domingo, 18 de janeiro de 2015

FEBRE



SAMBA DO BLACKBERRY
Rafael Rocha – Alberto Continentino

De manhã
Quando ainda penso em acordar
Ela já está a dedilhar
Mexendo feliz no seu novo “brinquedo”

Eu não vou nem me comparar
Não tenho como disputar
Pois não mando e-mail, só mando “desejo”

Essa é minha situação
Eu quero sua atenção
Eu já fiz, imagino, até onde eu “podia”

Eu penso até em desistir
O que eu posso fazer é ir
Não possuo tamanha “tecnologia”

Ela me trocara por um blackberry
Ela me trocara por um blackberry
Ela me trocara por um blackberry

Blackberry, blackberry, blackberry

CD “Atento aos sinais”, Ney Matogrosso, Som Livre, 3246-2, 2013.


                      "O celular é um veículo excelente para o exibicionismo."
                                Braulio Tavares (A Gazeta, Vitória, 24 de janeiro de 2015, "errei na mosca!")


                      "É que Narciso acha feio o que não é espelho"
               (Sampa, Caetano Veloso)

FEBRE
Por Fábio Brito
No “Facebook”, dias atrás, eu conversava com um amigo sobre “ene” assuntos. Um deles era o “zap zap”. De repente, ele me diz que, na escola em que trabalha, há professor que interrompe a aula para conferir mensagem do “zap zap”. “Num quirdito”, eu lhe disse! No instante em que ele me contou isso, nasceu a ideia deste texto. Pois é, ele havia acabado de contribuir para o início de um texto sobre o tal “zap zap” e a febre que está endoidecendo muita gente por aí.
Outro amigo contou-me o seguinte: ele trabalha em uma repartição pública, aonde as pessoas vão à procura de algum serviço. Ou seja, querem ser atendidas. Acompanhe meu raciocínio: precisam de alguém que lhes preste algum serviço. Pois bem, quando chegam lá, esse meu amigo, o funcionário, tem de ficar pedindo às pessoas (às criaturas) que prestem atenção no que ele está dizendo ou perguntando, exatamente porque elas não deixam o “zz” um segundo sequer. Nem no momento do atendimento! (muitas, inclusive, não veem quando sua senha é chamada... e ainda reclamam quando são comunicadas de que terão de pegar outra). Não é engraçado? A criatura precisa de um serviço... e a pessoa que o prestará tem de ficar implorando atenção! Maluquice, gente! Maluquice das grandes. Ah, e não basta usar avisos de advertência, como: “Por favor, desliguem o celular no momento do atendimento”. Bobagem! Ninguém lê os tais avisos... o povo anda tão fissurado, que só enxerga o aparelhinho na palma da mão. O “aparelhinho dos infernos”, como sempre digo.   
Eu já disse noutros textos (é... minha birra com o celular e seus “parentes” já foi matéria-prima de diversos textos) que a maioria das pessoas já não está mais deslumbrada com a tecnologia. O deslumbre – que corresponde à fase do encantamento - foi só a primeira etapa. Se ficassem só no deslumbre, tudo bem. O problema é exatamente quando saem desse período e adentram o caminho da loucura, que parece ser sem volta. A solução, como eu já disse a algumas pessoas extremamente viciadas, é a internação em alguma clínica para recuperar drogados virtuais. Quando usada sem controle, tecnologia transforma-se numa droga poderosíssima. Pior que maconha, cocaína e afins. Quer provas? Ao voltar, dia desses, de um laboratório, às seis e quinze e em pleno horário de verão (ou seja, às cinco e quinze!), eis que encontro duas criaturas com os olhos fixos na telinha. Às seis e quinze da manhã?! Tive o trabalho de conferir as horas. Será que dormiram?, perguntei a meus botões. Não devem ter dormido! Devem ter ficado, durante a noite, conferindo mensagens. É ou não é loucura?
Vamos a mais um exemplo? Um amigo de uma cidade próxima anda com três celulares. Num hotel em que ficamos hospedados recentemente, pude conferir e fotografar essa aberração. São três celulares que ele carrega! Fiz-lhe, algumas vezes, esta fatídica pergunta: “ – Por que três celulares, fulano?” A resposta é sempre a mesma: “ – Não uso os três. Ando com eles apenas por causa das agendas. Estou tentando concentrar as três em um dos aparelhos, mas está difícil.” Nossa, que agendas imensas, pensei. Já faz um tempão que ele vem tentando fazer essa transferência de agendas. Claro que, com vergonha de assumir o vício, ele veio com essa história das agendas. Não colou! Assumir o vício, como dizem, é o primeiro passo para a cura. Meu amigo, coitado, parece que vai levar um bom tempo ainda para ‘se’ desintoxicar, se é que ele quer ficar livre do vício. Como estará, por exemplo, a leitura desse meu amigo? Ih! Nem ouso perguntar. Claro que não tem sobrado tempo para ler, para ouvir música... Com três celulares ocupando todo o tempo, é impossível.  
