domingo, 6 de maio de 2012

REIZINHOS 'MANDÕES'





EU QUERO SER SEDADO (I wanna be sedated)
Joey Ramone / Dee Dee Ramone / J. Ramone - Versão: Rita Lee

Vinte - vinte - vinte e quatro horas a mais
Eu quero ser sedado
Nada de amor
Nada de paz
Eu quero ser sedado

Me leva pro aeroporto
Me bota no avião
Vamo, vamo, vamo, eu hoje tô o cão
Eu não controlo a cuca
Eu não controlo a mão
Oh, não, não, não, não, não

Me amarra numa maca
Me bota no avião
Vamo, vamo, vamo, eu hoje tô o cão
Eu não controlo a cuca
Eu não controlo a mão
Oh, não, não, não, não

Na camisa-de-força
Me leva para o show
Vamo, vamo, vamo, estoy mucho loco
 Eu não controlo a bola
Eu não controlo o gol
Oh,  não, não, não, não, não

Me finca uma estaca
Me leva para o show
Vamo, vamo, vamo, estou mucho loco
Eu não controlo a bola
Eu não controlo o gol
Oh, não, não, não, não

Fonte: Rita Lee. MTV ao vivo. EMI, 2004.


         REIZINHOS “MANDÕES”
          Por Fábio Brito
          Aluno "pode tudo"? Não se espantem, mas, em algumas escolas, aluno pode, sim, fazer e dizer o que quiser, o que bem entender. Está decretado o fim do respeito, principalmente ao professor, que já é tão desrespeitado. Com muito - muito mesmo! - espanto, ouvi, há uns dias, um relato estarrecedor de um professor de ensino médio. Tal relato-desabado só serviu para eu constatar que, para muitos alunos, o professor significa muito pouco, quase nada.
          Esse professor pediu a um colega de trabalho que fizesse a gentileza de entregar uma avaliação que ele ainda não havia tido tempo de entregar. Como todos sabemos, é questão de respeito o cumprimento dos prazos estabelecidos. Pois assim 'o' fez o professor: para não desrespeitar os alunos, pediu a um colega, também professor, que entregasse o material. Pois bem, um dos adolescentes, que só deve ter olhado a nota, foi rápido em seu comentário ao receber a prova: " - Esse 'isso' e esse 'aquilo' está querendo me reprovar". Ou seja, para esse adolescente, o professor é nada. Ou melhor: é sim! É o "isso" e o "aquilo" ditos por ele, o aluno. Na cabecinha desse garoto, o professor é tudo, menos alguém que merece respeito e consideração. Indignado com o desrespeito, o professor relatou o fato ao amigo, que, imediatamente, procurou a coordenação (ou a direção, não lembro) para que fossem tomadas providências. Tomaram? Eis outro capítulo da bela história dos "mil e um desrepeitos em sala de aula hoje em dia".
          Chamado pela direção da escola, o aluno, no início, negou que tivesse agredido verbalmente o professor; depois, confessou. A diretora, ao ouvir a confissão, solicitou que esse aluno pedisse desculpas ao professor: " - Peça desculpas ao professor, meu filho". E o menino, "bem educado" (educadíssimo!), pediu! Sou capaz de apostar que, no momento, os dedinhos estavam cruzados. E a história, para meu espanto, acabou aí... Não houve qualquer punição. Desde quando pedir desculpas - "falsamente", claro! - é punição? Esse aluno não vai ser punido? Não vai haver suspensão ou sei lá o quê? Os pais não vão ficar sabendo? Algumas regalias que esse adolescente tem não serão suspensas por um tempo? Vai ficar tudo por isso mesmo? Não me faltam perguntas, meu Deus! E quero que não me faltem mesmo... nunca!
