domingo, 5 de janeiro de 2014

VOZ ALTANEIRA



Fotos: Fábio Brito








“E A BELEZA GRAVADA PRA SEMPRE EM MIM”*
Por Fábio Brito
  Em sua crônica “Louvação”, do livro “Um pé de milho”, de 1946, nosso Rubem Braga conta-nos sobre um padeiro de Brás de Pina (RJ) autuado pela Prefeitura porque usou pão com farinha de trigo pura. Havia pouco trigo, justificavam. Então, era preciso misturá-lo. Daí a autuação aos atrevidos que insistiam em usar o trigo puro. No entanto, nosso cronista louva – e como louva! - o “padeiro do pão puro”: “Entre o falso leite, a falsa arte, a falsa crítica de arte (...), glória a ti. (...) Glória a ti, verdadeiro padeiro, último preparador da branca hóstia da verdade eterna e terrena do pão dos homens: glória a ti”.
            Porque sempre fui uma pessoa bem distante da vulgaridade e da breguice, não assisto a alguns programas de TV que são, dizem, sobre música. Que música? Não os vejo pelo simples motivo de que todos insistem em usar “trigo misturado”.  Não gosto do formato e muito menos de quem julga os candidatos. Para mim, e para qualquer pessoa com um mínimo de lucidez, quem julga tem de, no mínimo, saber fazer – e muitíssimo bem! – o que está julgando. Pior: em certos programas, os jurados são também “técnicos” dos candidatos. Jesus! Para complicar, o povo também avalia. A guiar-me pelo gosto do público do século XXI, não dá para esperar que a qualidade artística se sobreponha ao vulgar e ao medíocre. Só dá trigo misturado!
            Pois bem, fugindo às sacas e mais sacas de trigo misturado que infestam a música não só daqui, mas do mundo todo, resolvi fechar 2013 assistindo a mais um “show” da extraordinária cantora/intérprete Ithamara Koorax. Em Copacabana, num dos bares do Sofitel, acompanhada de Lulu Martin (teclados) e Jaime Aklander (baixo), nossa diva apresentou-nos, de forma bem intimista, canções de vários de seus discos e espetáculos, além de algumas ainda inéditas em sua voz: “Lígia” (Tom Jobim), aquela dos versos “Fiz um samba-canção / das mentiras de amor / que aprendi com você”; “Meditação” (Tom Jobim / Newton Mendonça); “Bim Bom” (João Gilberto); “Estate” (Bruno Martino / Bruno Brighetti / Ana Maria Moretzshon), sucesso absoluto no concerto que Ithamara apresentou, em setembro de 2012, no auditório do Ibirapuera, SP; “Up up and away” (Jemmy Webb), do aclamado “Got to be real”; “Fotografia” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), minha canção preferida do Jobim, ao lado de “Corcovado”; “Dia de verão” (Eumir Deodato), registrada pelo autor no álbum “Percepção”, de 1972; “Aviso aos navegantes [SOS solidão]” (Lulu Santos); “Ela é carioca” (Tom Jobim / Vinicius de Moraes); “Setembro (Amada)” (Ivan Lins / Gilson Peranzzetta / Vitor Martins), que sempre me leva às lágrimas; “Aos pés da cruz” (Marino Pinto / Zé da Zilda), sucesso de Orlando Silva; “Zum zum” (Fernando Lobo / Paulo Soledade), do repertório de Dalva de Oliveira e que ajuda a matar um pouco da saudade de José Roberto Bertrami, que ensinou essa canção à nossa diva e tocou com ela durante bons anos; “Lugar comum” (João Donato / Gilberto Gil); “Flor de maracujá” (João Donato / Lysias Enio)... e muitas outras.
Ithamara continua sendo aclamada – e muito! – fora daqui, principalmente. Seu fraseado jazzístico desconhece fronteiras. Na Coreia, por exemplo, onde ela vive gravando e cantando, é respeitadíssima. Este ano, por exemplo, participou – abrindo o disco – do “To the Sea”. Arrasou numa nova leitura, bem cadenciada, de “Hô bá lá lá (Hô bá-lá-lá)”, clássico do mestre João Gilberto. Contando com coprodução do talentosíssimo produtor Arnaldo DeSouteiro - outro mestre que sabe tudo de música - e as participações do lendário João Carlos Coutinho, de Flavio Goulart, Enio Santos e Cesar Machado, a faixa é um estrondo. Nossa! Foi uma peleja conseguir ouvir todo o disco. Não que ele não seja bom. É ótimo! Entretanto, a faixa “da” Ithamara é tão hipnotizante, que não conseguimos deixar de voltar a ela inúmeras vezes antes de passarmos às demais que integram o CD.
