fazer um vatapá, gera uma poesia com cheiro do Brasil africano que há em todos nós. Se alguém procurava uma nega baiana que soubesse mexer esse vatapá, encontrou-o no tempero certo da voz dela.
    Depois de saborearmos o vatapá, o violão traz a voz de Gal , quase em capela, a introduzir “Festa de Rua”, que nos transporta para o sincretismo religioso da Bahia, retratado na tradicional procissão marítima pela Baía de Todos os Santos. A voz começa doce, lenta, explodindo em agudos, como uma festa de rua.
    “Nem Eu” mostra a maturidade no cantar , o controle da voz, que transforma um intimismo velado em uma apoteótica canção de amor. Nesta faixa a cantora cresce como intérprete, distanciando-se da época que cantava o amor para a geração do desbunde. Aqui ela canta o amor para toda a MPB, levando-nos a compará-la com uma Dalva de Oliveira ou Ângela Maria. Já não era a menina rebelde dos gritos da Tropicália, era senhora do seu canto e sabia onde poderia chegar.
    “Pescaria (Canoeiro)” mostra o mar da Bahia, os pescadores de “Mar Morto” de Jorge Amado, a gente simples que vive do peixe pescado no recôncavo baiano. Ela usa de seus agudos como nunca. O final é belíssimo, como o chamado de uma sereia. Os agudos da cantora contrastam com as ondas do mar baiano.

    Nesta canção Gal mostra porque é uma das maiores vozes do Brasil. Técnica e emoção fundem-se, perdendo-se em agudos embriagantes.

    “O Vento” chega manso, é chamado pela cantora e pelo violão. Soltam-se as velas, içam-se os arranjos, e viajamos atrás do curimã para a moqueca baiana, atrás da voz cada vez mais embriagante da cantora. "Rainha do mar" mostra o eterno casamento entre a poesia de Dorival Caymmi e o mar imenso, folclórico, repleto de lendas. O canto da sereia, temido e admirado por todos os pescadores:

    E se o temido canto que enfeitiçou os pescadores era de Iemanjá, aqui ele é de Gal , que vai, faixa a faixa, quase sem esforço, transformando o repertório de Dorival em uma extensão da sua obra.
    O clímax do álbum é atingido em “Só Louco”. Ela faz uma interpretação intimista, solitária, lírica e definitiva, repleta de armadilhas sedutoras que prendem os ouvintes
    “São Salvador” é a homenagem de Dorival Caymmi e Gal Costa à cidade que os viu nascer. Com simplicidade, é a canção dentro da MPB, que melhor retrata a geografia humana de Salvador nos versos “a terra do branco, mulato” e “a terra do preto doutor”. Na sua voz a canção torna-se doce, quase um sussurro.


    “Dois de Fevereiro” fecha o álbum com a grande homenagem à maior festa de Salvador e, conseqüentemente, da Bahia. É a homenagem à Bahia eclética, de várias cores e sons, traduzida na devoção a Iemanjá. A força baiana de Gal supera o piano bossa nova de João Donato e a canção encerra a homenagem da cantora ao mestre e pai de todos os cantores baianos.
    “Peguei um Ita no Norte”. É a história do próprio Dorival que quando jovem veio da Bahia em um navio a vapor pertencente à Companhia Nacional de Navegação Costeira, designados por Itas, devido aos nomes que tinham: Itapagé, Itanagé, Itapé... É a história comum de várias gerações de baianos, nordestinos, nortistas do Pará, que diante da miséria da sua região, eram obrigados a migrar para São Paulo e Rio em busca de melhores condições de vida. A canção canta a saudade da terra natal, não importa se de Salvador ou de Belém, de quem venceu nos grandes centros do sudeste, mas nunca esqueceu as origens. Caymmi jamais esqueceu a Bahia. Retratou-a por toda a sua obra.

    Gal Costa, ao gravar este álbum, voltava às origens, trazendo a sua essência baiana à flor do canto.


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    1. Excelente texto! Obrigadíssimo, Marcos, por compartilhá-lo.

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  6. Puxa! Seu texto emocionou e suscitou uma enorme vontade de ouvir todas as músicas que ainda não conheço. A "tese" sobre simplicidade na literatura e na música também foi perfeita: é tudo que eu penso e procuro partilhar. Meu amigo, obrigado por este presente de texto; Caymmi é um gênio da música brasileira e você um mestre em transmitir conhecimento, sentimento e cultura...
    Grande abraço,
    Luiz Fernando Gava Fernandes

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    1. Luiz, meu querido, que bom que o texto 'o' emocionou. Obrigadíssimo pela gentileza quanto aos comentários. Fico muito feliz com sua visita, com sua presença. Você é sempre muito carinhoso... e generoso. Valeu! Ah, você vai participar do sarau, não vai? Abração.

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  7. Claro, se houver um "lugarzinho" para mim, participarei com o maior prazer!
    Abraços!!!

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  8. Sempre há lugar para você, meu amigo. Abraços e obrigado.

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