domingo, 16 de dezembro de 2012

SEJAMOS, POIS, BOBOS



DAS VANTAGENS DE SER BOBO

- O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo.
- O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."
- Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.
- O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem.

- Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas.
- O bobo ganha liberdade e sabedoria para viver.
- O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.
- Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro.

- Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.
- O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não nota que venceu.
- Aviso: não confundir bobos com burros.

- Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"
- Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
- Os bobos, com suas palhaçadas, devem estar todos no céu.

- Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
- O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos.

- Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos.
- Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham vida.
- Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.
- Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita o ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!
- Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.

- É quase impossível evitar excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.


A FÚRIA DA BELEZA

Estupidamente bela
a beleza dessa maria-sem-vergonha rosa
soca meu peito esta manhã!
Estupendamente funda,
a beleza, quando é linda demais,
dá uma imagem feita só de sensações,
de modo que, apesar de não se ter a consciência desse todo,
naquele instante não nos falta nada.
É um pá. Um tapa. Um golpe.
Um bote que nos paralisa, organiza,
dispersa, conecta e completa!
Estonteantemente linda
a beleza doeu profundo no peito essa manhã.
Doeu tanto que eu dei de chorar,
por causa de uma flor comum e misteriosa do caminho.
Uma delicada flor ordinária,
brotada da trivialidade do mato,
nascida do varejo da natureza,
me deu espanto!
Me tirou a roupa, o rumo, o prumo
e me pôs a mesa...
é a porrada da beleza!
Eu dei de chorar de uma alegria funda,
quase tristeza.

Acontece às vezes e não avisa.
A coisa estarrece e abre-se um portal.
É uma dobradura do real, uma dimensão dele,
uma mágica à queima-roupa sem truque nenhum.
Porque é real.
Doeu a flor em mim tanto e com tanta força
que eu dei de soluçar!
O esplendor do que vi era pancada,
era baque e era bonito demais!

Penso, às vezes, que vivo para esse momento
indefinível, sagrado, material, cósmico,
quase molecular.
Posto que é mistério,
descrevê-lo exato perambula ermo
dentro da palavra impronunciável.
Sei que é dessa flechada de luz
que nasce o acontecimento poético.

Poesia é quando a iluminação zureta,
bela e furiosa desse espanto
se transforma em palavra!
A florzinha distraída
existindo singela na rua palelepípeda esta manhã
doeu profundo como se passasse do ponto.
Como aquele ponto do gozo,
como aquele ápice do prazer
que a gente pensa que vai até morrer!
Como aquele máximo indivisível,
que, de tão bom, é bom de doer,
aquele momento em que a gente pede pára
querendo e não podendo mais querer,
porque mais do que aquilo
não se aguenta mais,
sabe como é?

Violenta, às vezes, de tão bela, a beleza é!

LUCINDA, Elisa. A fúria da beleza. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.


FLUÊNCIA

Eu fiz um livro, mas oh meu Deus,
não perdi a poesia.
Hoje depois da festa,
quando me levantei pra fazer café,
uma densa neblina acinzentava os pastos,
as casas, as pessoas com embrulho de pão.
O fio indesmanchável da vida tecia seu curso.
Persistindo, a necessidade dos relógios,
dos descongestionantes nasais.
Meu livro sobre a mesa contraponteava exato
com os pardais, os urinóis pela metade,
o antigo e intenso desejar de um verso.
O relógio bateu sem assustar os farelos sobre a mesa.
Como antes, graças a Deus.

PRADO, Adélia. O coração disparado. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.


FELICIDADE

A doce tarde morre. E tão mansa
Ela esmorece,
Tão lentamente no céu de prece,
Que assim parece, toda repouso,
Como um suspiro de extinto gozo
De uma profunda, longa esperança
Que, enfim cumprida, morre, descansa...

E enquanto a mansa tarde agoniza,
Por entre a névoa fria do mar
Toda a minh’alma foge na brisa:
Tenho vontade de me matar!
Oh, ter vontade de me matar...
Bem sei é cousa que não se diz.
Que mais a vida me pode dar?
Sou tão feliz!

- Vem, noite mansa...

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.


