quinta-feira, 8 de setembro de 2016

"MARAVI/ROSAMENTE" CANTANDO "CLARIDADE"


BASTA UM DIA
(Chico Buarque de Hollanda)

Pra mim
Basta um dia
Não mais que um dia
Um meio dia
Me dá
Só um dia
E eu faço desatar
A minha fantasia
Só um
Belo dia
Pois se jura, se esconjura
Se ama e se tortura
Se tritura, se atura e se cura
A dor
Na orgia
Da luz do dia
É só
O que eu pedia
Um dia pra aplacar
Minha agonia
Toda a sangria
Todo o veneno
De um pequeno dia

Só um
Santo dia
Pois se beija, se maltrata
Se come e se mata
Se arremata, se acata e se trata
A dor
Na orgia
Da luz do dia
É só
O que eu pedia, viu
Um dia pra aplacar
Minha agonia
Toda a sangria
Todo o veneno
De um pequeno dia


"MARAVI/ROSAMENTE"* CANTANDO "CLARIDADE"
 Por Fábio Brito 

Em 2011, tive a ideia de escrever pequenos textos sobre vozes femininas da MPB. Escolhi somente cantoras/intérpretes que admiro, que me comovem e que, sob diferentes aspectos, são autênticas e, portanto, transgressoras.  Na lista, que não é pequena, figura Virgínia Rosa, ex-vocalista da banda Isca de Polícia, de Itamar Assumpção, e do grupo Mexe com tudo, e uma das mais completas intérpretes de sua geração. Numa espécie de premonição (brincadeirinha!), eis o que eu disse sobre a Virgínia:  "(...) não sei o porquê de eu ter lembrado [quando ouvi Virgínia pela primeira vez] Clara Nunes. Já sei! Ambas pertencem à estirpe das que cantam "pra" fora. O canto de Virgínia, assim como o de Clara, tem a ver com a luz do dia. É luminoso. É iluminado". 
Pois é, parece que Virgínia leu o que escrevi. Em 2012, quando Clara completaria 70 anos, houve a estreia do "show" Virgínia Rosa canta Clara Nunes. Que notícia excelente! De lá "pra" cá, não parei de ler artigos sobre o espetáculo, de assistir a vídeos e, ansioso, fiquei à espera do CD homenageando a Guerreira. Não deu outra: em 2014/15, pelo Selo Sesc, saiu Virgínia Rosa canta Clara, a que só agora tive acesso. Com produção e direção musical de Ogair Júnior, que toca piano em 13 das 14 faixas (mais teclados em Basta um dia) e que produziu o arranjo de 6, o CD está impecável. Ao lado de "Claridade - uma homenagem a Clara Nunes" (Alcione, 1999), "Ser de luz - uma homenagem a Clara Nunes" (Mariene de Castro, 2013) e "Canto sagrado - uma homenagem a Clara Nunes" (Fabiana Cozza, 2012), o CD de Virgínia já figura, sem dúvida, entre as mais belas homenagens que Clara recebeu após sua partida. 
Com participação das "Clarianas", A deusa dos orixás (Romildo e Toninho, Claridade, 1975) abre o CD. Lembro quando Clara, com suas roupas e expressão corporal que lembravam os cultos afro-brasileiros, lançou essa canção. A gravação de Virgínia ficou bem cadenciada e, majestosamente, estende o tapete para as demais canções "desfilarem". 
Em Menino Deus (Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, Alvorecer, 1974), a segunda faixa, vale destacar o violão, o cavaquinho e o bandolim de Dino Barioni, excelente músico que, entre seus melhores trabalhos, ressalto Faço no tempo soar minha sílaba, com a cantora Célia (Lua, 2007). 
Banho de manjericão (Paulo César Pinheiro e João Nogueira, Esperança, 1979) é a faixa que abre o disco que Clara lançou em 79. A gravação de Virgínia traz o pandeiro, o ganzá, as congas e as alfaias do músico Ramon Montagner, o que enriquece deveras a canção. Embora diferente, ficou tão bonita quanto a "da" Clara. 
E o que dizer da quarta faixa, Basta um dia (Chico Buarque de Hollanda, Canto das três raças, 1976), que é uma canção dificílima? Virgínia registra-a magistralmente: deu-lhe uma interpretação impecável, como o foram as da própria Clara, de Ithamara Koorax e de Bibi Ferreira. Assim, Virgínia também entra para a posteridade com uma das mais belas gravações dessa preciosidade de um dos melhores compositores deste país, se não o melhor. Ter capacidade técnica à altura dessa canção não é para qualquer um. É para quem pode. 
Juízo Final (Nelson Cavaquinho e Elcio Soares, Claridade, 1975), que é a próxima faixa, voltou à mídia recentemente por causa de uma segunda gravação da Marrom (a primeira está em "Claridade") e que foi tema de abertura da novela A regra do jogo. Entre tantas gravações magistrais, como a do próprio Nelson, com sua voz roufenha e verdadeira, inclui-se, agora, a de Virgínia. 