Será que a raiz do vício não estaria na solidão? Será que essa necessidade de “conversar” com alguém o tempo todo não teria suas raízes na bendita e antiga solidão? Pode até parecer filosofia chinfrim, barata, mas é nessa explicação que muitos pensam. Além de desconfiar da solidão como sendo a raiz do vício “tecnológico”, desconfio também do seguinte: somente agora, muitas pessoas descobriram a escrita. Não é fantástico?! Oh! Por isso, o fascínio em relação à telinha que mostra um desfile de letras e palavras que, até então, elas não conheciam. Pois é, ironias à parte, será que a turma do “zz” está escrevendo melhor? Deveria! Não fica o tempo todo digitando? Entretanto, não é bem assim “que a bandinha toca”. Já vi pessoas que “vivem no zap zap”, mas que, noutras situações de comunicação, simplesmente não se comunicam. Se têm de escrever um texto, mesmo que mínimo, tropeçam nas próprias pernas e conseguem a proeza de produzir um “não texto”. Volto a perguntar: - Estão escrevendo melhor? É... estou tendo uma ligeira desconficança: essa geração "zz" deve sofrer de "acatalepsia", que, segundo o Dicionário Houaiss (edição da Objetiva de 2009), significa, entre outras acepções, "deficiência (...) caracterizada pela incapacidade de compreender".  Muitos não compreendem nada, principalmente os textos escritos. E não estou fazendo referências a textos longos e difíceis, mas a pequenos 'escritos', com vocabulário simples. É ou não é um cenário assustador? 
Pensando noutros desdobramentos do tal vício “tecnológico”, como deve estar, na era “zz”, a vida nas empresas, hein?! Deve sair uma ordem de serviço atrás da outra proibindo o uso de celular e afins durante o expediente. Caso contrário, ninguém trabalha. Não faz muito tempo, li matéria jornalística sobre o aumento do número de demissões em virtude do uso inadequado do celular (desculpe-me do pleonasmo “uso inadequado de celular”). É óbvio que as demissões são inevitáveis! Porque é vício, as pessoas não se controlam. Já perdi a conta do número de vezes em que tive de pedir a alunos que desligassem o celular em sala de aula. Ninguém pode viver conectado durante as vinte e quatro horas em que dura um dia. E o pior é que há pessoas que ficam.
Bom, em sendo assim, sempre que alguém me pergunta se tenho “zap zap”, minha vontade primeira é fingir que não ouvi. Aos poucos, fico calmo, respiro fundo e digo que, graças a Deus, não. Não o tenho e nem o terei, porque tenho mais o que fazer na vida. Pronto! Tenho poucas certezas na vida. A de que não quero “esse troço” é uma delas. E não o quero por diversos motivos, entre os quais o barulhinho insuportável informando que há mensagens. Lembrei-me, agora, de uma declaração da cantora Nana Caymmi que, no documentário “Rio Sonata”, diz que ela não é das tecnologias. E tecnologia, não raro, está atrelada a barulho. Para ela, o silêncio é imprescindível: ela não “funciona” com barulho. Sou do mesmo time. Esse mundo das tecnologias é barulhento ao extremo. O barulhinho a que me referi, o do "zz", é algo verdadeiramente irritante. Não o suporto! Por que não põem o aparelho no modo silencioso? Porque ninguém vai saber, ‘né’? Ninguém vai ver que a criatura está no “zz”. Ai, ai, ai...   
Um argumento que já usaram para tentar ‘me’ convencer é o de que, por meio do “zap zap”, as pessoas podem discutir sobre diversos assuntos. Ah, é? Ok. Querem discutir algum assunto comigo? Vamos marcar um encontro. Que tal em minha casa? Adoro receber amigos! Com um bom vinho, um papo agradável, uma boa música e pessoas inteligentes, nem vejo o tempo passar. Atravesso a madrugada. Fico horas e horas numa boa conversa. É assim que gosto de conversar. Ah, e tenho lá minhas dúvidas acerca da consistência das conversas que rolam pelo “zz”. São assuntos interessantes mesmo? Mostrem-me!   
Nesse inferno tecnológico em que vivemos, tenho procurado manter o controle, sabia? De uns tempos “pra” cá, já estou olhando com antipatia para todas as pessoas que têm um aparelhinho na mão. Às vezes, fuzilo-as com o olhar. É raiva mesmo!, o que não é bom para a saúde. Enquanto não realizo meu sonho de consumo e fujo para o mato, ficando livre, enfim, da loucura da cidade e de seus nem sempre felizes avanços tecnológicos, tenho de manter a calma. Tenho de manter “a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”¹, como ensinou Walter Franco.
Enquanto minha fase “eremita” não chega, vou deixando minhas alfinetadas pelo caminho dos que insistem em certas idiotices tecnológicas: as pessoas mais inteligentes e interessantes que conheço não têm “zap zap”. Muitas não têm nem celular. Se eu não estiver enganado, Caetano Veloso também já declarou que não tem esse aparelhinho inconveniente. Tenho uma amiga que não usa a NET (não tem nem “e-mail”) e tenho outro amigo que, dias atrás, confessou-me que só tem telefone fixo. Se, porventura, alguém quiser encontrá-lo, terá de ser por meio do telefone fixo, que tem secretária eletrônica. Achei o máximo. Eles, saudáveis, estão bem longe das pessoas que estão ardendo de tanta febre. A febre do “zap zap”.
¹ FRANCO, Walter. Coração tranquilo.

