terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

ONDE TUDO COMEÇOU...



LÍGIA
Antonio Carlos Jobim 

Eu nunca sonhei com você 
Nunca fui ao cinema
Não gosto de samba
Não vou a Ipanema
Não gosto de chuva
Nem gosto de sol 
E quando eu lhe telefonei 
Desliguei, foi engano
O seu nome eu não sei 
Esqueci no piano 
As bobagens de amor
Que eu iria dizer
Não, Lígia, Lígia
Eu nunca quis tê-la ao meu lado
Num fim de semana
Um chope gelado em Copacabana
Andar pela praia até o Leblon 
E quando eu me apaixonei
Não passou de ilusão
O seu nome rasguei
Fiz um samba-canção 
Das mentiras de amor
Que aprendi com você
É, Lígia, Lígia
E quando você me envolver
Nos seus braços serenos
Eu vou me render
Mas seus olhos morenos
Me metem mais medo
Que um raio de sol
Lígia, Lígia






Fotos: Fábio Brito 



ONDE TUDO COMEÇOU...
Por Fábio Brito


Eis que, fechando janeiro, chego ao Beco das Garrafas, uma espécie de cantinho da rua Duvivier, em Copacabana, Rio, para o encerramento da temporada do João Palma Trio, que teve como convidada Ithamara Koorax, ‘no’ Bottle's Bar, uma pequena boate que, na década de 60, embalou a recém-nascida Bossa Nova e o samba-jazz. Havia outros “espaços” no Beco, como o Little Clube, que ainda está lá, o “inferninho” Ma Griffe e a casa Bacará.
Pelos templos desse lendário Beco, passaram músicos/cantores imprescindíveis não só ao nascimento, mas à perpetuação de uma música de altíssima qualidade - reconhecida não só no Brasil, mas fora daqui também – para a qual se exigia um talento e uma inteligência muito acima da média. Baden Powell, Elis Regina, Tom Jobim, Sérgio Mendes, Dom Um Romão, Airto Moreira, Flora Purim, Raul de Souza, Luiz Carlos Vinhas, Jorge Ben, Leny Andrade e o próprio João Palma, entre outros, brilharam nas boates do Beco. Aliás, foi aí que Palma começou, junto com Johnny Alf (piano) e Tião Neto (baixo). Agora, é a vez de Ithamara Koorax, uma das melhores cantoras/intérpretes do Brasil de todos os tempos, adentrar esse espaço sagrado e mostrar seu talento raro.
            Antes dos números com Ithamara, o trio - Alfredo Cardim (piano), Geferson Horta (baixo) e João Palma (bateria) - apresentou três números e mostrou, já de saída, que a noite prometia. O diminuto espaço do palco parece ter contribuído para que a harmonia entre os músicos fosse ainda maior. Entrosamento total se deu também com a plateia, que, comportadíssima, era só suspiros. Capitaneados por Palma - que, sem estrelismos ou firulas desnecessárias, mostra, aos 74 anos, um vigor inesgotável – os músicos demonstraram não só segurança, mas amor ao ofício, o que pode não ser tudo, mas é muito num tempo em que o dinheiro grita a plenos pulmões que música é um produto como outro qualquer. Assim, ela pode, para muitos, prescindir do acabamento e, portanto, do respeito ao público que a “consome”. Palma - o único baterista vivo da Bossa Nova, como afirmou Ithamara - e seus músicos provaram que a boa música deve ter, como os belos bordados, um arremate impecável. Podemos virá-la do avesso – como fazemos com os bordados – à cata de um ponto errado, que não o encontraremos. Das mãos de boas bordadeiras, saem obras de arte.
               E por falar em bordadeira, posso afirmar, recorrendo a uma expressão que está na letra do samba da Mangueira deste ano, que Ithamara, dona do palco logo depois dos números instrumentais do trio, é uma exímia bordadeira de canções. Logo de saída, para presentear a plateia, ela interpretou a canção Lígia, do mestre Tom Jobim. A interpretação lânguida, como a do CD Love dance, foi um convite a uma noite de requinte e sofisticação, como ‘o’ são todas as apresentações que têm Koorax como estrela. Clássicos entre os clássicos, Garota de Ipanema e Eu sei que vou te amar, ambas da dupla Tom/Vinicius, dois dos papas da Bossa Nova, ganharam interpretações ímpares: a primeira, em português/inglês; a segunda, em português/francês. Não é qualquer intérprete que pode oferecer um cardápio tão refinado a seu público, assim como não é qualquer plateia que pode saborear tal iguaria. Ithamara e o trio provaram que, em matéria de requinte, eles são maîtres que não encontram concorrência à altura no mercado.