É o que sempre digo: Koorax está em ininterrupto processo de (re)criação. Já a ouvi cantando “Hô-bá-lá-lá” em diversos “shows” e no “Bim Bom – The complete João Gilberto Songbook” e, em todas as vezes, não houve qualquer indício de repetição. A faixa foi sempre uma “nova faixa”, com um frescor a toda prova. Assim, é reconfortante saber que nossa diva jamais cairá numa terrível armadilha em que já caíram – e continuam caindo - muitos artistas neste país e no mundo todo: tudo o que se repete morre. Koorax jamais se repete. Por isso mesmo, é única no cenário da música do mundo. Não tem discípulas diretas. Também, quem conseguiria tal proeza? Com seu poderoso “instrumento”, ela é insuperável! “Comete” ousadias inimagináveis, mas sem deixar de lado a afinação. Da escola de Ella Fitzgerald, Koorax é um músico. Não é à toa que, ao lado da própria Ella e de várias outras divas, como Billie Holiday, Chris Connor, Alberta Hunter, Etta Jones, Anita O’Day, Sara Vaughan e Flora Purim, por exemplo, ela faz parte da caixa “Jazz Ladies”, lançada pela Warner Jazz em 2003. Luxo para pouquíssimas intérpretes. Quer mais luxo? Além de muito elogiada pelo jornal “The New York Times”, ela é apontada, há doze anos consecutivos, como uma das melhores cantoras de jazz do mundo pela revista “Down Beat”, a “bíblia do jazz. Volto a frisar: ela é muito mais que uma cantora. Todo músico que toca com Ithamara fica apaixonado por ela. Se ainda estivéssemos nos áureos tempos da Rádio Nacional, ela seria, com certeza, a preferida dos músicos, como ‘o’ foi Zezé Gonzaga. Pois é, se jamais teremos uma nova Elis Regina, uma nova Elizeth Cardoso, uma nova Zezé Gonzaga, também não teremos uma nova Ithamara Koorax.
Nossa diva brilha altíssimo num tempo e num mundo que incensam “cantantes” desprovidas de tudo, principalmente de voz, ritmo e musicalidade. Na música (e noutras artes também), de insossas e inexpressivas carinhas bonitinhas, estamos bem cansados. Na música, então, como têm chegado essas carinhas! Elas vêm aos borbotões. Invadem mesmo! Ithamara, no entanto, é nossa plena certeza – é nossa prova cabal - de que há salvação para a verdadeira música. Já em seu primeiro disco, lançado em 1993, o “It(h)amara Koorax ao vivo”, com Maurício Carrilho e Paulo Malaguti, encontramos, no encarte, depoimentos importantíssimos, que não posso deixar de transcrever e que atestam o talento extraordinário de nossa estrela maior. Eis o de Antonio Houaiss, nosso eterno filólogo: “Num mundo desvairado, à cata – em tudo – de diferenças, originalidades, singularidades, unicidades, esplendores, amavios, doçuras, bravuras, não vejo como não ver tudo isso – e, mais, graça, equilíbrio, harmonia, garra, tempero, ressonâncias da alma, emoções do corpo e da mente, fulgurações de canto com acalantos e hinos – não vejo como não ver tudo isso ao ouvir It(h)amara Koorax, que Deus abençoou...”; o de Hermínio Bello de Carvalho: “It(h)amara tem uma extrema musicalidade. Sua voz é belíssima e a afinação, perfeita. O que mais me encanta é que, nela, a música é a essência de tudo. Essa paixão pela música sempre resulta num caminho vitorioso”; o de Aldir Blanc: “Fico feliz em saber que a carreira de It(h)amara está dando certo. A interpretação dela tem uma força dramática, algo que estava faltando nas cantoras. It(h)amara é diferente e desenvolve um trabalho muito pessoal, sério e elaborado”; o de Sérgio Cabral: “Ouvi It(h)amara pela primeira vez num show no Mistura Up. Fiquei deslumbrado com sua voz, a postura no palco, o repertório e a interpretação. Além de afinada, ela sabe interpretar. Entende a letra e faz as inflexões certas. É um dos grandes nomes da música popular. Diria que ela é um casamento de Elis Regina com a Divina Elizeth”.
Dizer mais o quê? Parafraseando Braga, este pretenso cronista aqui “ainda não sabe dizer uma ‘porção de coisas’”. E não sabe mesmo! No entanto, tenho a certeza de que escrever sobre Koorax é algo que me faz crescer “dentro de mim mesmo”. É um prazer indescritível escrever sobre alguém que sempre me comove e que é considerada uma das melhores vozes de todos os tempos. Em tudo o que Ithamara canta, constata-se uma ruptura avassaladora não só em termos de interpretação, diferente de tudo o que já vimos, mas também no que diz respeito à harmonia, à melodia e ao ritmo. Um espetáculo! A letra da excelente canção “Cantoria”, parceria de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho, traduz bem o ofício de Ithamara: “Cantar é uma luz / um enfunar de velas / é compreender a canção como um / navio / que vai zarpando, ignorando mapas / tocando as águas que nem harpas / por conta do destino (...)”. O canto sempre altaneiro de nossa diva nos leva a “mares nunca dantes navegados”.  Que prazer navegar com ela!
Da canção “Claude et Maurice”, de Joyce Moreno ( CD “Tudo”, Biscoito Fino, 2013).

