domingo, 24 de maio de 2015

VIRTUOSES






Fotos: Fábio Brito


VIRTUOSES
Por Fábio Brito
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, “virtuose”, em uma de suas acepções, significa o “artista que atingiu um altíssimo grau de conhecimento e domínio técnico na execução de sua arte”. Conceituou, mas não citou exemplos. Sugiro, pois, dois nomes ao referido dicionário: Ithamara Koorax e Marcel Powell. Não vejo, atualmente, outros artistas que possam “explicar” tão bem o que é “virtuose”. No entanto, é preciso acrescentar o seguinte ao verbete: esses dois artistas, além da incontestável e apuradíssima técnica, são "Intérpretes". Que tal a inicial maiúscula? Bem melhor, não? Nas mãos de Marcel, um violão não é apenas um violão; na voz de Ithamara, uma canção não é apenas uma canção.
Intérprete, para mim, é quem leva a alma a seu ofício; é quem se entrega; é quem “lava nossa alma” com sua arte; é quem enobrece a vida; é quem enche de poesia tudo o que faz. E por falar em poesia, não dá para esquecer uma das histórias de “Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova”, do Ruy Castro, em que ele narra o episódio envolvendo a passagem de João Gilberto por um sanatório na Bahia. No ambulatório, submetido a entrevistas com psicólogas, nosso João, em certo momento, disse, ao olhar por uma das janelas, que o vento descabelava as árvores. Uma das psicólogas, desatenta, disse que as árvores não têm cabelos. Erro fatal. Um tom acima, João foi destruidor: respondeu que “há pessoas que não têm poesia”.
Pois é, e o que não falta a Ithamara e Marcel, além de uma técnica rara, é “poesia”. Dia 18 de abril, no aconchegante “Vinicius Piano Bar”, na mítica Ipanema, pude assistir a esses dois artistas espetaculares num “show” memorável: “Tributo a Baden Powell & Vinicius de Moraes”. O “Poetinha”, como sabemos, é um dos criadores da Bossa Nova; Baden, “a lenda”, pai de Marcel, foi um dos grandes incentivadores, ao lado de Tom Jobim, Elizeth Cardoso e Luiz Bonfá, da carreira de Ithamara, a voz número um do Brasil. Nada melhor, então, do que esses dois virtuoses, Ithamara e Marcel, prestarem um tributo – e que tributo! – a esses dois gênios da Música Popular Brasileira.
A parceria Ithamara & Marcel teve início em 2012. De lá ‘pra’ cá, foram diversas apresentações que incluíram desde o chamado “circuito dos editais”, Caixa Cultural, Furnas e CCBB, até espaços mais sofisticados, como o “Godofredo”, em Botafogo, e o “Aqua Bossa Lounge”, também em Ipanema.
            No “Vinicius”, cercados por fotos de Baden e do “Poetinha”, os homenageados, de Tom, nosso “maestro soberano”, e de Billy Blanco, Ithamara e Marcel apresentaram um espetáculo memorável. Entre as canções cuidadosamente escolhidas, desponta o “afro-samba” “Canto de Ossanha”, que integra, vale lembrar, dois álbuns históricos - e indispensáveis - da MPB: “Os afro-sambas de Baden e Vinicius”, de 1966, com arranjos e regências do maestro Guerra Peixe Filho, e “Os afro-sambas – Baden Powell”, de 1990. Obrigatórios!
            Além de "Canto de Ossanha", outras canções foram magistralmente recriadas pela dupla de intérpretes, como “Deixa” (Baden Powell / Vinicius de Moraes), “Pra que chorar” (Baden Powell / Vinicius de Moraes), “Cai dentro” (Baden Powell / Paulo César Pinheiro), “Consolação” (Baden Powell / Vinicius de Moraes), "Refém da solidão" (Baden Powell e Paulo César Pinheiro), "Insensatez" (Tom Jobim / Vinicius de Moraes), "Só danço samba", (Tom Jobim / Vinicius de Moraes), "Só por amor" (Baden Powell / Vinicius de Moraes), "Apelo" (Baden Powell / Vinicius de Moraes), "Berimbau" (Baden Powell / Vinicius de Moraes), "Valsa de Eurídice" (Vinicius de Moraes) e “Última forma” (Baden Powell / Paulo César Pinheiro).  
          
           Com três temas espetaculares, Marcel abriu a noite: “Manhã de carnaval” (Luiz Bonfá / Antônio Maria), uma das mais belas canções brasileiras de todos os tempos, "Samba triste" (Baden Powell / Billy Blanco) e "Marcha escocesa" (Baden Powell). Impacto já de início. Com a genialidade herdada do pai, porque “quem sai aos seus não degenera”, o rapaz já disse a que veio logo de saída. 