                 Insensatez (Tom e Vinicius), Minha saudade (João Donato e João Gilberto) e Desafinado (Tom Jobim e Newton Mendonça) foram canções que ajudaram a abrilhantar a noite e estão entre os “cavalos de batalha” de nossa diva. Não raro, elas integram o repertório de seus shows e impressionam deveras. Agora, não foi diferente: ganharam interpretações comoventes. É impossível
, por exemplo, ouvir Insensatez sem repetir bem baixinho: “ah, por que você foi fraco assim, assim tão desalmado”?Ela é carioca (Tom Jobim e Vinicius de Moraes) também foi outro grande momento da noite: a leveza da interpretação atesta a segurança da intérprete, que faz o que bem entende com sua voz portentosa. Mais e mais canções desfilaram pela noite... Quando, ao fim do terceiro bloco, ouvi os primeiros acordes da Ária na corda sol da suíte nº 3, de um senhor chamado Johann Sebastian Bach, fechei os olhos. "Ouvi-senti" a canção, do início ao fim, de olhos fechados e coração acelerado, em descompasso.
   Aquarela do Brasil (Ary Barroso) é, indiscutivelmente, um dos maiores clássicos de nosso cancioneiro. Já recebeu interpretações antológicas, como as de Francisco Alves - com Radamés Gnattali e sua orquestra (1939), Elis Regina (1969) Gal Costa (1980 e 1997) e Tim Maia (1994). Outra interpretação que entra para a lista das mais belas é a de Ithamara (2000). Com genialidade, nossa diva criou “a sua” Aquarela do Brasil, tão bela e genial quanto as gravações anteriores, e apresentou-a no Beco de maneira irretocável.  
                    Na sequência, chega o momento para um suspiro profundo: Só louco, do eterno Dorival Caymmi, nosso Buda nagô, como disse Gilberto Gil. Na voz de Gal, essa canção foi o tema de abertura da novela O casarão, de Lauro César Muniz, exibida pela Globo em 1976. Em tempos distantes do YouTube, eu não perdia uma abertura da novela. Que música maravilhosa!, eu exclamava. Um pouco antes do show, a própria Ithamara me disse que eu ia adorar uma surpresa que ela havia preparado para a noite. Não deu outra! A surpresa era a canção do Caymmi. Fazendo questão de manter sua genialidade nas interpretações, Ithamara recriou mais um clássico. Com andamento mais lento e interpretação dilacerante, ela ainda foi capaz de acrescentar originalidade a uma canção já tantas vezes gravada. Todo o Bottle's ficou em respeitoso silêncio ouvindo Koorax percorrer regiões ainda não exploradas da bela canção do mestre Caymmi.
        E a noite memorável no Beco também contou com “canjas”. Uma ‘delas’ foi oferecida por Antenor Bogéa, que presenteou o público com duas joias do Chic(o) Buarque: Joana Francesa, cuja letra é em francês e português, e Futuros amantes (La ville engloutie), que o próprio Bogéa verteu para o francês e está na trilha da novela Em família. Outro ilustre convidado foi o violonista César Ferreira, sobrinho de Durval Ferreira, compositor, entre outras, de Tristeza de nós dois, em parceria com Bebeto Castilho (do Tamba Trio) e Maurício Einhorn. Porque “quem sai aos seus não degenera”, César provou que o talento está no sangue, como dizem. Outro convidado foi o excelente cantor Marcos Hasselmann, que causou frisson com sua interpretação arrebatadora de Georgia on my mind, sucesso na voz de Ray Charles. 
                  Ao fim do show e da temporada, fica a certeza de que a boa música é atemporal. Saí do Beco das Garrafas com a certeza de que minha vida mudou bastante. Sempre que assisto a um show da Ithamara, minha vida se transforma.  