INCOMUNICABILIDADE
Ruy Castro

No cinema dos anos 50/60, era assim: Jeanne Moreau, em “Ascensor para o Cadafalso", "Os Amantes" e "A Noite"; Monica Vitti, em "A Aventura" e "O Eclipse"; Anna Karina, em "Uma Mulher É uma Mulher" e "Viver a Vida"; Anouk Aimeé, em "Lola"; Audrey Hepburn, em "Bonequinha de Luxo"; e até a nossa Leila Diniz, em "Todas as Mulheres do Mundo", todas tinham de ser boas de pernas -literalmente.
Os diretores desses filmes as faziam caminhar quilômetros pelas ruas, sozinhas, em silêncio, cenho franzido, como se buscassem uma comunicação impossível com seus pares, os quais também deviam estar zanzando feito zumbis pela cidade. Era a famosa incomunicabilidade -uma doença do progresso, da industrialização, do amesquinhamento dos valores. Quanto mais próximas, menos as pessoas tinham o que dizer. Os casais viviam "em cheque" ou "em situação", como se dizia.
Seja o que for que atormentasse aqueles personagens, só podia ser discutido a dois, ao vivo, entre longas pausas. Não se concebia que, em "A Noite", de Antonioni, Moreau entrasse num telefone público, metesse uma ficha e derramasse seus problemas existenciais para Marcello Mastroianni. As pessoas tinham de viver o seu inferno até o fim, em preto e branco, sem esperança de redenção.
Hoje, com todo esse arsenal de meios - celulares, smartphones, Androides, Twitters, Facebooks, Instagrams, SMSs e outros que nem imagino -, não se toca mais em incomunicabilidade. A própria palavra perdeu o sentido.
Mas, pelo que vejo de homens e mulheres de expressão carregada, digitando incansavelmente, na rua, na fila do banco, nas salas de espera, nos saguões e até nos restaurantes - o que essas pessoas tanto falam umas com as outras? -, desconfio que a busca da comunicação seja a mesma. A fartura de meios não eliminou a solidão.
CASTRO, Ruy. Morrer de prazer: crônicas da vida por um fio. Rio de Janeiro, Foz, 2013.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/12556-incomunicabilidade.shtml