PÁTIO

Com a tarde
Cansaram-se as duas ou três cores do pátio.
A grande franqueza da lua cheia
Já não entusiasma o seu habitual firmamento.
Hoje que o céu está frisado,
Dirá a crendice que morreu um anjinho.
Pátio, céu canalizado.
O pátio é a janela
Por onde Deus olha as almas.
O pátio é o declive
Por onde se derrama o céu na casa.
Serena
A eternidade espera na encruzilhada das estrelas.
Lindo é viver na amizade obscura
De um saguão, de uma aba de telhado e de uma cisterna.

BORGES, Jorge Luís Borges
(Trad.: Manuel Bandeira. In: BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007)

APROXIMAÇÕES


Clair de lune, chiaro de luna, claro de luna... mas os franceses, os italianos e os espanhóis saberão mesmo o que seja o luar, que nós bebemos de um trago numa palavra só?

QUINTANA, Mario. Caderno H. 2 ed. São Paulo: Globo, 2006.


TARDE DE DOMINGO

Tarde de domingo.
A vida escorrendo sob minha janela;
Rio de águas barrentas, preguiçoso.
Sei que ele se move porque, na parede,
Minha mãe tem um sorriso de moça.
A Morte vestiu o Movimento
E passeia fingindo ser a Vida
Nas ruas do mundo que eu vejo todo dia.
Mas, para mim, ela está desnuda.
É por isso que estou triste, e por isso quando
Pedaços das mortes de outras vidas caem
- Cinzas fugidas da Fogueira –
Na minha vida,
Tenho vontade de me derramar sobre o mundo
Como um copo que se derrama sobre a toalha...
                                                                              
 Rio, 1947.
FÉLIX, Moacyr. Singular plural. Rio de Janeiro: Record, 1998.


(...) Ai, Viramundo de minha vida, que vira Minas pelo avesso sem revelar aos meus olhos o seu mais impenetrável mistério. Ai, Minas de minha alma, alma de meu orgulho, orgulho de minha loucura, acendei uma luz no meu espírito, iluminai os desvãos do meu entendimento e mostrai-me onde se esconde esse vagabundo maravilhoso, esse meu irmão desvairado que no fundo vem a ser o melhor da minha razão de existir. Foi ele, esse iluminado de olhos cintilantes e cabelos desgrenhados que um dia saltou dentro de mim e gritou basta! num momento em que meu ser civilizado, bem penteado, bem vestido e ponderado dizia sim a uma injustiça. (...) Foi ele quem sofreu quando jovem a emoção de um desencanto, e chorou quando menino a perda de um brinquedo, debatendo-se na camisa-de-força com que tolhiam o seu protesto. Este ser engessado, contido, subjugado pela ordem iníqua dos racionais é o verdadeiro fulcro da minha verdadeira natureza, o cerne da minha condição de homem, herói e pobre-diabo, pária, negro, judeu, índio, cigano, santo, poeta, mendigo e débil mental, Viramundo! que um dia há de rebelar-se dentro de mim, enfim liberto, poderoso na sua fragilidade, terrível na pureza da sua loucura.
(...)
               SABINO, Fernando. O grande mentecapto. 46. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995.