           Quando Ithamara começou a cantar, foi fácil imaginar que o encontro seria entre dois gigantes, dois gênios. O ritmo e a musicalidade desses craques deixaram de queixo caído, para usar um lugar-comum, as pessoas que assistiam ao espetáculo. O coração palpitou forte. Bateu noutro ritmo.  Conseguimos uma proeza: ouvir Ithamara e todas as notas que Marcel tocava. Todas as canções da noite merecem, sem dúvida, comentários infindos. Tentei pinçar algumas.
            “Cai dentro”, por exemplo, foi uma encomenda da Elis, que, incansável em sua busca pela perfeição, queria um samba dificílimo. O mais difícil da dupla Baden / Pinheiro. O ritmo - ‘pra’ lá de quebrado - e as muitas notas que sobem e descem desafiam qualquer intérprete. Pois é, Ithamara e Marcel, também perfeitos como Elis, arrasaram. Levantaram-nos do chão! Foi estonteante assistir aos dois “músicos” chegando à perfeição. Que bate-bola!  
            “Última forma”, um dos melhores momentos da noite, é ultracortante. Foi gravada lindamente pela madrinha musical de Ithamara, Elizeth Cardoso, por Márcia, pelo MPB4 e recriada, no “Vinicius”, com pompa e circunstância, como deve ser. O violão de Marcel e a voz de Koorax, ambos geniais, percorreram todas as delicadezas dessa canção, outra encomenda da Elis, que queria uma música para que ela pudesse sair do que havia sobrado de sua união com Ronaldo Bôscoli, o primeiro marido. A “Pimentinha” não chegou a gravá-la, mas não porque não havia gostado. Era forte à beça! Destruidora até... Koorax e Powell comprovaram a força dessa canção.
             Assim como "Última forma", "Refém da solidão" também é uma canção extremamente bela. É "amor à primeira ouvida". É mais uma das gravações imortalizadas pela "Divina" Elizeth Cardoso. Quando a ouvi pela primeira vez, não me contive: ouvi-a seguidas vezes, tamanho foi meu encantamento. A interpretação de Koorax e Marcel, assim como a da "Enluarada", também 'nos' pôs meditativos e, antes de tudo, encantados. Foi um dos momentos mais delicados do "show". 
            
             Que noite espetacular! O que mais podemos dizer sobre esses dois artistas? Marcel, por exemplo, é daqueles violonistas que não conseguimos enxergar sem o violão. Impossível, porque ambos são um só. Ele afirma, inclusive, que, com o pai, aprendeu, de forma saudável, a ser “escravo do instrumento”. Comprova-se, assim, que, com estudo e dedicação, aprimora-se ainda mais o talento. Quando lançou seu primeiro disco, há dez anos, fez questão de afirmar que descender de uma linhagem nobre não é problema: "Sei que tenho muitas coisas do meu pai, apesar de manter a minha própria identidade. Mas isso é inevitável, somos as pessoas mais propícias a termos coisas dos nossos pais"¹. O rapaz tem uma assinatura inconfundível: “Uso muito escalas rápidas, de ataques rápidos”. Ele fala com  a segurança de quem sabe que pode fazer o que quiser e quando quiser. Talento é o que não lhe falta.  
            Ithamara, como cantora e como intérprete, está longe de qualquer comparação, simplesmente pelo fato de ser uma cantora inigualável. É “hors concours” mesmo! O que se vê por aí – e não só no Brasil - são cantoras inexpressivas, sem voz e sem sentimento. Há pouco tempo, saiu uma “fornada” assustadora dessas cantoras! Desnecessário elencar. São inclassificáveis. Algumas, inclusive, conseguem a proeza de cantar – quando conseguem emitir algum som – uma mesma nota em três, quatro, cinco tons diferentes. É necessário dizer que alguém precisa explicar a essas “cantantes” o que é afinação? E Ithamara, como todos os artistas que optam pela qualidade acima de tudo, paga o preço por não se dobrar a um mercado medíocre, que exige, como “atributo” principal, a falta de talento. Que inversão! É exatamente a falta de talento que vende, é o que gera lucros às gravadoras. Entretanto, Koorax não arreda o pé! E é como heroína da resistência que ela nos oferece sempre o que há de melhor na arte de cantar e interpretar. Oferece-nos o que há de melhor em música. É... vejo muitos modismos por aí, mas sou de um tempo em que música era bem mais importante que propostas e projetos estranhos.
            Ithamara e Marcel interpretam o que é, para nós e para eles, a verdade das canções. Por isso, são únicos. Por isso, sobrevivem a modismos. Por isso, são atemporais. Por isso, estão entre os mais talentosos “músicos” que temos.
² As canções “Última forma” e “Cai dentro” têm como referência a biografia “Elis Regina: nada será como antes”, de Julio Maria ( Masterbooks, 2015).

