quarta-feira, 1 de abril de 2015

HÁ FRALDAS, MAS SÃO GERIÁTRICAS


ONDE ESTÁ A HONESTIDADE?
Noel Rosa / Francisco Alves

Você tem palacete reluzente
Tem joias e criados à vontade
Sem ter nenhuma herança nem parente,
Só anda de automóvel na cidade...

E o povo já pergunta com maldade:
“Onde está a honestidade?
Onde está a honestidade?”

O seu dinheiro nasce de repente,
E embora não se saiba se é verdade,
Você acha nas ruas diariamente
Anéis, dinheiro e até felicidade...

Vassoura de salões da sociedade
Que varre o que encontrar em sua frente,
Promove festivais de caridade
Em nome de qualquer defunto ausente...

 HÁ FRALDAS, MAS SÃO GERIÁTRICAS
Por Fábio Brito
Opa! Disseram (?), dias atrás, que "certo tipo de corrupção", aqui no Brasil, é um bebê. Antes, porém, a presidenta Dilma Rousseff havia declarado que a corrupção, em nosso país, é uma “velha senhora”. A mim, não importa o tipo. O fato é que a corrupção é, sim, uma senhora bem velhinha. 
É sabido que muitos idosos atingidos por doenças como “Alzheimer” ou “aterosclerose”, por exemplo, voltam a ser bebês e, não raro, têm de usar fraldas novamente. Eu mesmo convivi com idosos nessa situação, o que é uma experiência aterradora e pela qual não quero passar novamente.
Talvez tenha origem exatamente aí o que declararam acerca da “pouca idade” de determinado tipo de corrupção, que deve, sim, ser um bebê, mas não um recém-nascido. Trata-se de uma senhora com mais de quinhentos anos, que, em decorrência de muitas doenças degenerativas, voltou às fraldas, aos tais fraldões geriátricos. Voltou a ser um “bebê idoso”. Se, independentemente do tipo, a corrupção, aqui no Brasil, for um bebê, alguém esqueceu que a história, como bem disse Pablo Milanés, “é um carro alegre que atropela indiferente todo aquele que a nega”¹. Não me refiro à história oficial, pintada com as cores mais alegres, mas à história real, que nos mostra, sem véus, as trapaças, as vilanias e as patifarias por que passamos desde que fomos “achados”.
Em minhas “viagens” como professor de literatura, tive – e tenho – de passar, necessariamente, pela história. Algumas vezes, deparei, por exemplo, com Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama, Bartolomeu Dias, a histórica viagem à Índia e o Descobrimento (ou “achamento”) do Brasil. A Vasco da Gama, por exemplo, atribuiu-se a tal “volta ao mar”, relatada por Eduardo Bueno em “A Viagem do Descobrimento: a verdadeira história da expedição de Cabral”?² Como negar essa tal “volta ao mar”, se um detalhe interessante, e muito pouco divulgado do tal “Descobrimento do Brasil”, mora aí? Diz-se que, seguindo indicações de Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, passando pelas ilhas do Cabo Verde, decidiu seguir para sudoeste, configurando-se, assim, a tal manobra, a “volta ao mar”. Gama teria dado instruções ao futuro “descobridor” do Brasil, o que confirma a tese dos que defendem a intencionalidade da descoberta desta “Terra de Santa Cruz”. A mim, por exemplo, foi passada, ainda nos tempos do ensino fundamental, a clássica história do acaso quanto à “descoberta” do Brasil. Contaram-me que ninguém sabia da existência destas terras, daí o espanto quando viram terra tão linda. No entanto, a história “não oficial” seguiu outro caminho. Tudo perfeito até aí, não é mesmo?
Pois bem, quando o colonizar português aqui chegou, os primeiros textos, que deram origem à formação da literatura brasileira, eram, sob forma de relatos descritivos ou de crônicas, bastante informativos. Eram relatos de bordo de navegantes, textos de divulgação geográfica e etnográfica, crônicas históricas, textos de informação religiosa. Tais textos relatam, com riqueza de detalhes, as belezas da terra que acabava de ser “descoberta” (ou “achada”). Assim, com tais textos, facilitavam a exploração colonialista ou a dominação religiosa, que também não deixava de ser decorrente de razões políticas. Trata-se de material bem descritivo cuja intenção era a “venda” do paraíso recém-descoberto (ou “recém-achado”). É o olhar de fora, do colonizador, sobre o paraíso de que ele, o dominador, acabava de ter a posse. É uma literatura “sobre” o Brasil, não “do” Brasil. Tudo perfeito até aí, não é mesmo?
