domingo, 28 de agosto de 2011

QUE VÍCIO!




CADA TEMPO EM SEU LUGAR
Gilberto Gil

Preciso refrear um pouco o meu desejo de ajudar
Não vou mudar um mundo louco dando socos
                                                       [para o ar
Não posso me esquecer que a pressa
É a inimiga da perfeição
Se eu ando o tempo todo a jato, ao menos
Aprendi a ser o último a sair do avião

Preciso me livrar do ofício de ter que ser sempre
                                                                 [bom
Bondade pode ser um vício, levar a lugar nenhum
Não posso me esquecer que o açoite
Também foi usado por Jesus
Se eu ando o tempo todo aflito, ao menos
Aprendi a dar meu grito e a carregar a minha
                                                            [cruz
Ô-ô, ô-ô
Cada coisa em seu lugar
Ô-ô, ô-ô
A bondade, quando for bom ser bom
A justiça, quando for melhor
O perdão:
Se for preciso perdoar

Agora deve estar chegando a hora de ir descansar
Um velho sábio na Bahia recomendou: “Devagar”
Não posso me esquecer que um dia
Houve em que eu nem estava aqui
Se eu ando por aí correndo, ao menos
Eu vou aprendendo o jeito de não ter mais
                                                  [aonde ir

GIL, Gilberto. Gilberto Gil: todas as letras: incluindo letras comentadas pelo compositor / organização Carlos Rennó – São Paulo: Companhia das Letras, 1996.