SETEMBRO (AMADA)
Ivan Lins / Vitor Martins / Gilson  Peranzetta

Vai, amada, mesmo a vida sendo perigosa,
mesmo que não
seja um mar de rosas,
nunca queira desistir de um
grande amor.
Há de ser um dia amada,
apesar das armas poderosas,
apesar das forças engenhosas,
que desejam ver o fim de
um grande amor,
Há de ser ainda amada,
apesar de tantos
preconceitos,
apesar de tudo que é feito,
pra minar a
paz de um grande amor.
Há de ser a mais amada
há de estar acima dos desejos
Há de estar ao lado de si mesma
pronta para viver um
grande amor.
Há de ser mais tão amada
mesmo a vida sendo perigosa,
mesmo que não seja um mar de rosas,
estará tão plena do
seu grande amor
e estará tão carinhosa tão serena e generosa linda



LUGAR COMUM
(João Donato / Gilberto Gil)

Beira do mar
Lugar comum
Começo do caminhar
Pra beira de outro lugar

Beira do mar
Todo mar é um
Começo do caminhar
Pra dentro do fundo azul

A água bateu
O vento soprou
O fogo do sol
O sal do senhor

Tudo isso vem
Tudo isso vai
Pro mesmo lugar
De onde tudo sai


FLOR DE MARACUJÁ
(João Donato / Lysias Enio)

Lá, no avarandado
Na luz do meio-dia
Um segredo nos teus olhos
Tanta coisa me dizia
O cabelo solto ao vento
O teu jeito de olhar
E no teu corpo moreno
A flor de maracujá
Dia de sol, cheiro de flor
Gosto do mar, amor
A tua cor, luz do luar
Vento que vem do mar
Roda, gira, vira o vento
Meu amor vai te levar
Bem pra lá do fim do mundo
Onde eu vou te chamar

In: Songbook João Donato. Lumiar Discos, LD45-06/99, 95/99.