          O pior de tudo, nesse rolo todo, é que ninguém educou ninguém. Estabelecer como punição a um aluno que agride um professor apenas um "insosso" e falso pedido de desculpas não é educar. Desculpem-me, mas não é mesmo! Se eu não estiver redondamente enganado quanto a "possíveis novos métodos de educação", o nome disso, para mim, é paternalismo barato, chinfrim. E paternalismo, como já dizia uma de minhas grandes professoras, não faz ninguém crescer. Ao contrário! Paternalismo é algo que só deseduca e fomenta o desrespeito. Sem limites, paparicados ao extremo e com suas falhas acobertadas, muitos jovens encontram, certo dia, um mundo atraente - e sem limites, claro! – como o das drogas e o do crime. Está mais do que provado que muitos se envolvem com drogas porque não tiveram quaisquer limites. Todo texto de psicologia, por mais simples e banal que seja, vai dizer isso. É bom não nos esquecermos de que muitos tiranos nascem assim: fazem o que querem desde a mais tenra idade. Então não é mais de "pequenino que se...", como diziam meus avós? Hoje em dia, parece que não. Voltando à questão escolar: nem é preciso relembrar acontecimentos (muitos!) recentes envolvendo agressões (muitas chegam à morte) a professores relatadas aos montes por jornais.
          Com atitudes como essa do aluno que chamou o professor de “isso” e “aquilo”, nossos adolescentes vão crescendo malformados, mal-educados. Pensam, certos pais e professores, que, "passando a mão" na cabeça, estão educando. Estão, sim, engrossando ainda mais um exército de gente fútil e vazia. Esses adolescentes malformados, essas “pessoinhas” mimadas, fazem, literalmente, o que querem. Mandam e desmandam, inclusive nos pais. São belos exemplos de “reizinhos mandões”. Se contrariados – porque, às vezes, os pais resolvem não dar o tênis ou a roupa “de marca” - saem por aí matando pai, mãe, professores e ateando fogo em pessoas que encontram pelas calçadas. Culpa de quem? De quem os educou para isso, claro! Ou vão dizer que a culpa é minha? Talvez seja do professor, não é mesmo? Ou será da escola? Bom, de uns tempos para cá, ela, a escola, transformou-se em tudo: “psicóloga”, “médica”, “assistente social”, “babá de luxo”... Só não tem conseguido ser escola. Que pena!
          Não são poucas as histórias que me chegam de escolas "dirigidas" por alunos. Nos últimos anos, então, o número tem sido alarmante. Todo ano, ajudo a formar professores e mais professores. Muitos, durante a graduação, já atuam em sala de aula. Independentemente da cidade, os relatos que eles me fazem de desmandos de alunos são bem parecidos. Espantoso isso, não? Mas há as exceções. Querem uma? Certa vez, ouvi de uma professora uma história bastante interessante: ela disse-me que, na escola em que trabalha, não há qualquer problema em repreender alunos “mandões”. Eis uma de suas “chamadas”: "- Aluno, aqui, não manda na escola, ouviu? Se quisermos, você não fica aqui nem mais um dia". Desde que surgiu, essa escola é uma das mais respeitadas na cidade. Suas vagas são disputadíssimas. Por quê?  Porque, lá, "aluno não manda na escola", disse-me a professora. É 'lei' e pronto! Querem estudar? Estudem, mas vão ter de saber o que é respeito por todos: do pessoal da limpeza à direção. E os alunos sempre tiveram "amor por essa escola". Nenhum que passou por lá, desde sua fundação até hoje, deixou de amá-la e de sentir o maior 'orgulho' por ter sido filho dessa escola. E aí? Paternalismo adianta? Resolve? Claro que não! Pois é, mas, como relatou a professora, não faltam críticas a essa escola. Uma delas aponta para o tradicionalismo. E daí? Qual o problema em ser tradicional? Os pseudomoderninhos, por acaso, estão resolvendo?  Resolveram algum dia? Não resolverão nunca, porque, antes de pensarem no crescimento e na educação de seus alunos, pensam em agradar aos pais e à sociedade. Caminho sem volta esse... parece-me! Portanto, "eu quero ser sedado", como bem canta Rita Lee.