QUE VÍCIO!
Por Fábio Brito
                                      
Não é à toa que “Cada tempo em seu lugar” é, entre as canções do Gil, minha preferida. Foi “amor à primeira ouvida”. Não é difícil explicar os porquês dessa paixão: porque ser sempre bonzinho adoece; porque existe um tempo para tudo nesta vida (até para se jogar pedra!); porque minha paciência tem diminuído consideravelmente a cada dia; porque ser sempre cordato e “bonzinho” é um desrespeito a mim, em primeiro lugar, e, depois, aos outros.
Há uns meses, quando minha saúde “pediu” socorro, tive, obrigatoriamente, de diminuir o ritmo. Assim, com o pé fora do acelerador, pude ficar um pouco mais meditativo. Foi necessário que transcorresse um tempo (não muito!) para eu perceber que diversos ensinamentos estavam a caminho. Um deles foi este: ser sempre “bom” é um vício terrível e que “leva a lugar nenhum”, como ‘nos’ diz a letra da canção do Gil. Ser sempre “bonzinho” adoece... gravemente.
É... há muitas ocasiões/situações em que é imperioso deixar de ser “bonzinho”. Exemplos não faltam. Quem, por exemplo, já foi importunado por alguma criatura (não me refiro às pessoas às quais empresto algo com o maior prazer) que deseja algo emprestado sabe exatamente como é ótimo ser “ruinzinho” nessa hora, a do empréstimo. As tais criaturas são, não raro, os “vigaristas dos empréstimos”, como classifico. Quer saber como elas se comportam? Atormentam e atormentam a vítima – a pessoa que será lesada – até a pobre coitada não aguentar mais. Tentam encontrá-la de todas as formas: celular, telefone fixo, tamborzinho, fumaça, apito, grito, berro, uivo, balido, zurro... tudo! Vira uma perseguição. Já sem forças, a vítima faz o quê? Empresta o que a criatura impertinente, absorvente, cansativa e inoportuna tanto quer. Ou seja, a vítima recebe a facada e, exausta, não tem mais forças para correr. Não é difícil adivinhar o que acontecerá depois: o devedor simplesmente não tem mais pressa para devolver o que tomou emprestado. Por que, para devolver, não há o mesmo ritual? Nãããooo! Agora não há pressa. Se for dinheiro, então, o objeto do empréstimo, aí é que o “trem” fica feio. A criatura vigarista “corta voltas” e finge que o outro desapareceu. Parece ficção. Ninguém toca no assunto. Não raro, cria-se um inimigo mortal. Triste isso, não?!  
Costumo sempre brincar que, em se tratando do assunto “empréstimo de dinheiro”, tenho o que chamam de “sangue doce”. Meu Deus! Há um bom tempo que sou perseguido por gente desonesta até o osso. Devo ter uma estrela - que nunca vi! - bem no centro da testa. Só pode! Vez em quando, uma criatura que nunca me viu procura-me para, sem mais nem menos, pedir, sem pudor ou constrangimento, dinheiro “emprestado”. Normalmente, a conversa é esta: “Preciso pedir uma coisa a você, mas estou com vergonha”. Vergonha?! Se tivesse a tal vergonha, não se dirigiria a mim. Conte-me outra! De uns tempos para cá, e só de uns tempos para cá, quando ouço essa história de que “preciso pedir algo a você, mas estou com vergonha”, vou logo dizendo que, se for dinheiro, não tenho nem para a feira da semana. Ai, meu Deus! Será que tenho cara de rico? Será que tenho cara de idiota? Será que tenho cara de “bonzinho”? Será que tenho cara “disso tudo” ao mesmo tempo?
Outras pessoas (ou criaturas) para quem precisamos ser “ruinzinhos” são aquelas que, por serem desorganizadas, exatamente por isso, desorganizam nossa vida. Elas não têm disciplina, não agendam nada, não se preocupam com nada e nem com ninguém. Dane-se o mundo! Dane-se o avião, uma vez que elas, as criaturas, não são o piloto. Como sempre, estão bem tranquilas. Viverão muito, claro! Sabem que nunca faltará alguém para “arrumar sua bagunça” ou tentar resolver algum problema que elas criaram. Não dá! Esse povo nos dá gastrite.  
 O tal do “professor bonzinho” também é de amargar. Graças a Deus, nunca me disseram que “sou um professor bonzinho”. Ao contrário! Reclamam porque sou “carrasco”, mas entendem que minhas exigências são necessárias. Tenho certeza de que meu rigor não diminui ninguém. É o tal “rigor amigo”, em vez da complacência inimiga. Professor “bonzinho” é o que passa a mão na cabeça e finge não enxergar (ou não enxerga mesmo!) as falhas do aluno. Esse professor não pode, portanto, ajudar ninguém a crescer. Se algum aluno prefere esse tipo de professor, pior para esse aluno. Preferir, hoje, o fácil pode significar graves problemas futuros. O crescimento não é filho das falsas bondades ou da incompetência alheia. Perigo à vista!
Certa ocasião, em um primeiro dia de aula, resolvi aplicar uma dinâmica (que, no geral, detesto!): pedi a alguns alunos que, rapidamente, escrevessem o nome de um professor inesquecível. Era fundamental que eles não tivessem tempo para pensar. Ao fim da tal dinâmica, sem que eles dissessem os nomes que escreveram, pedi a todos que me respondessem apenas o seguinte: “O nome que está aí no papel é de algum professor que foi “bonzinho” com vocês? Sem exceção, todos disseram que o nome lembrado foi o de um professor “carrasco”. Uh! Que alívio! No fundo, no fundo, eles, os alunos, sabem que paternalismo não faz ninguém crescer.
 O “eterno bonzinho” causa um mal terrível a si e aos outros. Não me esqueço do que disse D. Canô sobre sua filha Maria Bethânia, a grande intérprete da canção popular: “Acho que também ensinei a ela a honradez, o capricho de ser gente, de não molestar ninguém e não ser molestada.”* Depois que li essa declaração, mais do que sábia, da matriarca da família Veloso, pensei, com mais vagar, sobre como as pessoas deveriam ouvir isso que D. Canô nos disse. Muitas não querem (defendem-se com todas as armas!) ser molestadas, mas, quando se trata de molestar os outros, elas não se importam. Talvez sejam os tais “instintos naturais do egoísmo”. E o resultado disso é que temos de viver ‘nos’ defendendo o tempo todo. Isso cansa! E como!

*Correio Braziliense, 18 de outubro de 2009, ano 5, número 231.

8 comentários:

  1. Mto bom Fábio! Eu sou fã do Gil, ele tem poemas e canções belíssimas... Seu blog é que tá virando um "vício"... Abraços XD

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  2. Você é uma comédia! HAHHAHAHA, ri horrores com esse post. Desculpe-me se não era para ser engraçado... rs

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  3. Que bom, meu amigo!! (Morrendo de rir) Você está se tornando "un hombre" maduro.
    Beijinhos

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  4. Adorei, professor! Sua sinceridade, digamos, despretensiosa, me inspira!

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  5. De uns dias pra cá eu tenho me surpreendido com os "nãos" que finalmente aprendi a dizer.

    Perdoe o meu Francês : Bonzinho só se fode!

    Parabéns pelo texto e pelo desabafo.

    Me empresta um din din ae!?

    Abraço apertado!

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  6. Amigos, obrigado pelos comentários e pelas visitas.
    Eis mais um "texto-desabafo". Estou gostando muito dessa história de desabafar por meio do 'blog'. Uma catarse e tanto!
    Beijo em todos,
    Fábio

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