No quesito “índios”, o que a história registra? Ou melhor, o que as histórias, a oficial e não oficial, registram? Sem “jogo do contente”: quando aqui chegou, o que fez o colonizador? Deu-lhes espelhos e outras quinquilharias e, em troca, tomou suas terras, como dizem. Necessidades práticas, utilitaristas, econômicas exigiam que o índio, visto como animal bárbaro e primitivo, fosse escravizado. Até mesmo os jesuítas, que os ‘defenderam’ da escravidão, não deixaram de ver seus hábitos e costumes como algo pernicioso. Vamos atualizar a questão? Como estão, hoje, os índios? Há índios?! Tudo perfeito até aí, não é mesmo?
Para muitos, parece que tudo só começou a ficar imperfeito de uns meses para cá. Antes, porém, desde que fomos descobertos (ou “achados), tudo correu muito bem, em perfeita harmonia, sem roubos ou quaisquer desvios... de dinheiro ou de caráter. Hoje, o que mais se ouve é gente bradando contra a corrupção na Petrobras e noutras instituições. E corrupção é sinal de que há, sim, imperfeições e aberrações. E deve-se bradar, vociferar. Deve-se protestar com todas as forças! Ótimos tempos estes em que se tem liberdade, em que se pode gritar e dizer que não é aceitável qualquer sacanagem ser encarada como algo comum. E tem de haver, sim, punição. Para tanto, juntem as provas e condenem. Se está havendo supuração, é ótimo! Depois, vem a cura. Enquanto há pus, a inflamação persiste. Espremam todo o pus. Força! Coragem! É libertador e catártico que casos e mais casos de corrupção venham à tona. O que não vale é dizer que tudo começou hoje, ontem ou anteontem. Pelos relatos dos parágrafos anteriores, a história é mais antiga. É bem mais antiga. Desde que me “entendo por gente”, tenho lido sobre casos e mais casos de corrupção não só aqui, nesta “terra papagalli”, mas no mundo todo. Às vezes, tenho a sensação - um pouco pessimista, admito - de que a corrupção está no DNA de muitas pessoas, o que é algo acachapante.  
            Em se tratando de “denúncia à corrupção”, o papel desempenhado pela imprensa é fundamental. No entanto, não me refiro a uma imprensa tacanha, marrom e apinhada de jornalistas despreparados, sem leitura, principalmente de história, e adeptos do “oba-oba” (todos deveriam trabalhar somente em revistas de fofocas). É altamente democrático que uma imprensa séria denuncie e traga à luz o que muitos insistem em esconder sob tapetes e mais tapetes persas. Se ainda lembro, o caso-escândalo Watergate, por exemplo, que acarretou a renúncia do presidente Nixon, nos EUA, deve boa parte de seu êxito à seriedade dos jornalistas do Washington Post, que não encheram balões, sopraram velinhas e cantaram parabéns, mas investigaram com seriedade. Sabiam que o assunto era grave e que, portanto, exigiria... seriedade nas investigações. Não deram ouvidos ao “diz-que-diz” (ou às mágoas de adversários políticos inconformados com alguma derrota).
            Aqui, as pessoas se indignam, sim, e é excelente que não aceitem tanta trapaça. Todavia, o problema é quando elas se indignam com denúncias desprovidas de quaisquer provas, como ocorre em alguns casos. Aí é que “mora o perigo”, como se dizia há um tempo. Em certas situações, a que “provas” o povo está tendo acesso? Não valem as que são ventiladas por “certos” jornais (de TV e impressos). Todos conhecem a “isenção” desses veículos. Manipulam à beça! Com a manipulação, grande parte da população “vai na onda”. Pronto! Estão instauradas a insanidade e a tirania, tanto que muitos têm pedido a volta da ditadura militar. Mais absurdo impossível. Também estou à espera de muitas provas e quero que a punição seja rigorosa. Algumas já apareceram. Ótimo!