FORAM MUITOS, OS PROFESSORES
           
Bartolomeu Campos de Queirós

         Minha mãe guardava com cuidados de sete chaves, sobre a cômoda do quarto, três cadernos. No primeiro, ela copiava receitas de amorosos doces: suspiros, amor-em-pedaços, baba-de-moça, casadinos, e fazia olho-de-sogra de cor. No segundo caderno, ela anotava riscos de bordado, com nomes camuflados em pesares: ponto-atrás, ponto de sombra, ponto de cruz, ponto de cadeia, laçadas e nós. No terceiro, ela escondia longas poesias, boiando em sofrimentos: A Louca d’Albano, Tédio, O Beijo do Papai. Eu reparava seus cadernos, encardidos pelo tempo e pelo uso, admirava sua letra redonda e grande, com caneta de molhar, sem ainda desconfiar das palavras. Eu sabia do todo, sem suspeitar das partes. Durante muitas tardes, com o pensamento enfastiado de passado, ela passava as páginas, lentamente, espreitando as folhas vazias, como se cansada de escrever e de pouco exercer. Eram sempre as mesmas comidas, os mesmos pontos, a mesma poesia e muito por decidir.
            Meu pai, junto ao rádio no alto da cristaleira e longe do meu alcance, protegia alguns poucos livros sobre homens célebres, com vidas prósperas sem precisar viajar de sol a sol. Aos pedaços ele lia os compêndios, escutando a Voz do Brasil ou o Repórter Esso. Eu apreciava seu silêncio, sem me aventurar em perguntas ou demandas. De vez em quando ele interrompia a leitura e me acariciava com os olhos, me amando sem mãos, como se me desejando outros futuros diferentes do seu. Seu jeito me arranhava por não ser meu anseio me fazer herói ou mártir. Eu queria saber, mas sem perdê-lo. Lastimando a ausência de futuro, ele fechava o livro, reparava as horas e buscava o sono. Seu dia era pequeno para trabalhar por todos nós. E nos livros, eu percebia, estava escrito o já não mais possível a ele. Eu sabia irrealizável, sem querer nascer de novo.
            Na pequena capela da praça morava uma imagem de Sant’Ana. Minha irmã levava piedosos ramos de flores, colhidos na horta, e trocava pedidos balbuciados. Eu encarava a santa com seu livro aberto sobre os joelhos ensinando à Menina Maria. Eu espiava o livro de gesso, indagando o que a futura Mãe de Deus não sabia ainda. O que estava guardado em abençoado livro e que a Rainha desconhecia? Aproveitava as suspeitas e rezava por mim, pelas minhas desconfianças. Mesmo sabendo repetir o credo, o pai-nosso, a ave-maria, meu coração se aventurava a interrogar o Perfeito por me ofertar tanta incoerência para sobreviver.
            Meu irmão, o mais velho, se debruçava sobre a mesa e examinava, enfastiado, seu livro de leitura. Passava horas soletrando, com desalento, seus afazeres. Os deveres lhe pareciam insossos, pois, constantemente, pedia a meu pai para “lhe tomar as lições”. Meu pai negava por não necessitar mais de lições. Já trabalhava e amava. Minha mãe, propensa a justificar fracassos, elogiava o esforço do filho maior, o suposto responsável pela família em caso de desgraça, mesmo reconhecendo não serem os livros o seu caminho. Eu invejava o lugar de meu irmão estudando os afluentes do Rio Amazonas, a rosa-dos-ventos, os pontos cardeais, as três caravelas. Eu sonhava rio, vento, direção e barco sem querer partir. E, se partir, deixar bilhete sobre o norte buscado. Se sufocado em desejos, eu vivia cheio de medo de minhas vontades virarem verdades.