       BADEN, A LENDA

       Hermínio Bello de Carvalho

      Segundo a lenda, Baden foi gerado num útero esculpido em madeiras raras e filetado em madrepérolas. Suas mãos seguravam cravelhas de ouro que retesavam seis cordas, e elas eram os cordões umbilicais que o prendiam à concha ovalada, que nem um violão. E essa gravidez meio sagrada e meio profana parecia envolver seres mitológicos, encantatórios, crendices, parlendas do imaginário popular.
      Conta a lenda que, sob esse estrondo de cores e vozes e o rufar ensurdecedor dos tambores, Baden se desembaraçou das seis cordas e da placenta que o envolvia. E então virou uma grande nave, e lá se foi, planando sobre catolés, guarirobas, por florestas de paus-brasil e mognos e jequitibás, por enormes procissões de guarás e ararinhas-azuis e juritis cantadeiras. E agora ele avoa por sobre os terreiros santos onde pede a bênção à mãe Menininha e vai absorvendo cada toque dos tambores e dos berimbaus, vai se incorporando aos cortejos de bumbas-meu-boi, reisados, folias de reis, jongos, caxambus, dançando os sambas de roda no recôncavo baiano. E de tudo se impregnando.
      Conta a lenda que, extenuado, retorna ao seu ninho - e recolhe-se ao útero de madeira ornado com madrepérolas. Desatarracha suas cravelhas, ata-se com suas seis cordas umbilicais, unta-se do gel da placenta prateada - e vai dormir, se embalando com as melodias que saem do seu próprio bojo.
      Ele-Baden, pássaro encantado, em sua condição mais perfeita de filho de Tupã, deus de um Brasil que impregnou todos seus poros.


ÚLTIMA FORMA

É, como eu falei, não ia durar
Eu bem que avisei, vai desmoronar
Hoje ou amanhã, um vai se curvar
E graças a Deus não vai ser eu que vai mudar
Você perdeu
E sabendo com quem eu lidei
Não vou me prejudicar
Nem sofrer, nem chorar
Nem vou voltar atrás
Estou no meu lugar
Não há razão pra se ter paz
Com quem só quis rasgar o meu cartaz
Agora pra mim você não é nada mais

E qualquer um pode se enganar
Você foi comum, pois é, você foi vulgar
E o que é que eu fui fazer
Quando dispus te acompanhar
Porém pra mim você morreu
Você foi castigo que Deus me deu

Não saberei jamais
Se você mereceu perdão
Porque eu não sou capaz
De esquecer uma ingratidão
E você foi uma a mais

E qualquer um pode se enganar
Você foi comum, pois é, você foi vulgar
E o que é que eu fui fazer
Quando dispus te acompanhar
Porém pra mim você morreu
Você foi castigo que Deus me deu

E como sempre se faz
Aquele abraço, adeus
E até nunca mais


CAI DENTRO

Até que eu vou gostar
Se de repente combina da gente se cruzar
Ora veja só, pois é, pode apostar
Se você gosta de samba encosta e vê se dá

Vem, pode chegar
Que vai ter
De balancear
De bambolear
E aqui no mocó
Tem que dizer no gogó, pois é, vem
Tem que dar nó, vem
Rebolar, remexer, requebrar, vem
Bota a baiana pra rodar
De cima em baixo eu quero ver
Não sossego o facho até acabar
Diz que isso é com você
Quaquará-quará-quaquá
Tem nego querendo lhe gozar
E logo pra cima de 'moi'

E é por isso que não tem colher de chá
(Não dou)
Nem vem na cola que se entrar de sola vai dançar
Que é pra nunca mais você querer falar
Que dá na bola porque na bola você não dá


REFÉM DA SOLIDÃO

Quem
Da solidão fez seu bem
Vai acabar seu refém
E a vida para também
Não vai nem vem
Vira uma certa paz
Que não faz nem desfaz
Tornando as coisas banais
E o ser humano incapaz
De prosseguir
Sem ter pra onde ir
E infelizmente eu nada fiz
Não fui feliz nem infeliz
Eu fui somente um aprendiz
Daquilo que eu não quis
Aprendiz de morrrer
Mas pra aprender a morrer
Foi necessário viver
E eu vivi
Mas nunca descobri
Se essa vida existe
Ou se essa gente é que insiste
Em dizer que é triste ou que é feliz
Vendo a vida passar
E essa vida é uma atriz
Que corta o bem na raiz
E faz do mal cicatriz
Vai ver até
Que essa vida é morte
E a morte é
A vida que se quer