            E você, caro colega, que está indignado, já viu sua ficha hoje? É facílimo sair por aí vociferando contra a corrupção na esfera política, uma vez que a imprensa a divulga a todo o instante, não é mesmo? Pois é, mas, antes de empunhar bandeira, peça para “puxarem sua ficha”. Será que ela está limpa? Limpa mesmo, sem quaisquer máculas? É muito cômodo bater no peito, sair por aí arrotando, em alguns casos, verbo sem conteúdo e dizer que é um absurdo a corrupção que grassa por aí. É sempre louvável fazer isso. É exercício de cidadania. Entretanto, a ficha de quem grita deve estar limpíssima. Quando a corrupção bater à sua porta, por favor, não a faça entrar e, ainda por cima, sirva-lhe cafezinho. Ponha essa infeliz senhora para correr. Se possível, com vassourada e tudo. Para completar, plante pimenteira no portão, bata na madeira com os dedos cruzados, ponha uma figa em seu cordão e espalhe vasos e mais vasos de arruda pela casa. Se ela, a “senhora corrupção”, insistir e pular o muro de seu quintal, por favor, não lhe dê abrigo. Não construa uma puxadinha em sua área de serviço para abrigá-la. Sabe por quê? Depois de um algum tempo de convivência, numa noite em que ambos não tiverem “nada” para fazer e depois de algumas doses de um bom vinho, um tórrido caso de amor poderá ter início e, quiçá, durar a vida inteira. Não vacile, companheiro. Sem remorso, sem dó ou piedade, expulse essa “senhora”! Não ceda a seus encantos.  
Também acho um absurdo esse número assustador de escândalos envolvendo o dinheiro público. É muita patifaria! Tenho asco, ojeriza a tudo isso que está aí. Não devemos considerar nada disso “normal”. Antes, porém, cabe a cada um verificar suas corrupções de todo dia. Porque são diárias, tornam-se, para muitos, imperceptíveis. Olhe para dentro de si, caro colega, e observe se você não tem sido corrupto diariamente. Já viu se não furou fila hoje? Já viu se não se esqueceu de devolver o troco que o caixa da padaria deu-lhe a mais? Já viu se, para fugir de uma punição, não tentou subornar alguém? Já viu se, no trânsito, não foi “enfiando” seu carro à frente de outros que tinham “a preferência” só porque dizem que, se a farinha for pouca, seu pirão deve ser o primeiro? Já viu se, ao conversar com seu chefe, você não titubeou no momento de defender um companheiro acusado injustamente só porque quem estava falando era o poderoso “chefe”? Já viu se não lavou calçada à noite e, assim, fugiu aos olhares que estão vigiando pessoas que, em tempos de escassez, não economizam água? Já viu se, quando constatou que seu carro estava prestes a “bater o motor”, você não tratou logo de jogar a bomba no colo de alguém? Já viu se, ao encontrar uma carteira com dinheiro e documentos, você não se esqueceu de devolver, além dos documentos, o dinheiro? Já viu se você não devolveu à loja o produto que ‘você mesmo’ estragou, mas fez questão de pôr a culpa na fábrica só para não arcar com o prejuízo?
E não me diga que só ‘se’ configuram como corrupção os atos que envolvem quantias vultosas ou os bem visíveis! Nada disso, companheiro! “As pessoas têm seus preços tabelados por seus atos”, como disse o compositor Paulinho Soares na letra do samba “Antes ele do que eu”, de 76. Ato desonesto é ato desonesto e pronto. Independe de valor. Roubou cem milhões? É ladrão. Roubou um real? É ladrão do mesmo jeito. Se você não enxergar isso, vai tentar escapar por meio da desculpa “do menor valor” ou do “ato menos visível”. Ou seja, para você, só será ladrão quem roubar muito e só será canalha e patife quem praticar um ato visivelmente desonesto.
Se você pratica suas pequenas corrupções do dia a dia, caro colega, seu preço é zero. Você também é um tipo zero e já está ‘pra’ lá da xepa! Nem o povo “que cata o que sobrou” o quererá mais. Você, assim como os políticos que desviam “lhões, lhões, lhões”, também não vale nada. Por que, em vez de sair por aí pregando sobre o que não sabe (nas redes sociais, principalmente) e com a ficha enlameada, você não faz o que propõe a escritora Elisa Lucinda em seu texto “Só de sacanagem”? “Então agora eu vou sacanear: mais honesta ainda vou ficar”. Tente! Claro que, em seu caso, não se trata de ficar “mais honesto”, mas, simplesmente, de ‘ficar honesto’. Só! Talvez você consiga, um dia, ser simplesmente honesto. Faça algo que você possa contar à sua mãe sem que ela tenha vergonha do filho que teve e tentou educar da melhor maneira. É, companheiro, ser repudiado pela pessoa que o pariu é sinal de que tudo está perdido. Não envergonhe sua mãe. Tente ser honesto. Não dói. Não é difícil... e faz um bem danado, principalmente à nação que o abriga.