ELA É CARIOCA
Tom Jobim / Vinicius de Moraes

Ela é carioca, ela é carioca
Basta o jeitinho dela andar
Nem ninguém tem carinho assim para dar
Eu vejo na luz dos seus olhos
As noites do Rio ao luar
Vejo a mesma luz, vejo o mesmo céu
Vejo o mesmo mar

Ela é o meu amor, só me vê a mim
A mim que vivi para encontrar
Na luz do seu olhar 
A paz que sonhei
Só sei que sou louco por ela
E pra mim ela é linda demais
E além do mais 
Ela é carioca, ela é carioca


DESAFINADO
Tom Jobim / Newton Mendonça

Se você disser que eu desafino, amor
Saiba que isso em mim provoca imensa dor
Só privilegiados têm ouvido igual ao seu
Eu possuo apenas o que Deus me deu
Se você insiste em classificar
eu comportamento de antimusical
Eu mesmo mentindo devo argumentar
Que isto é bossa nova
Que isto é muito natural
O que você não sabe nem sequer pressente
É que os desafinados também têm um coração
Fotografei você na minha Rolley Flex
Revelou-se a sua enorme ingratidão
Só não poderá falar assim do meu amor
Este é o maior que você pode encontrar
Você com sua música esqueceu o principal
Que no peito dos desafinados
No fundo do peito bate calado
Que no peito dos desafinados também bate um 
Coração


GAROTA DE IPANEMA
Tom Jobim / Vinicius de Moraes

Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela menina
Que vem e que passa
Num  doce balanço, 
A caminho do mar 

Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar

Ah, por que estou tão sozinho? 
Ah, por que tudo é tão triste? 
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha

Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo inteirinho se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor


EU SEI QUE VOU TE AMAR
Tom Jobim / Vinicius de Moraes

Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida, eu vou te amar
Em cada despedida, eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que vou te amar

E cada verso meu será 
Pra te dizer
Que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida

Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua, eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que essa tua ausência me causou

Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
À espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida


AQUARELA DO BRASIL
Ary Barroso

Brasil,
Meu Brasil brasileiro,
Meu mulato inzoneiro,
Vou cantar-te nos meus versos:
O Brasil, samba que dá
Bamboleio que faz gingá... 
O Brasil do meu amô,
Terra de Nosso Sinhô... ¹
Brasil,
Brasil!
Pra mim, pra mim!

Ó abre a cortina do passado,
Tira a mãe preta do serrado,
Bota o Rei Congo no congado...
Brasil, 
Brasil!
Deixa cantar de novo o trovador
À merencória luz da lua
Toda a canção do meu amor...
Quero ver a sá dona caminhando ²
Pelos salões, arrastando
O seu vestido rendado...
Brasil,
Brasil!
Pra mim, pra mim!

Brasil,
Terra boa e gostosa,
Da morena sestrosa,
De olhar indiscreto
O Brasil, verde que dá (samba que dá)
Para o mundo se admirá... 
O Brasil do meu amô
Terra de Nosso Sinhô... (Nosso Senhor)
Brasil,
Brasil!
Pra mim, pra mim!

Oh! Esse coqueiro que dá coco,
Oi, onde amarro a minha rede
Nas noites claras de luar...
Brasil,
Brasil!
Ô, oi essas fontes murmurantes
Oi, onde eu mato a minha sede
E onde a lua vem brincá...
Oi, esse Brasil lindo e trigueiro
É o meu Brasil brasileiro,
Terra de samba e pandeiro...
Brasil, 
Brasil!
Pra mim, pra mim!

¹ Muitos intérpretes registraram "Nosso Senhor";
² "Essa dona" é a expressão gravada por vários intérpretes. 

"Cantar / é mover o dom / do fundo de uma paixão / seduzir /as pedras, catedrais, coração (...)"
Djavan

10 comentários:

  1. Apresentação ímpar!!!
    Show emocionante!!!
    Só estando lá para sentir a emoção e o repertório selecionadíssimo!!!!

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    1. É, Fernando, só estando lá...
      Impossível descrever o que é um "show" da Ithamara. Beijos e obrigado.

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  2. Só de imaginar que grandes nomes já passaram pelo Beco da Garrafas... Dá uma sensação de compartilhar/vivenciar uma parte da história muito propícia a música brasileira... É indescritível as várias emoções que passam por nós!!!!