VIDA VIRTUAL
Ruy Castro

Pesquisa divulgada há pouco revelou que, no mês de julho, o internauta brasileiro passou 23 horas e 30 minutos navegando na internet. Essa marca é uma hora e três minutos maior que a de junho, que, por sua vez, era quase uma hora maior que a de maio, e assim por diante. Ou seja, de 30 em 30 dias, o brasileiro fica mais tempo ligado à rede.
Significa também que, a cada 30 dias, o brasileiro já está passando quase um dia inteiro com os olhos na telinha, os dedos no mouse ou no teclado, as pernas criando varizes, a coluna indo para o beleléu e o cérebro mais na virtual que na real.
Apenas por comparação, as 23 horas e 30 minutos mensais do brasileiro deixam longe as 19 horas e 52 minutos do americano, as 18 horas e 41 minutos do japonês e as 18 horas e sete minutos do alemão. Das duas, uma: ou os americanos, japoneses e alemães têm mais o que fazer, ou nossa apaixonada adesão à internet fará com que, em pouco tempo, os superemos em tecnologia, pesquisa, jornalismo, download e compras, que compõem a internet para adultos. E aí, sim, vamos ver quem tem mais garrafa vazia para vender.
Enquanto esse dia não chega, já podemos pelo menos observar algumas conquistas da internet entre nós. Segundo outra pesquisa, por causa da internet o jovem brasileiro tem deixado de praticar esportes, dormir, ler livros, sair com os amigos, ir ao cinema ou ao teatro e estudar. E, com certeza, está deixando também de praticar outros itens não contemplados pela pesquisa, como namorar, ir à praia ou ao futebol, visitar a avó, conversar fiado ao telefone e flanar pelas ruas chutando tampinhas.
Admito que muitas dessas atividades possam ser substituídas com vantagem pelas horas que o brasileiro passa na internet. Mas flanar chutando tampinhas, não.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0509200705.htm (São Paulo, quarta-feira, 05 de setembro de 2007)