¹ “Cancion por la unidad de Latino América” (Pablo Milanés – adapt.: Chico Buarque de Hollanda)
² BUENO, Eduardo. A Viagem do Descobrimento: a verdadeira história da expedição de Cabral. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

SÓ DE SACANAGEM
Elisa Lucinda

Meu coração está aos pulos!
Quantas vezes minha esperança será posta à prova?
Por quantas provas terá ela que passar?
Tudo isso que está aí no ar, malas, cuecas que voam
entupidas de dinheiro, do meu dinheiro, que reservo
duramente para educar os meninos mais pobres que eu,
para cuidar gratuitamente da saúde deles e dos seus
pais, esse dinheiro viaja na bagagem da impunidade e
eu não posso mais.
Quantas vezes, meu amigo, meu rapaz, minha confiança
vai ser posta à prova? Quantas vezes minha esperança
vai esperar no cais?
É certo que tempos difíceis existem para aperfeiçoar o
aprendiz, mas não é certo que a mentira dos maus
brasileiros venha quebrar no nosso nariz.
Meu coração está no escuro, a luz é simples, regada ao
conselho simples de meu pai, minha mãe, minha avó e
dos justos que os precederam: "Não roubarás", "Devolva
o lápis do coleguinha",
" Esse apontador não é seu, minha filhinha".
Ao invés disso, tanta coisa nojenta e torpe tenho tido
que escutar.
Até habeas corpus preventivo, coisa da qual nunca
tinha visto falar e sobre a qual minha pobre lógica
ainda insiste: esse é o tipo de benefício que só ao
culpado interessará.
Pois bem, se mexeram comigo, com a velha e fiel fé do
meu povo sofrido, então agora eu vou sacanear:
mais honesta ainda vou ficar.
Só de sacanagem!
Dirão: "Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todo
o mundo rouba" e eu vou dizer: Não importa, será esse
o meu carnaval, vou confiar mais e outra vez. Eu, meu
irmão, meu filho e meus amigos, vamos pagar limpo a
quem a gente deve e receber limpo do nosso freguês.
Com o tempo a gente consegue ser livre, ético e o
escambau.
Dirão: "É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde
o primeiro homem que veio de Portugal".
Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal.
Eu repito, ouviram? IMORTAL!
Sei que não dá para mudar o começo, mas, se a gente
quiser, vai dar para mudar o final!

http://letras.mus.br/elisa-lucinda/835673/


O “achamento”
A terra é tão fermosa
e de tanto arvoredo
tamanho e tão basto
que o homem não dá conta.

No clarão matutino
os tucanos rombudos
eram como figuras
a lápis encarnado
e que houvessem fugido
do caderno escolar
em que Deus aprendia
desenho, em menino.

Tupis em alvoroço,
tribos guerreiras, mansas,
troféus verdes na ponta
dos chuços e das lanças.
Jequitiranaboias.
Colar de osso ao pescoço,
vermelhas araçoias,
cocares multicores.
Cada qual com o seu sol
de plumas à cabeça.
Guerreiros da manhã
que haviam já descido
dos Andes à procura
da Noite, que estaria
para os lados do Atlântico.
Agora se debruçam,
reunidos, ombro a ombro,
sobre a Serra do Mar,
e espiam, com assombro,
o dia português
que saltara das ondas
qual pássaro marinho
ruflando a asa enorme
das velas redondas
por errar o caminho,
e os homens cor do dia
que saíram de dentro
do pássaro marinho!
E em nome de seu povo,
sem saber se quem chega
é fidalgo, ou plebeu;
anjo de cor bronzeada,
cabelo corredio,
nu, listado em xadrez,
tal como Deus o fez,
vem o dono da casa
e oferece o que é seu:
águas, cobras e flores!

Nisto a manhã louca
grita: “bem-te-vi”!
E o Marinheiro branco,
coração já confuso,
ouve, maravilhado,
no gorjeio de um pássaro,
o idioma que, com pouca
corrupção, crê que é luso.
Como explicar que uma ave
de país tão agreste,
diga que bem me viu,
se tu, ó Pai celeste,
não houvesses previsto
que a terra dadivosa
seria descoberta
por quem a descobriu?
Parece que dois povos
tinham marcado encontro
à sombra de tal Serra,
nessa manhã sem par.