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    1. O lendário "Beco das Garrafas"...
      Músicos extraordinários passaram por lá e ajudaram a construir a história da MPB. Obrigado pela visita a este "blog", Fernando. Beijos.

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  3. É uma satisfação imensa ler seus textos irretocáveis e/ou preciosos. Sou seu grande admirador.Neste caso, transportou-me, de novo (oba!) , pela terceira vez, para o Beco das Garrafas, porque tive o enorme privilégio de ter assistido, por duas vezes, a este "show" de virtuosismos singularíssimos , cheio de emoção e encantamento. Extasiado e na primeira mesa rs , saboreei este manjar sonoro...dos deuses!!! Concordo com absolutamente tudo que você, brilhantemente, "et comme d'habitude" , digitou . Destaco, dentre inúmeros diamantes verdadeiros: "Não é qualquer intérprete que pode oferecer um cardápio tão refinado a seu público, assim como não é qualquer plateia que pode saborear tal iguaria". Realmente é um espetáculo imperdível para quem aprecia músicas da melhor qualidade , além de obrigatório ... pois são interpretadas divinamente pela cantora "number one", a fe-no-me-nal e classuda "Ithamaravilhosa". Foi um achado adorável seu: "a bordadeira das canções". Diria até que ela é a grande estilista da "haute couture musical"...uma espécie de "Chanel" rs. Enquanto a francesa era o dedal de ouro, a nossa "divabsoluta la Koorax", é o "gogó de ouro" e traduz, de maneira precisa e preciosa, o que o genial compositor Caê definiu : "Cantar é mais do que lembrar
    É mais do que ter tido aquilo então
    Mais do que viver do que sonhar
    É ter o coração daquilo". Sim, o que ela (en) canta, com inteligência , perfeccionismo e emoção, possui o coração daquilo cantado... e se conecta amorosa e prazerosamente com as almas de maior sensibilidade, deixando-as embevecidas. Como sou banal que nem pardal rs...fico mesmo é embasbacado com tantos "ithamaravilhamentos" oferecidos "kooraxianamente".

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    1. Querido Marcos, meu chique amigo Marcos, mais uma vez, muito, muito obrigado pelo comentário maravilhoso. Que honra para mim! Você disse tudo: Ithamara (ou "Ithamaravilhosa") é a "grande estilista da alta costura musical"... não só aqui no Brasil. Para nossa diva, não há fronteiras. Um beijo imenso.

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  4. Amigo chiquérrimo e brilhante. Gratíssimo pelas consideração e imensa gentileza habituais. Não acredito em coincidências, porém, a Mangueira ganhou o carnaval homenageando "Betha, Betha, Bethânia" com um samba belíssimo. Um dos poéticos versos diz:
    "Sou abelha rainha, fera ferida, bordadeira da canção". Ao homenagear a "number one" neste excepcional texto, você diz: "Itha é uma exímia bordadeira de canções". Vamos combinar que o "exímia" sedimenta, potencializa e sacramenta a diva em questão como a maior e melhor de todos os tempos, né? Ato contínuo, ela é, definitivamente, excelsa e inultrapassável, um verdadeiro fenômeno, na minha modesta e sincera conceituação. Abraçaços e beijaços.

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    1. Marcos, meu querido, engraçado que, quando escrevi o texto sobre o "show" da Ithamara, eu não havia lido a letra do samba da Mangueira. Também não vi o desfile, mas apenas alguns momentos, quando a TV os mostrou no dia seguinte. Aliás, não parei para ler as letras dos sambas deste ano. Que mistério!Acho melhor eu fazer uma referência ao samba. Sobre a Ithamara, ela é tudo, não é? Que intérprete! Que cantora! Que pessoa! Que "bordadeira de canções"! Um beijo, meu amigo. Mais uma vez, muito obrigado pela visita a este "blog", pelo comentário, pelo carinho, pelo respeito.

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  5. Legal, Fabio, gostei do texto, fiel e informativo. Bacana, você sai do tema e busca relações conexas, outras gravações, acontecimentos, etc. Obrigado! A música agradece!

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    1. Obrigado, Bernardo, pela visita a este "blog", pelo comentário. Um abração.

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