EVAPORAÇÃO

O celular é um instrumento poderoso... os modelos que possibilitam acesso à internet e à fotografia, fabulosa perversa construção, (existem ainda os sem essa chance?) determinam o fim da atenção ao cotidiano...
todo mundo - rico ou pobre - está conectado a si mesmo, na distração do outro (entandam outros) que desaparece... o outro virou contato... isolamento triste e silencioso... divulgar a todos o que se está fazendo a qualquer hora do dia... os detalhes...
registrar os momentos e compartilhar a felicidade momentânea (ou a infelicidade de qualquer outra pessoa) é o que determina a consolidação de uma massificação dos momentos... humano, esse demasiado, esgota (como faz com tudo o que vê pela frente) qualquer chance de diálogo ou de percepção da realidade...
quem vai se preocupar se é uma criança que serve a mesa em praias paradisíacas da bahia? o olhar dispara o gatilho da foto em direção ao prazer da beleza... aí, joga-se tudo nas redes sociais e cria-se a expectativa das curtidas... de modo que o pensar limita-se em o que se pode fazer para ganhar maior visibilidade...
internet e celular com câmera fotográfica, com pau de selfie falicamente imposto frente ao rosto, parecem gerar delírios maliciosos... adicionados ao refluxo da cultura da celebridade que adentrou o século 21, transformaram humano, esse demasiado, no centro das atenções dele mesmo...
não há espaço suficiente na memória para pensar o mundo... vivencia-se o momento sem o prazer do momento, porque há uma velocidade maior que a do prazer, uma velocidade instituída pela necessidade de satisfação no que se pode (ou não, mas se mostra assim mesmo) mostrar a todos...
toda e qualquer discussão em torno do coletivo pessoas ganhou, nos últimos anos, um adversário imbatível: o eu mesmo... as comoções ou ações nas redes sociais propagam ódios unilaterais por não haver tempo para a reflexão... com o celular nas mãos, as pessoas curtem sem ler.. a ideia é fazer parte do grande circo...
o que escrevo é sempre uma olhadela que dou na vida que se movimenta ao meu redor... essa vida tão desumanizada... as pessoas andando pelas ruas falando ao celular com fone de ouvido ou casais sentados em bares a manipular cada qual seu interior virtual... toda essa cena de zumbis...
o custo desse comportamento, embora já apareça, ficará para pensadores do futuro analisarem... mesmo assim, não é difícil arriscar que há uma tendência forte para que a intolerância construa guerras diárias do eu contra tudo o que se coloca na frente da vontade de falar com todo mundo, logo, com ninguém e de aparecer na foto...
é a configuração do absurdo... a mecanização da comunicação... porque com divulgação de todos os momentos para tantas pessoas, pode-se avançar por sobre a modernidade líquida e pensar em uma sociedade que se dissolve das particularidades... e se dissolve...
a ideia de indivíduo compartilhado formula um código diferente... que a geração de jovens absorve sem o deslumbramento dos acima de 30... divulgar-se é o resultado de uma socieade que se alimentou de entretenimento... a maior fonte de informação veiculada e acessada no século 21 está diretamente relacionada à vida das pessoas...
se antes eram os artistas, hoje é o cidadão comum que se coloca como notícia... qualquer fato, por mais imbecil que pareça, ganha aspecto de notícia... e é aí que acredito haver uma movimentação avançando por sobre a modernidade líquida de que fala bauman...
a ideia da sociedade que, sem solidez, líquida se tornou, gera um componente novo que está amarrado ao que se desenrola dentro do indivíduo... naquele papo que já levamos aqui de que freud errou na mosca e já mostrava que a particularidade do indivíduo não o possibilita comprometer-se com a ideia de sociedade... pois é... agora o líquido evapora-se...
de modo que há uma nova relação eu-mundo... o mundo figura como cenário de fundo para os inúmeros eus... o celular e sua indumentária comandam o cotidiano... não fossem os inúmeros carros que afrontam a movimentação coletiva... seria a cidade de um silêncio ensurdecedor a digitar e a falar particularmente... não há pássaros... só há o silenciosos mundo da evaporação humana...

MANGA, Lúcio.
Fonte: A Gazeta (caderno Pensar), Vitória, 24 de janeiro de 2015.


MÁ EDUCAÇÃO E CELULAR
Walcyr Carrasco

Uma conhecida convidou os quatro netos pré-adolescentes para lanchar. Queria passar um tempo com eles, como fazem as avós. Sentaram-se numa lanchonete. Pediram sanduíches e refrigerantes. Daí, os quatro sacaram os celulares. Ficaram todo o tempo trocando mensagens com amigos, rindo e se divertindo. Com cara de mamão murcho, a avó esperou alguma oportunidade de bater papo. Não houve. Agora, ela já prometeu:

– Desisti. Não saio mais com meus netos.

Cada vez mais as pessoas “abandonam” os outros para viver num mundo de relações via celular. Às vezes de maneira assustadora. Vou muito para o Rio de Janeiro, sem carro. No meu trajeto, costumo escolher a Avenida Niemeyer, cuja vista é linda. Mas é cheia de curvas. Durante o trajeto, preciso me acalmar e recitar o mantra “om... ommmm” quando os motoristas atendem seus celulares. Dá medo, com o abismo pela frente! A falta de educação é dos dois lados. Quem liga, se não é atendido, continua tocando sem parar. O motorista muitas vezes atende e diz que não dá para falar. A pessoa do outro lado nem liga e continua o assunto. Alguns atores que eu conheço estão detonando suas carreiras. Ficam no WhatsApp até o momento de gravar. Atuar exige concentração, “entrar” no personagem. Se a pessoa “conversa” por mensagens até o momento exato de interpretar, fará pior. Está com a cabeça em outro lugar.