Em Cachoeiro

Chego à janela de minha casa e vejo que umas coisas mudaram. Ainda está ali a longa casa das Martins, a casa surpreendente de Dona Branquinha. Relembro os bigodes do coronel, e as moças que estavam sempre brigando porque nossa bola batia nas vidraças. Jogávamos descalços nas ruas de pedras irregulares e tínhamos os dedos e unhas dos pés escalavrados e fortes. Vista de fora, aquela casa podia parecer quente; mas ainda sinto na planta dos pés o frio bom de ladrilhos da ampla sala toda aberta para a sombra doce do pomar de romãs e carambolas; atrás do pomar o rio chorando. Ali está ainda a casa de meus tios onde antes moraram os Leões e os Medeiros. Agora até meu tio morreu, e no lugar do pé de cajá-manga há uma mangueira; e um renque de acácias espanholas, amarelas e vermelhas, corre sob as janelas do lado. Vão construir no terreno em frente, onde havia aquela interminável família de negros e depois os cachorros de caça do Nilo Nobre.
Estou cercado de lembranças - sombras, murmúrios, vozes da infância, preás, mandis e sanhaços; gosto de ingá na ilha do rio, fruta-pão assada com manteiga, fumegante no café da tarde, lagostins saindo das locas e passeando na areia nas tardes quentes, piaus vermelhos, lua atrás do Itabira, nomes que esquecera, aquela menina lourinha, filha de Seu Duarte, que morreu, enterro alegre de meu irmão, acho que Francisquinho, com nós todos esperando debaixo do caramanchão; e meu pai na cadeira de balanço, Zina guiando o Ford, pois passando para o matadouro, mulheres de lenço na cabeça descendo o Amarelo, vendendo ovos a um "florim" a dúzia; e escorregamos em folha de pita pelo morro abaixo até o açude... Mergulho nesse mundo misterioso e doce e passeio nele como um pequeno rei arbitrário que desconhece o tempo; ainda existe o colégio de Tia Gracinha, ainda existe o coqueiro junto da ponte do córrego; esfregamos nossos braços com urucu, e, para evitar frieira, temos sempre um barbante amarrado no tornozelo. São dezenas, centenas de lembranças graves e pueris que desfilam sem ordem, como se eu sonhasse. Entretando uma parte desse mundo perdido ainda existe e de modo tão natural e sereno que parece eterno; agora mesmo chupei um caju de 25 anos atrás.
É extraordinário que eu esteja aqui, nesta casa, nesta janela, e ao mesmo tempo é completamente natural e parece que toda minha vida fora daqui foi apenas uma excursão confusa e longa; moro aqui. Na verdade onde posso morar senão em minha casa?
(...)
        BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. 19 ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.


QUERO
Thomas Roth

Quero ver o sol atrás do muro
Quero um refúgio que seja seguro
Uma nuvem branca, sem pó nem fumaça
Quero um mundo feito sem porta, vidraça
Quero uma estrada que leve à verdade
Quero a floresta em lugar da cidade
Uma estrela pura de ar respirável
Quero um lago limpo de água potável 
Quero voar de mãos dadas com você
Ganhar o espaço em bolhas de sabão
Escorregar pelas cachoeiras
Pintar o mundo de arco-íris 
Quero rodar nas asas do girassol
Fazer cristais com gotas de orvalho
Cobrir de flores campos de aço
Beijar de leve a face da lua

Fonte (LP) : "Quero", Elis Regina, Falso Brilhante, Philips 6349159, Rio de Janeiro, 1976.

http://youtu.be/Lhr4vb94vgY


PÉTALAS
Herbert Azul / Alceu Valença

As borboletas voam sobre o meu jardim
São cores vivas, pousam sobre as onze-horas
Nas rosas claras, violetas e jasmins
Um beija-flor traindo a rosa amarela
Beijou a bela margarida infiel
Papoula e dália estão cravadas de ciúmes
E o beija-flor beijando flores a granel
Pétalas, asas amareladas
Pétalas, espinho seco, folha, flor, lagarta
Pétalas
As flores voam e voltam na outra estação
Só serei flor quando tu flores no verão

Fonte (CD): "Pétalas", Clara Becker, Pétalas, Trama VP 001-2, s/d





4 comentários:

  1. Bobos somos nós que perdemos tempo com a poesia!

    Abração, meu amigo!

    Rodrigo Davel

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    1. "Nó" Senhora, "ocê" nem imagina o tempão que perco com esse "trem" de poesia, meu amigo! Tempão arretado! Amigo, neste mundão de meu Deus, cheio de chefes e gente que só pensa em dinheiro, somos idiotas, meu caro. "Dexeispralá"! Somos bem mais felizes! Obrigado pela visita. Ah! Sophia terá de ser bobinha também, viu?

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    2. Se Deus quiser a bobice dela está já no gene!
      Meu amigo, lembra-se de uma de suas crônicas em que aborda o comportamento bárbaro em nossa vil e contemporânea sociedade? Lembra-se, também, que eu afirmei, e afirmo, que nós é que somos os bárbaros! Este escrito de Clarice e toda a sua postagem vem de encontro a isso. Somos bobos, somos bárbaros à esta sociedade, somos loucos, utópicos, somos tudo, mesmo o todos! Aliás, no seu caso, é muito comum fazer parte de apenas 1%, né?

      Abração, meu amigo e companheiro de minoria!

      Rodrigo Davel

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    3. E vamos "injetar" mais "bobice" na Sophia, amigo.
      Obrigado, Rodrigo, pelos comentários certeiros.
      Abração.

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