            Minha avó, toda manhã, ainda em jejum, arrancava a página da folhinha Mariana e lia as recomendações. Meditava, cambaleando no meio da sala, sobre o pensamento escrito no verso do papel para depois conferir a fase da Lua, a previsão das enchentes e estiagens. Em seguida acendia mais uma vela para os santos do dia: santa Genoveva, são Philippus, São Clemente Maria, santo Antão, santo Agripino. Eu reparava sua fé e guardava o papelzinho como se armazenando sabedoria, como se acreditando na possibilidade de o passado se repetir no futuro. Minha mãe, de soslaio, espiava minha avó e continuava sem anotar receita de olho-de-sogra em seu primeiro caderno.
            Maria Turum, empregada antiga de meu avô, sabia de um tudo sem conhecer as letras. Conforme o meu olhar, ela me oferecia um pedaço de doce ou me abraçava em seu colo. Combinava o tempo de chuva com comida e angu, carne moída e quiabo, em consultar caderno de receitas. Se meu avô pisasse mais forte, ela apresssava o almoço; e, se tossia durante a noite, vinha um prato de mingau, com pedaços de queijo, no café da manhã. Ao apertar com os dentes um grão de feijão, sabia se estava cozido ou se precisava de mais um caneco de água. Olhava o céu e deixava a roupa para ser lavada em outro dia, pois faltaria sol para corar os lençóis. Nunca notei interesse seu diante das paredes do meu avô. Ela parecia não pensar além da casa. Não havia horizonte lá fora. Só conhecia o mundo tocado pelos olhos. E em sua alma, eu compreendia, não cabia mais amor além daquele dividido entre nós e revelado na limpeza da casa, no carinho da cozinha, na roupa alvejada no varal.
            Meu avô, arrastando solidão, escrevia nas paredes da casa. As palavras abrandavam sua tristeza, organizavam sua curiosidade silenciosamente. Grafiteiro, afiava o lápis como fazia com a navalha. A cidade era seu assunto: amores desfeitos, madrugada e fugas, casamentos e traições, velórios e heranças. Contornava objetos: serrote, tesoura, faca, machado – e ainda escrevia dentro dos desenhos um pouco do destino de cada coisa: o serrote sumiu, a tesoura quebrou, o machado perdeu o corte. Eu, devagarinho, fui decifrando sua letra, amarrando as palavras e amando seus significados. Meu avô era um construtivista (sem conhecer nem a Emília do Lobato) pela sua capacidade de não negar sentido às coisas. Tudo lhe servia de pretexto.   
            Eu restava horas sem fim, de coração aflito, seduzido pelas histórias de amor, de desafeto, de ingratidão, de mentiras do meu primeiro livro – as paredes da casa de meu avô. Assim, percebi o serviço das palavras – facas de dois gumes. Meu avô desdizia verdades eternas com as mesmas palavras com que escreveram a Bíblia Sagrada: “A bondade de Deus só não deu asa à cobra porque a cobra não cobrou; à noite todos os pardos são gatos; para quem sabe ler, um pingo nunca foi letra; em casa de ferreiro pobre, até o espeto é de pau porque não tem nem fogo”. Essa sua capacidade de negociar com as palavras, de buscar seus avessos, me atordoava e me seduzia.
            Meu avô poderia ter sido meu primeiro professor se fizesse plano de aula, ficha de avaliação, tivesse licenciatura plena. O fato é que ele não aplicava prova, não passava dever de casa nem brincava de exercício de coordenação motora. Jamais me pediu que acompanhasse o caminho que o coelhinho fazia para comer a cenourinha nem me deu flor para colorir. Minha coordenação motora eu desenvolvi andando sobre muros ou pernas de pau, subindo em árvores, acertando as frutas com estilingue ou enfiando linha na agulha para minha avó chulear. Também, coelho não usava ainda nem na Páscoa, ocasião em que se comungava coordenando a hóstia para não esbarrar nos dentes nem grudar no céu da boca. Meu avô escancarava o mundo com letra bonita e me deixava livre para desvendar sua escritura.