A praga atingiu até o setor de serviços. Dia destes estava no caixa de uma livraria. A mocinha passava meus livros e revistas com displicência enquanto falava ao celular. De repente, se confundiu. Teve de passar tudo de novo. Desligou. Voltou ao trabalho, mas aí o celular tocou e... a fila atrás de mim só aumentava. O máximo que ouvi da parte dela foi:

– Desculpa.

Tocou de novo, atendeu, tentando colocar meus livros numa sacolinha com uma única mão.

Em certos almoços, mesmo de negócios, é impossível tratar do assunto que importa. O interlocutor escolhe o prato com a orelha no celular. Quando desliga, abre para verificar e-mails. Responde. Pacientemente espero. Iniciamos o papo que motivou o almoço. O celular toca novamente. Dá vontade de levantar da mesa e ir embora. Não posso, seria falta de educação. Mas não é pior ficar como espectador enquanto a pessoa resolve suas coisas pelo celular, sem dar continuidade na conversa?

Também adoro um celular. Tenho amigos no exterior e trocamos mensagens diariamente. Mas faço isso quando estou sozinho. Há também soluções rápidas, pessoais e profissionais onde ele ajuda e muito! Mas hummm.... do ponto de vista profissional, nem sei se é tão bom assim. Celular não tem hora. Invade sem pedir permissão. É uma decisão difícil não atender o telefonema de um chefe ou de alguém importante no trabalho. Ou seja, a gente trabalha 24 horas direto! Há também quem chame durante uma reunião de trabalho importante. E, como contei no caso do carro, continuam chamando mesmo sem ser atendidas, até tornar o papo profissional impossível. Finalmente, ouço.

– Dá licença, vou atender e encerrar logo esse assunto.

Faço cara de paisagem enquanto a pessoa discute algo que nada tem a ver comigo. Penso: seria melhor, muito melhor, não ter marcado reunião nenhuma. Mais fácil seria, sim, me impor através do celular, porque através dele entro na sala de alguém quando quero, sem marcar hora. O aparelhinho invade até situações íntimas. Se fosse só comigo, estaria traumatizado por me sentir pouco interessante. Mas sei de casos onde, entre um beijo e outro, um dos parceiros atende o celular. Para tudo, sai do clima. Quando termina a ligação, é preciso de um tempo para retomar. Mas aí, pode tocar novamente e... enfim, até nos momentos mais eróticos, o aparelhinho atrapalha.

Ainda sou daquele tempo de ter conversas francas e profundas, de olhar nos olhos. Hoje é quase impossível aprofundar-se nos olhos de alguém. Estão fixados na tela de seu modelo de última geração. Conheço algumas raras pessoas que se recusam (ainda!) a ter celular. Cada vez mais, se rendem. A vida ficou impossível sem ele. Eu descobri uma estratégia que sempre funciona, se quero realmente falar com alguém. Convido para jantar, por exemplo. Ela saca o celular. Pego o meu e envio uma mensagem para ela mesma, em frente a mim. Não falha. Seja quem for, acha divertidíssimo. E assim continuamos até o cafezinho. Sem palavras, mas trocando incríveis mensagens pelo celular. Todo mundo acha divertidíssimo.

Fontes:
26 de janeiro de 2015|ÉPOCA|91

8 comentários:

  1. Concordo em gênero, número, grau, absoluta, irrestrita, radical e pletoramente. O texto do Lúcio Manga, também, está excelente, com recado bem dadíssimo, "né"? Segundo a colunista Mônica Bérgamo, os ilustríssimos Caetano Veloso, Luis Fernando Veríssimo, Lima Duarte, Bia Lessa, etc., não usam esta traquitana rsrs tecnológica chamada de celular que virou , mesmo, além de praticamente um apêndice, um vício, uma pandemia. Você olha para os lados e "tá" todo mundo teclando. Toda hora ouvem-se aqueles barulhinhos chatos de mensagens chegando. Ninguém conversa mais ao vivo, só pelo celular. Sei que Chico Buarque tem sérias restrições quanto ao uso, assim como os falecidos João Ubaldo e o genial Rubem Alves. Não sou celebridade como os elencados, e orgulho-me da minha "ninguendade" rsrs, mas também não possuo, ainda, pasme-se!...e espero jamais dele necessitar.

