terça-feira, 31 de janeiro de 2012

NO 'BAR DO TOM', NO TOM EXATO



          NO 'BAR DO TOM', NO TOM EXATO
          Por Fábio Brito
          (Sobre o 'show' de 21 de janeiro de 2011)
   
         Que pena! Chega ao fim a temporada de "Bim Bom", show da extraordinária Ithamara Koorax em homenagem a João Gilberto, uma das personalidades mais aclamadas da Bossa Nova. No "Bar do Tom" (Leblon, Rio), tive o privilégio de assistir a mais um espetáculo dessa cantora "única" no cenário da MPB. Além do talento fora do comum, Ithamara é uma intérprete altamente carismática: durante o show, ninguém consegue tirar os olhos do palco um minuto sequer. Puro hipnotismo!
          O espetáculo, como poucos que vi até hoje, mostra uma intérprete em pleno domínio de seu ofício a 'nos' oferecer o que há de melhor em música. Se o homenageado é João, não poderiam faltar - é claro! - canções sacramentadas pelo mestre. Estão lá, portanto, Você esteve com meu bem?, O pato (um luxo a interpretação!), Corcovado, Chega de saudade, Minha saudade, Hô-bá-lá-lá e, lógico, Bim Bom, entre outras preciosidades. Todas, sem exceção, interpretadas com requinte, sofisticação e a "assinatura" Ithamara Koorax", inconfundível. Ela toma para si as canções que interpreta, e só os gênios fazem isso.     
           Discorrer sobre as qualidades da voz dessa intérprete aclamada no Brasil e fora daqui é, como eu já disse inúmeras vezes, "chover no molhado". Ainda assim, não me canso de elogiar seu valioso, impecável instrumento: a voz. Não posso ainda deixar de ressaltar momentos desse show que vão além do sublime, como a interpretação de Got to be real, canção que dá título a seu último CD, ainda não lançado no Brasil. Os agudos cristalinos de nossa diva enchem, invadem o "Bar do Tom". Que perfeição! Desse mesmo CD, Up, up and away, originalmente um jingle, também mereceu uma interpretação arrepiante. Sempre que ouço essa canção, em CD ou nos shows, fico "cantarolando-a" o tempo todo. Outros momentos que merecem destaque - e muito destaque! - são Corcovado e Chega de saudade. Em coro, cantamos com Ithamara esses clássicos da Bossa Nova. É... cantamos junto com ela! Não há como não a "acompanhar": ela exerce um fascínio sem precedentes sobre o público. Outro momento que me deixou boquiaberto - e todos os momentos me deixaram boquiaberto! - foi a interpretação de Toque de cuíca. Ficou magistral. É uma aula para quem deseja aprender ritmo, musicalidade. Com seu afinadíssimo instrumento, ela explora as infindas possibilidades de seu "gogó de ouro", de sua voz volumosa, portentosa, exuberante. Seu potencial vocal é tão fantástico, que ela se situa muito além de inúmeras cantoras, brasileiras ou não, que gravam à beça e encontram bastante espaço na mídia para a divulgação de seus "trabalhos". Além da voz de Ithamara, há que se falar dos outros instrumentos, também geniais, que integram o show: o baixo fantástico de Augusto Mattoso, a guitarra e o violão excelentes de Dino Rangel e a "endiabrada" bateria de Haroldo Jobim, músicos que acompanham nossa diva.
          Para mim, e para muita gente, Ithamara é a melhor e a mais importante cantora do mundo não só por seus inquestionáveis atributos vocais, mas também porque ela acredita na arte e opta sempre pelo bom gosto, requisito fundamental para a perpetuação do trabalho artístico. Ela não trata música como uma mercadoria qualquer. Não me canso de dizer isso. Ela respeita o belo. Sua arte é a prova indubitável de que temos de defender a memória dos assaltos da ignorância. Muita gente não sabe disso. Que pena! 
           Além de extremamente talentosa, Ithamara é muito amável com seu público e muito acessível. Ao contrário de muitas que não têm um terço de seu talento, ela não fica fazendo pose de "estrelona inacessível". Ao contrário, chega bem perto de todos que a amam.
           Voltando ao show, só não concordo com as notas dos jornais que não o recomendam para menores de 18 anos. Não sei por quê. As crianças não precisam de boa formação? Mas é claro que precisam! Pobres crianças! A ignorância nacional não tem permitido que elas tenham acesso a bens culturais que são, e serão, importantíssimos para sua formação. Levemos, pois, as crianças ao universo da boa música... já! Ainda há tempo... espero!
        