MEDITAÇÃO
(Tom Jobim / Newton Mendonça)

Quem acreditou
No amor, no sorriso, na flor
Então sonhou, sonhou...
E perdeu a paz
O amor, o sorriso e a flor
Se transformam depressa demais

Quem, no coração
Abrigou a tristeza de ver
Tudo isto se perder
E, na solidão
Procurou um caminho e seguiu
Já descrente de um dia feliz

Quem chorou, chorou
E tanto que seu pranto já secou

Quem depois voltou
Ao amor, ao sorriso e à flor
Então tudo encontrou
Pois, a própria dor
Revelou o caminho do amor
E a tristeza acabou

In: http://www.jobim.com.br/cgi-bin/clubedotom/musicas3.cgi


FOTOGRAFIA
(Tom Jobim)

Eu, você, nós dois
Aqui neste terraço à beira-mar
O sol já vai caindo
E o seu olhar
Parece acompanhar a cor do mar
Você tem que ir embora
A tarde cai
Em cores se desfaz
Escureceu
O sol caiu no mar
E a primeira luz lá embaixo se acendeu
Você e eu

Eu, você, nós dois
Sozinhos neste bar à meia-luz
E uma grande lua saiu do mar
Parece que este bar
Já vai fechar
E há sempre uma canção para contar
Aquela velha história de um desejo
Que todas as canções têm pra contar
E veio aquele beijo
Aquele beijo
Aquele beijo



CANTORIA
(Paulinho da Viola / Hermínio Bello de Carvalho)

Amar é um dom
há que saber o tom
E entoar bem certo a melodia:
O povo enxerga a luz de uma voz sincera
E canta com ela
em sintonia.
Cantar é uma luz
um enfunar de velas
É compreender a canção como um
navio
Que vai zarpando, ignorando mapas
Tocando as águas que nem harpas
Por conta do destino

(...)
In: Cantoria. Hermínio Bello de Carvalho. Biscoito Fino, BF 615, 1995.


8 comentários:

  1. Prezado Fábio...obrigadíssimo pela emoção causada por este brilhante texto/homenagem à maior cantora do mundo.Na verdade, seu texto é koraxiano, sim! e irretocável.Mais não digo para não macular suas bem traçadíssimas linhas com as quais concordo pletoramente.Também estive no extraordinário show e disse para ela -no intervalo- que fiz questão de começar o ano vendo e ouvindo o que há de melhor em termos musicais: SOMENTE A ITHAMARAVILHOSA!
    Marino Monti

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    1. Obrigadíssimo, Marino, pelas palavras. Ithamara é sempre "Ithamaravilhosa". Ah, vou acertar o nome do bar. Valeu! Abração.

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  2. Sempre ela... Ithamara traz o que há de melhor na música!!! O Opus... está perfeito!!!

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    1. Muito obrigado, Fernando. Estou viciado em "Opus". Abração.

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  3. Fábio, meu caro...em que pese o fato de eu nunca ter experimentado ópio rs, posso garantir, intuitivamente, que o OPUS koraxiano dá de zilhões a zero, "d'accord"???
    No mínimo é mais balsâmico, mais terapêutico, e/ou saudável em todos e para todos os sentidos, né?Estou adoraaaaaaando a utilização (outro leitor do "feissibuque" rs dela usou tb)da minha invencionice: Ithamaravilha ou Ithamaravilhosa.
    Quanto ao nome do bar onde ela se apresenta magnificamente, sugiro que faça a correção, posto que existem três bares no Sofitel..Abraço forte "procê".
    Marino Monti

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    1. Obrigado, Marino. O "Opus" "kooraxiano", como você disse, é "zil" vezes melhor que qualquer "ópio". Também adorei seus neologismos, o "kooraxiano" e o "Ithamaravilhosa". Quando ao nome do bar, vou mexer. Abração.

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  4. " Porque sempre fui uma pessoa bem distante da vulgaridade e da breguice, não assisto a alguns programas de TV que são, dizem, sobre música. Que música? Não os vejo pelo simples motivo de que todos insistem em usar “trigo misturado” "... adorei! rsrsrsrsr... então, estão vendendo gato por lebre por aí poeta? rsrsrsrsrs... que voz! deslumbre puro! Abraço!!! Hércules Campos

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  5. Pois é, Hércules, de uns tempos para cá, o que tenho visto "de gato em lugar de lebre" é algo assustador. E olhe que esses "gatos" vendem horrores e são idolatrados. Que estranho, não acha? Na origem de tudo, o empobrecimento cultural de que você falou ao comentar o texto sobre o Braga. Se derem biscoitos finos à massa, tenho certeza de que ela gostará. Pois é, que voz a da Ithamara, que é muito mais conhecida fora daqui. Você precisa conhecê-la, amigo. Vamos ao próximo 'show'? Beijos.

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