            Mesmo assim, cada dia eu conhecia mais palavras e mais distâncias, combinando melhor as orações. E suas paredes mais se enchiam de avisos sobre o mundo e as fronteiras do mundo. Eu decorava tudo e repetia timidamente. Eram tranqüilas suas aulas, e o maior encanto estava em meu avô cultivar as dúvidas. Se ele escrevia “o mundo é uma bola besta sem eira nem beira”, eu desconfiava se estava dizendo ser a Terra redonda ou se a Terra era uma piada sem tamanho. Eu concluía ser as duas coisas. Às vezes ele me pegava esticando o pescoço, tentando alcançar um pedaço mais longe, um parágrafo mais alto. Ele me apontava a cadeira. Eu buscava e ele me ajudava a subir. Minha avó gritava: “Menino, desça daí, esse velho não é certo nem dá certeza”. Meu avô voltava para a janela e continuava lendo o mundo, seu único e maior livro.
            Não sei se aprendi a fazer contas com meu avô. Ele mais me ensinava a “fazer de conta”. No entanto, eu diferenciava o mais alto do mais baixo, o bife maior do menor, as noites mais frias das noites mais quentes, o mais bonito do mais feio, a montanha mais longe, a dor mais pesada, a tristeza mais breve, a falta mais constante. Mas acreditava, e hoje ainda mais, não ser a casa de meu avô uma escola. Ela não possuía cartazes de cartolina nas paredes, vidro com semente de feijão brotando, cantinho de leitura com livrinhos infantis, lista de ajudantes do dia, tanque de areia, palhacinho de isopor, flanelógrafo de feltro verde. Meu avô devia supor que escola fosse o mundo inteiro, a vida inteira, com noite e dia, perdas e ganhos, dores e tristezas, sonos e sonhos.
            Mas eu somava o tempo de ausência de meu pai transportando manteiga, as horas sonoras do relógio, os suspiros na bandeja. Meu avô não usava toquinhos coloridos, tampinhas de garrafa, palitos de picolé nem me exigia uniforme. Ele nunca me convidou para fazer “rodinha”. Aprendi, porém, e como ninguém, a dar nós cegos em barbante, seu passatempo preferido. Meu avô me dizia: “Um bom nó cego tem que ser ainda surdo e mudo”. Penso ter vindo daí essa minha paixão pelos abraços e pelos laços.
            Em minha casa ninguém atribuía importância às minhas leituras. Eu aproveitava pedaços de jornais que vinham embrulhando coisas e lia em voz alta, procurando atenções e reconhecimentos. Meu pai me olhava e repetia sempre: “Menino, deixe de inventar histórias, você não sabe ler, nunca foi à escola” ou “Menino, deixe esse papel e vá procurar serviço melhor pra fazer”.
            Passei a duvidar da escola. Parecia-me um lugar só para dar autorizações. Se a escola não autorizasse, eu não poderia saber. O medo desse lugar passou a reinar em minha cabeça. Comecei a dar razão ao meu irmão, já capaz de dirigir o caminhão assentado em um travesseiro de paina. Mas logo me veio uma idéia: quando entrar para a escola, eu faço de conta que esqueci tudo e começo a aprender de novo. “Uma mentirinha é um santo remédio para botar um ponto final em conversa fiada”, me ensinou meu avô, coisa que comecei a praticar para encurtar perguntas e me livrar de incômodos. Havia pessoas que gostavam de indagar muito mais do que deviam.