          O ARTISTA PERFEITO
          Clarice Lispector
         
          Não me lembro bem se é em Les donnés immediates de La conscience que Bergson fala do grande artista que seria aquele que tivesse, não só um, mas todos os sentidos libertos do utilitarismo. O pintor tem mais ou menos liberto o sentido da visão, o músico o sentido da audição.
Mas aquele que estivesse completamente livre de soluções convencionais e utilitárias veria o mundo, ou melhor, teria o mundo de um modo como jamais artista nenhum o teve. Quer dizer, totalmente e na sua verdadeira realidade.
Isso poderia levantar uma hipótese. Suponhamos que se pudesse educar, ou não educar, uma criança, tomando como base a determinação de conservar-lhe os sentidos alertas e puros. Que se não lhe dessem dados, mas que os seus dados fossem apenas os imediatos. Que ela não se habituasse. Suponhamos ainda que, com o fim de mantê-la em campo sensato que lhe servisse de denominador comum com os outros homens lhe permitisse certa estabilidade indispensável para viver, dessem-lhe umas poucas noções utilitárias: mas utilitárias para serem utilitárias, comida para ser comida, bebida para ser bebida. E no reto a conservasse livre. Suponhamos então que essa criança se tornasse artista e fosse artista.
O primeiro problema surge: seria ela artista pelo simples fato dessa educação? É de crer que não, arte não é pureza, é purificação, arte não é liberdade, é libertação.
Essa criança seria artista do momento em que descobrisse que há um símbolo utilitário na coisa pura que nos é dada. Ela faria, no entanto, arte se seguisse o caminho inverso ao dos artistas que não passam por essa impossível educação: ela unificaria as coisas do mundo não pelo seu lado de maravilhosa gratuidade mas pelo seu lado de utilidade maravilhosa. Ela se libertaria. Se pintasse, é provável que chegasse à seguinte fórmula explicativa da natureza: pintaria um homem comendo o céu. Nós, os utilitários, ainda conseguimos manter o céu fora de nosso alcance. Apesar de Chagall. É uma das poucas coisas das quais ainda não servimos. Essa criança, tornada homem-artista, teria pois os mesmos problemas fundamentais de alquimia.
Mas se homem, esse único, não fosse artista – não sentisse a necessidade de transformar as coisas para lhes dar uma realidade maior – não sentisse enfim necessidade de arte, então quando ele falasse nos espantaria. Ele diria as coisas com a pureza de quem viu que o rei está nu. Nós o consultaríamos como cegos e surdos que querem ver e ouvir. Teríamos um profeta, não do futuro, mas do presente. Não teríamos um artista. Teríamos um inocente. E arte, imagino, não é inocência, é tornar-se inocente.
Talvez seja por isso que as exposições de desenhos de crianças, por mais belas, não são propriamente exposições de arte. E é por isso que se as crianças pintam como Picasso, talvez seja mais justo louvar Picasso que as crianças. A criança é inocente, Picasso tornou-se inocente.
 Fonte: LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Rocco, 1999.

5 comentários:

  1. Fábio, fico a imaginar as sensações que o público teve durante o show de Ithamara - pois, já tive o prazer de tê-las, também. Ithamara é singular em nossa musica! Talentos como o dela, talvez maiores, tivemos "de montão"; mas, noutros tempos... Hoje, agora, no horário nobre, não tem ninguém. Ithamara semeia sua voz e seu talento em deserto - mas, mesmo no deserto, há vidas, ainda, graças a Deus!

    Adorei a postagem, meu amigo.

    Abração,

    Rodrigo Davel

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    1. Rodrigo, meu amigo, faltou você, faltou o Carlos. O 'show' foi maravilhoso! Nem preciso dizer isso, não é mesmo? Tudo bem. Haverá outros. Abraços e obrigado pela visita.

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  2. Meu caro...estive também neste show e, pra variar, pasmei-me, boquiabri-me ou embasbaquei-me.Ela é um fenômeno musical...quase inacreditável. Seu texto, pra variar, faz barba, cabelo, bigode e bainha rs. Perfeito! Posso utilizar/reproduzir/compartilhar seus comentários kooraxianos a respeito de La Koorax?
    Mas qual não foi meu maravilhamento diante deste texto -desconhecia este diamante lispectoriano, lamentavelmente - cheio de rutilância e "feitiços", da genialíssima Clarice , de quem sou adicto. IthaMaravilha e Clarice -geniais e/ou iluminadas- não ficaram tão próximas no seu post, por mero acaso...deve ser a tal sincronia junguiana.
    Abraço forte!
    Marino Monti

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Marino, meu amigo, você não imagina como fico feliz com seus comentários, que são excelentes. Muitíssimo obrigado, viu?! Pois é, meu querido, nossa "IthaMaravilhosa", como você diz, é sempre um luxo. O texto da Clarice diz tudo. Se você pode "utilizar/reproduzir/compartilhar" os comentários? Mas é claro que pode! Fico honradíssimo! Um abração.

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