domingo, 17 de julho de 2011

BETHÂNIA, PESSOA, BERNADETTE LYRA e NEWTON BRAGA

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Lembro-me de quando era criança e via,
como hoje não posso ver,
a manhã raiar sobre a cidade.
Ela não raiava para mim,
mas para a vida.
Porque então eu, não sendo consciente, eu era a vida.
E via a manhã e tinha alegria.
Hoje eu vejo a manhã, tenho alegria
e fico triste.
Eu vejo como via,
mas por trás dos olhos, vejo-me vendo.
E só com isso, se obscurece o sol,
o verde das árvores é velho,
e as flores murcham antes de aparecidas.

Do livro do “Desassossego”, de Fernando Pessoa

Ó sino da minha aldeia
Dolente na tarde calma
Cada tua badalada
Soa dentro de minh'alma
e é tão lento o teu soar
Tão como o triste da vida
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida

Por mais que me tanjas perto
Quando passo sempre errante
És para mim como um sonho
Soas-me na alma distante
A cada pancada tua
Vibrante no céu aberto
Sinto mais longe o passado
Sinto a saudade mais perto

Poema de Fernando Pessoa musicado por Roberto Mendes

Maria Bethânia. Imitação da vida, EMI MUSIC LTDA. 857309-2, Rio de Janeiro, 1997.


HAVERÁ OUTRAS ASSIM...

Minha terra? Bem... haverá outras assim, no mundo de Deus. Não; seu céu não tem mais estrelas que outros céus, nem é de um azul sem par. Não; nossos bosques não têm mais flores que os outros (talvez nem haja bosques), nem suas flores têm mais perfume que as de outros jardins.
Bonita? Não. Talvez mesmo feia; pesa-me confessá-lo. Há morro, para todo lado que se olhe: assim o horizonte é curto (embora certos crepúsculos bem mereçam um olhar embevecido). Entre os morros, fazendo curvas, vem um rio que tem personalidade. Tem. Por quê? Não saberia explicar. É dessas coisas que a gente sente e não acha jeito de explicar bem.
O que eu sei é que, se me fora dado a escolher, no vasto mundo de Deus, um lugar para eu nascer... Bem; escolheria este: Cachoeiro de Itapemirim. Por quê? Sabe-se lá o porquê das coisas do coração?...

(Artigo publicado na revista ‘Cachoeiro de Itapemirim’, em 29 de junho de 1939, quando houve o primeiro ‘Dia de Cachoeiro’, criado por Newton Braga).

BRAGA, Newton. Histórias de Cachoeiro. Vitória, ES: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1986

ESTRANHICES DA BARRA
Bernadette Lyra

Nem sempre foi assim como agora, ameaçada, alicerçada em pedras foreiras para deter o mar. Antes, a Barra era uma cidadezinha amena, preguiçosamente estirada debaixo do sol, na areia. E o mar, ah, o mar era daqueles que, na maré baixa, precisava que se andasse muito para chegar até as ondas e que, na maré cheia, batia comportadamente como um cavalheiro educado nas delicadas colinas brancas, cobertas de conchas e raízes de salsa da praia.

E isso não faz tanto tempo. Porém já viajei tanto e já andei tanto por esse mundo sem tranqueira que sei que todos os lugares passam por mudanças. E as pessoas também. As pessoas, essas, tadinhas! não só se transformam - às vezes para o bem, às vezes para o mal. As pessoas se findam.

Que fazer? A vida é um sonho, já dizia Calderón de La Barca. Ou melhor, a vida é como Gringo, herói de um faroeste de Afonso Brazza. A vida não perdoa, mata.

Então, vou tratando de viver e de acender a memória. Enquanto der, enquanto eu não me findar, enquanto eu me considerar escritora. Pois que é próprio da memória de quem escreve (quem escreve por ofício; não para obter nebulosas vantagens: é triste dizer isso, mas tem gente por aí que faz da literatura uma cavação ignóbil...) é próprio da memória o contrato virtual com as coisas que, depois, as palavras revestem corporalmente. De beleza ou de horror.

Ora, tudo que tenho no baú da memória, eu devo à Barra. À minha Conceição da Barra, aqui nomeada com nome e sobrenome para que não a confundam os desavisados com outras Barras que de outros são. Devo à Barra tudo de que me lembro. Mesmo o que está para além de seus pontos cardeais: Atlântico, Cricaré, Guaxindiba, Pontal do Sul.

Minha intimidade com o assunto de rememorança barrense vem com o selo de legitimidade. E há muita matéria de recordação. No momento atual, ando coletando algumas estranhices ocorridas na Barra. Como a aparição de gente vinda do estrangeiro e logo desaparecida. Fatos e casos de viajantes arribados que eu ouvia desde a infância ou que pude acompanhar também.

Tem a chegada de um espanhol, com botas enormes e uma sacola pesada, que saiu do convés de um navio e sumiu por dentro das matas e quando retornou vinha sem as botas e com a sacola vazia. O sujeito tomou o rumo do cais, embarcou e jamais retornou à cidade. Iniciou-se uma romaria de escavações à cata das tais botas, pois se acreditava que, em algum lugar, dentro delas, o espanhol havia enterrado um tesouro.

Espanhóis, tem ainda aqueles três que surgiram do nada e que se instalaram em uma casinha da Rua da Praia. Mal falavam a língua da terra. Ninguém sabia ao certo o que eles faziam. Eram retraídos, porém eram gentis. Do mais sociável dos três, as moças fugiam nos bailes, pois dançava de mãos espalmadas, como um camponês catalão.

E tem muito mais que talvez eu continue contar a vocês, em outra crônica. Porque nunca se deve deixar de contemplar o mistério das lembranças de uma criatura. Ainda que venham impressas sobre uma página quente.

A GAZETA Vitória (ES), 10 de julho de 2011.

Um comentário:

  1. Tá bom Fábio... Em http://josmaelbardour.blogspot.com/2011/07/homenagem.html
    Tem a sua referência.
    Um Abraço.

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