            Cheguei de uniforme novo costurado pelo carinho de minha madrinha. O caderno era Avante, com menino bonito na capa, sustentando uma bandeira com um Brasil despaginado pelo vento. Menino rico, forte, com sapatos e meias soquete. O estojo de madeira estava completo: dois lápis johann Faber com borracha verde na ponta e mais um apontador de metal. Um copo de alumínio, abrindo e fechando como o acordeom de Mário Zan, completava as exigências da escola. Só minha cabeça andava aflita para esquecer. E esquecer é não existir mais. Isso não é tarefa fácil para quem aprendia em liberdade, escolhia pelo prazer, guardava pela importância. 
            Fui acolhido por dona Maria Campos, minha primeira professora, com livro de chamada, caderno com plano de aula encapado com papel de seda. No pátio ela nos leu da cabeça aos pés, conferindo a limpeza do uniforme, as unhas lavadas, o cabelo penteado. Pela primeira vez me senti o seu livro. Miúdo, descalço, morria de inveja do menino Avante guardado no embornal. Fui o primeiro da fila. Dona Maria Campos segurou minha mão e a fila foi andando em direção à sala de aula. Mão fina e macia como o algodão da paineira, que minha mãe colhia aos tufos e costurava travesseiro com cheiro de mato. Meu coração disparou de amor e mão. Comecei, assim, naquele depois de meio-dia, a praticar minha promessa: tomar bomba no tudo já aprendido e começar branco como o caderno Avante. 
            Dona Maria vestia-se por todo o sempre com roupa clara, sapatos fechados, meias de seda, blusa bordada em branco sobre branco e mais um lenço preso no cinto ou na pulseira do relógio para assear as mãos depois de escrever no quadro-negro. Ela me emprestou seu lenço quando minha mãe viajou doente para a capital. Eu não usei. Preferi usar, como de costume, a manga da camisa, com medo de sujar no nariz e ela não mais gostar de mim. Todo o cuidado era pouco para não perder o seu amor. Sua alvura na roupa, seu olhar capaz de ver muito depois das coisas, sua voz mansa – mistura de fortaleza e doçura, me instigavam ao silêncio. Ela não pedia, mas eu a presenteava.
            Encher o caderno com fileiras e fileiras de a, e, i, o, u foi o primeiro exercício. Vaidosa, ela me apresentava os sinais para escrever e ler o mundo. Ganhar o seu visto feito com lápis azul ou vermelho riscava com alegria toda a minha vida. Eu me esforçava, caprichava na letra e mordia a língua no canto da boca. De carteira em carteira, ela corrigia os exercícios deixando no ar um cheiro de paineira e primavera. Estação que eu não distinguia “a olho nu”, mas imaginava.
            Um dia dona Maria Campos trouxe Lili, menina que gostava muito de doce e olhava pra mim. Lili foi o meu primeiro amor. Eu lia os cartazes, colava as sílabas, recortadas, com grude de polvilho, mentindo descobrir pela primeira vez as palavras. Vencia as horas folheando a cartilha, lendo até o fim, em silêncio, guardando em segredo os depois. A professora jamais soube do meu adiantamento. Na primeira carteira eu prestava atenção a tudo, sendo elogiado como menino aplicado, cheio de futuros. Nunca soube se precisava mesmo de suas lições ou de seu carinho. E isso ela bem me presenteava. Eu aprendia para ela. Mas, se não me esqueci de sua presença, valeu a pena.
            Fui escolhido para declamar no auditório da escola uma poesia. Ser escolhido já significava um prêmio. Decorei e repetia para as galinhas, os chuchus e a paineira o poema, cheio de medo de gaguejar e de decepcionar minha professora:

            Eu comi ontem no almoço
            A azeitona de uma empada,
            Depois botei o caroço
            Sobre a tolha engomada.

            Mas a mamãe logo nota
            E me ensina com carinho:
            O caroço não se bota
            Sobre a toalha, meu benzinho.

            O que ela me diz eu ouço
            Sempre com muita atenção
            E perguntei-lhe: o caroço, mamãe,
            Onde boto então?

            Toda pessoa de linha,
            De educação e de trato,
            O osso, o caroço, a espinha
            Põe no cantinho do prato.

            Eu depressa lhe respondo
            Com respeitoso carinho:
            Mas meu prato é redondo,
            Meu prato não tem cantinho!

            Não me lembro do autor dos versos ou se eram anônimos como eu, naquele fim de mundo, naquele miolo da Terra arredondada e sem aparentes arestas. Contudo, se não caíram no esquecimento, não devem ficar ignorados como outras coisas mais. Também não sei se eram aritmética aqueles problemas passados no quadro-negro, dividindo as dúzias de ovos e bananas, fracionando laranjas e maçãs em quatro ou oito partes iguais. Os litros de leite, se bem me lembro, divididos entre todos, me sugeriam pensar se a generosidade era um dom da vaca, do fazendeiro ou dos dois. Sei que nesses atos singelos, praticados com gestos amorosos, dona Maria Campos me ensinou demais, muito além das paredes de meu avô. Ou melhor, me ensinava serem muitos os lugares da escrita e da leitura. De suas histórias lidas no fim da aula, eu ainda guardo o cheiro do livro.
            Ingênuo, supondo ser a vida um processo de soma e não de subtração, juntei de cada um dos meus mestres um pedaço e protegi em minha intimidade. Concluo agora que, de tudo aprendido, resta a certeza do afeto como a primordial metodologia. Se dona Maria me tivesse dito estar o céu no inferno e o inferno no céu, seu carinho não me permitia dúvidas.
            Os cadernos de receitas de minha mãe, os livros velhos de meu pai, as paredes de meu avô, o livro de Sant’Ana, a mudez de Maria Turum, a fé viva de minha avó, a preguiça de meu irmão e tudo o mais, tudo ficou definitivamente impossível de ser desaprendido. Só não me convenço de ter comido apenas a azeitona da empada.    

Fonte: Meu professor inesquecível: ensinamentos e aprendizados contados por alguns dos nossos melhores escritores / organização de Fanny Abramovich. São Paulo: Editora Gente, 1997.



11 comentários:

  1. Parabéns aí!
    os alunos se sentem intocáveis,(não se pode nem reprová-los - hehe) se é q me entende?

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    1. É isso aí, Alex! A arrogância chegou a tal ponto que... todos sabemos o fim de muitas histórias.
      Abração, amigo, e obrigado pelo comentário, pela visita.

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  2. Tudo o que tem acontecido não só na escola, mas em toda a sociedade é lamentável Fábio. Estamos beirando a um colapso...

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    1. Lamentável mesmo, Gabi. Respeito, hoje em dia, é palavrinha bem em desuso. Obrigado, querida, pela visita, pela atenção. Bjs,

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  3. É a coisa tá séria e como está!!! Sabe que ao ler o seu texto retomei á minha infância lá em Minas Gerais? Lembro-me bem que em todos os eventos (mais importantes) que aconteciam no lugarejo onde eu nasci (e passei a minha infância) o professor era convidado a compor a mesa das autoridades... sempre achei bonito aquilo... o respeito pelos meus professores veio lá de casa sabe Fábio, do meu pai e da minha mãe que nem curso superior possuem, aí de mim se desrespeitasse um professor, meu Deus, "o bicho pegava", na verdade isso nunca aconteceu... Os meus referenciais de respeito (também e) sempre se aplicaram aos meus professores, mesmo aqueles que não sabiam "ensinar" eram professores e como tal deviam ser respeitados...
    Hoje com a Laura e a Sofia (minhas sobrinhas) não é diferente, elas podem se explicar mas vale ainda a posição do professor... estamos tentando não inverter os valores...
    Salvem e salve esses guerreiros dessa profissão tão nobre e tão esquecida!!!
    Hércules Campos

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    1. Pois é, amigo Hércules, "professor" é a profissão mais importante que existe, não é? Antes de as pessoas 'se' formarem em quaisquer outras, elas têm de passar por vários professores. Por que, então, tanto desrepeito, não é mesmo? Mais uma vez, muitíssimo obrigado pelos comentários, pela atenção, pela visita. Abração,

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  4. Excelente material! Vou utilizá-lo em minha escola, tá? Não se preocupe que vou constar o link do blog e o nome do autor. Abraço!

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Que bom, meu amigo. Para mim, é um luxo você levar o texto 'para' a escola. Valeu! Obrigado pela visita. Abração,

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  5. Obrigado, Julio, pela visita. Abração, amigo.

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