PRA QUE CHORAR

Pra que chorar
Se o sol já vai raiar
Se o dia vai amanhecer
Pra que sofrer
Se a lua vai nascer
É só o sol se pôr
Pra que chorar
Se existe amor
A questão é só de dar
A questão é só de dor

Quem não chorou
Quem não se lastimou
Não pode nunca mais dizer
Pra que chorar
Pra que sofrer
Se há smpre umnovo amor
Em cada ovo amanhecer


DEIXA

Deixa
Fale quem quiser falar, meu bem
Deixa
Deixa o coração falar também
Porque ele tem razão demais
Quando se queixa
Então a gente
Deixa, deixa, deixa, deixa

Ninguém vive mais do que uma vez
Deixa
Diz que sim pra não dizer talvez
Deixa
A paixão também existe
Deixa
Não me deixes ficar mudo


CONSOLAÇAO

Se não tivesse o amor
Se não tivesse essa dor
E se não tivesse o sofrer
E se não tivesse o chorar
Melhor era tudo se acabar
Melhor era tudo se acabar

Eu amei, amei demais
O que sofri por causa do amor
Ninguém sofreu
Eu chorei, perdi a paz
Mas o que eu se
É que ninguém nunca teve mais
Mais do que eu


CARTA DE POETA

Trago o coração aberto em flor
E em meu olhar um raro replendor
A felicidade carinhosamente
Transformou-s em passarinho
Fazendo ninho no me coração
Carregadinho de paixão
Tão delicado como um beija-flor
E diante disso é bom lembrar
É preciso proclamar ao mundo inteiro
Como é lindo o amor!

É saber o valor
Da missão de um cantor
da razão de uma dor boa de doer
Que faz a gente simplesmete
enlouquecer
E ter vontade de morrer
Pra renascer no olhar de uma mulher
Que é o principal fator
Pra ser natural o amor
Pra ser igual ao de Nosso Senhor!

Seja lá como for
Se perder é sair vencedor
O amor é um não-sei-quê
Que faz a gente humildemente
compreender
E de repente perdoar
Pra novamente a briga começar
Digo isso tudo de alma aberta
Tirei carta de poeta
Pra falar bonito assim do amor!

4 comentários:

  1. Com este post "kooraxiano", mais uma vez você brilhou. Não imagino quem pudesse dar conta ou "por reparo" melhor neste "show" do que você.Se eles "fizeram bonito" no palco, você faz o mesmo aqui.Ainda estou chapado ou siderado com o fabuloso espetáculo dos virtuoses: a "DIVA NUMBER ONE" Ithamara com o Marcel Powell (filho do gênio Baden... genio é, questão de DNA rs) . Na verdade, deveria ser "Ithamáxima e M;Power" rs. Uma simbiose perfeita e emocionante, entre dois artistas extraordinários. A "gogó de ouro" e "os dedos de ouro".O seleto público delirou com as belíssimas músicas cantadas magistralmente, "comme d'habitude", em português, na imbatível voz da maior cantora de todos os tempos . Ninguém canta mais ou melhor do que ela, de fato. Este show precisa viajar o Brasil inteiro. Impossível um ser humano com sensibilidade não se maravilhar e , até , cantar junto. É quase uma comoção em altíssimo astral.Estou, ainda, em êxtase com este "kooraxiano" e "ithamaravilhoso" acontecimento em local emblemático...o delicioso Vinícius Piano Bar. O resumo da ópera, queridaço presidente do MIK , é que com este show estratosférico quase tive um troço rs com tantas qualidades explícitas em grande potência e harmonia..Adorei, também, a sua insubstituível companhia.Noite de truz, machadianamente falando rs

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Querido Marino, mais uma vez, "bebo" suas palavras, meu amigo. Vou lendo... e viajando. "Gogó de ouro" e "dedos de ouro": bingo! Adorei "Ithamáxima e M. Power"! Concordo com você: esse "show" tem de ir a todos os cantos deste país. É uma pena que muita gente não consiga assistir a algo tão extraordinário. É uma pena ver o que "oferecem" às pessoas... Por meio do texto "Virtuoses", tentei "dizer" o que foi o "show". Impossível traduzir tanta beleza. Obrigado, meu amigo, pela visita e pelas palavras maravilhosas. Um beijo imenso.

      Excluir
  2. Infelizmente, não pude ir. Mas, da forma que vc escreveu... Com tantas riquezas de detalhes poéticos é como se eu tivesse in loco e ouvindo a cada canção citada no texto. Amo ler seus textos. Amo ouvir Ithamara. Amo mais ainda estar com os dois nas apresentações de nossa voz de cristal! Saudades dos dois!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pois é, Fernando, pena você não ter ido. O "show" foi extraordinário. Haverá outros. Beijos.

      Excluir