    O mais engraçado é que a pessoa está sentada na sua frente e teclando com outra a quilômetros de distância. E quando ela se encontra pessoalmente com esta outra, não conversa com ela e sim com você, que agora é quem está longe.Dizem que o WhatsApp é a morte do diálogo, literalmente o fim de papo nestes tempos líquidos, vazios, medíocres/alienados e que tais.

    Quanto mais conectado, mais solitário se está, provado está, pelo menos para os raríssimos mais lúcidos como você, digamos assim. Este comportamento patético, fruto da má-educação, tornou-se insuportável ao ponto de pessoas se reunirem, e cada uma com seu badulaque ou tranqueira eletrônica, mal se falando.Chega a ser caricato/bizarro/deprimente.Até namorados namoram mais o celular, credo! Já vi casais por horas sem trocar uma palavra, mas teclando sem parar.Cada um sabe ou deveria saber de si. Não admito em hipótese alguma que um pessoa que esteja falando comigo fique teclando ou vendo mensagens. Simplesmente, se acontecesse (escolho bem meus educados/especiais interlocutores rsrs), teria a finesse de dizer a ela que conversaremos outra hora, pois respeito a necessidade que ela tem de interagir com a máquina (ainda sou de carne e osso, suponho).Nas raras vezes que telefono do meu fixo para o celular do povo ( recordando: eu ainda não possuo, vixe!) ou a bateria pifou, ou está sem crédito, ou cai na caixa postal, enfim, não sei de qual instantaneidade o povo tanto fala (e não diz) rsrs.
    Abraçaços e beijaços

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    1. Marcos, meu querido, você está certíssimo! Também não admito que alguém "fale" comigo e, ao mesmo tempo, tecle ou leia mensagens. E 'pra' lá de falta de respeito! Ah, também já vi muitos namorados namorando o celular. Que esquisitice, não? Referindo-se a essa desumanização provocada pelo uso desse aparelhinho "indigesto", o celular, você empregou expressões excelentes: trata-se de algo patético, bizarro, deprimente. Ah, os celulares nunca têm crédito. Pois é, todos têm o bendito aparelho, mas nunca há crédito... e falta às criaturas educação para usá-lo. Esse aparelhinho "dos infernos", como sempre digo, pode ser bem útil. Basta, para tanto, saber usá-lo. No mais, um beijão e, mais uma vez, obrigado pela visita luxuosa a este "blog". Em breve, conversaremos PESSOALMENTE sobre esse assunto e muitos outros.

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  2. A moda agora é Iphone!!!!
    O pior de tudo isso são as pessoas que chamam sua atenção por conta do celular e tb não desgrudam dele...

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    1. Ai, não aguento moda! Quanta idiotice esse "negócio" de seguir moda... Obrigado, Fernando, pela "visita". Beijos.

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  3. Fábio, querido, não há mais o que comentar, vocês já o fizeram sobejamente.
    Beijos

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    1. Graça, querida amiga, obrigado pela sempre honrosa visita. Ai... e ainda tenho tanto o que comentar sobre esse assunto... Beijão.

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  4. Fabio você como sempre com suas sábias alfinetadas.
    Ensino para meus filhos que 'tudo que é demais sobra"
    E infelizmente tem sobrado mesmo para os sádios de
    bom senso e educação.Valei-me Nossa Senhora da paciência!

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    1. Elenice, querida, que bom "encontrá-la" aqui no "blog". Pois é, sem alfinetadas, não sou eu... Concordo com você quanto ao que sobra e enjoa. No entanto, em relação a essas tecnologias, não sei se o povo vai enjoar, uma vez que, a cada dia, surge uma novidade. Parece que vai havendo substituição, substituição, substituição... Beijão.

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