Um, que vinha do Mar
seguindo a lei do Sol,
em busca de um tesouro
chamado Sol da Terra
(um novo Tosão de Ouro);

Outro vindo da Terra
para os lados do Atlântico
à procura da Noite
como se adivinhasse,
por estranha magia,
que havia o Mar da Noite.
Pois no fundo das águas
é que a Noite estaria.

RICARDO, Cassiano. Martim Cererê.


A CASA É SUA, PODE ENTRAR (G – 21º)
Então o morubixaba
que era o dono da taba
e que trazia, logo atrás
todo um exército aguerrido
e empenachado que desceu
dos araxás:
tapuios, caetés, poriguaras,
tupinambás, carijós, guaianazes,
formando uma vasta coluna
que vinha desde o mistério
verde-escuro da grande floresta
de onde haviam descido
até aos muros violentos da Serra
do Mar;

Então o morubixaba
fez um terrível nheengaçu
em nome do seu povo todo nu
e ofereceu-lhe a terra cheia de onças
e tudo o mais que havia: águas, cobras e flores!
- A casa é sua, pode entrar!

A madrugada tinha um cheiro de pitanga.
O currupira a rir com os dentes verdes
era um tapuio anão enfeitado de tanga
que andava atropelando os caminheiros
com o relho em flor de japecanga.

A floresta soltou um gripo de araponga
diante do mar!

RICARDO, Cassiano. Martim Cererê.


ÍNDIOS
Renato Russo

Quem me dera, ao menos uma vez,
Ter de volta todo o ouro que entreguei
A quem conseguiu me convencer
Que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Esquecer que acreditei que era por brincadeira
Que se cortava sempre um pano-de-chão
De linho nobre e pura seda.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Explicar o que ninguém consegue entender:
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Provar que quem tem mais do que precisa ter
Quase sempre se convence que não tem o bastante
E fala demais por não ter nada a dizer.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Que o mais simples fosse visto como o mais importante,
Mas nos deram espelhos
E vimos um mundo doente.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês -
É só maldade então, deixar um Deus tão triste.

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho.
Entenda - assim pude trazer você de volta para mim,
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim
E é só você que tem a cura para o meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Acreditar por um instante em tudo que existe
E acreditar que o mundo é perfeito
E que todas as pessoas são felizes.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Fazer com que o mundo saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz ao menos obrigado.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Como a mais bela tribo, dos mais belos índios,
Não ser atacado por ser inocente.

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho.
Entenda - assim pude trazer você de volta prá mim,
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim
E é só você que tem a cura para o meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui.

Fonte: CD “Dois”, Legião Urbana, EMI, 748147 2, 1986.



COMO ALGUÉM QUE ENCONTROU UM POVO EM RUÍNAS
Cecília Meireles


Como alguém que encontrou um povo em ruínas
e sua casa incendiada
e seu mundo vencido
e se recusou a morrer de dor
e levantou muros
e ressuscitou mortos
e abriu janelas
e acendeu luzes
e semeou campos
e pregou no céu novas estrelas
e trabalhou cheio de lágrimas
e amou o que tinha feito
e desejou cantar,
- assim me encarou o rosto de olhos líquidos
no alto da noite.
Como alguém que recebeu  a morte
daqueles que ressuscitou,
entre muros erguidos
e as janelas abertas,
e as luzes acesas
e os campos ondeantes
e as estrelas gloriosas,
e desejou sorrir
 - assim me encarou o rosto de olhos líquidos
no alto da noite.



2 comentários:

  1. Belíssimo texto, Fábio...
    Apesar de extenso à primeira vista, ficou sob medida. E independente de qualquer opinião partidária, não há como negar a legitimidade de suas palavras. Sou suspeito por ser fã de seus escritos, mas a argumentação está perfeita. Digo sempre isso às pessoas que me cercam: "não reclame dos políticos se você rouba internet do vizinho..." Um abraço, amigo...

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    1. Obrigado, Luiz, pela leitura, pela visita a este "blog". Pois é, eu havia esquecido a tal "internet do vizinho", que é mais um "ato banal", como dizem. Abração, meu amigo.

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