O barulhinho do mar (que barulhinho bom!) é a senha para o início de O mar serenou (Candeia, Claridade, 1975). Vagner Fernandes, na biografia Clara Nunes: Guerreira da Utopia, diz que Candeia "era Clara doente". Olhe aí a responsabilidade de Virgínia ao regravar alguma canção desse mestre do samba. Sem medo de tamanha responsabilidade, o que ouvimos é um passeio pela canção. Quando a faixa vai chegando ao fim, o canto de Virgínia é tão delicado, que conseguimos "ver" o mar serenando, serenando, serenando... 
A sétima faixa, Nação (João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio, Nação, 1982), é a canção que dá título ao último trabalho de Clara. Cá entre nós: uma canção em que Caymmi fala para Oxum que, com Silas, ele está em boa companhia, só pode ser uma faixa abençoada. "Taí" a bênção não só de Clara e de nosso "Algodão", mas de todos os orixás para o canto vigoroso de Virgínia Rosa. 
Iracema (Adoniran Barbosa, 1980) é uma bela e comovente narrativa em versos do imortal Adoniran Barbosa. Junto com "Tiro ao Álvaro", que traz o antológico dueto com Elis, "Iracema" é uma das mais belas faixas do disco que Adoniran lançou em 1980. Virgínia, mantendo a nobreza da canção, convidou Ailton Graça, o ator, para participar da faixa, fazendo uma leitura dramatizada de parte da letra, como Adoniran o fizera. Um luxo. Graça e Virgínia, de forma pungente, levam-nos às lágrimas. É uma das faixas mais bonitas do CD. 
A nona faixa é uma valsa, Ai, quem me dera (Toquinho e Vinicius de Moraes, Canto das três raças, 1976). À semelhança da Guerreira, Virgínia pode aventurar-se em canções de qualquer natureza, de qualquer gênero. Essa valsa é a prova disso. Aliás, ter buscado essa canção no repertório de Clara comprova, mais uma vez, que o rótulo de sambista, tantas vezes atribuído à Guerreira, é reducionista. Virgínia poderia, se fosse incauta, ter caído no laço de regravar apenas sambas (e não são poucos!) que fizeram enorme sucesso na voz da Clara. Seria, talvez, mais fácil, mais comercial, digamos. Virgínia, porém, preferiu outro caminho: o de mostrar que Clara também era - honrosamente - sambista, mas não só. É preciso ressaltar, aqui, o acordeom dos deuses tocado por Toninho Ferragutti, que tem participação especial. Quanta beleza! Depois de ouvirmos essa faixa, temos a certeza de que não vai mais haver solidão ruim...
Assim como Ai, quem me dera, a próxima faixa, Ninguém tem que achar ruim (Ismael Silva, Claridade, 1975), é a prova de que, ao pesquisarem o repertório, cantora e produtor não ficaram presos a grandes sucessos: embora seja uma das canções menos conhecidas do disco Claridade, é uma pérola do mestre Ismael Silva, recuperada, agora, pelo canto verdadeiro de Virgínia. Depois de ouvir essa canção e seu ritmo inebriante, temos vontade de sair dançando.
Feira de mangaio (Sivuca e Glorinha Gadelha, Esperança, 1979), a décima primeira faixa, foi uma das primeiras músicas trabalhadas quando Clara a lançou. Mesmo sendo bem conhecida, Virgínia não caiu na armadilha de "fazer algo parecido". Ao contrário, ela criou a "sua" Feira de mangaio
Ai, o que dizer da décima segunda faixa, Na linha do mar (Paulinho da Viola, Esperança, 1979)? De imediato, identificamos a nobreza de Paulinho da Viola, um "príncipe". Em obra tão requintada como esse CD da Virgínia, Paulinho não poderia ficar de fora. Portelense como Clara, nosso Paulinho é a nobreza e o requinte em pessoa. Lembro que, quando Clara se foi, eu não conseguia esquecer estes versos: "(...) Vou-me embora desse mundo de ilusão / Quem me vê sorrir / Não há de me ver chorar (...)". Também linda e nobre ficou a gravação da Virgínia. 
Tristeza pé no chão (Armando Fernandes "Mamão", Clara, 1973) traz a participação de Osvaldinho da Cuíca, extraordinário músico paulistano que já integrou o conjunto Demônios da Garoa. Com sua inconfundível cuíca, Osvaldinho abrilhanta ainda mais essa canção, que é especial para mim: é a primeira faixa do primeiro disco da Clara comprado por mim... ainda criança. Além de Osvaldinho e dos tamborins de Montagner, que estão soberbos, a voz de Virgínia "dialogando" com a cuíca é algo genial. 
Um ser de luz (Paulo César Pinheiro, Mauro Duarte e João Nogueira, Almas e corações, Alcione, 1983), só com o piano de Ogair e a voz de Virgínia, fecha o CD com brilho ímpar: com extrema delicadeza. Ouvi essa faixa inúmeras vezes e, em todas, instintivamente, fechei os olhos e foi impossível não chorar. É como se Virgínia sussurrasse para Clara: - Está aí nossa homenagem, Claridade. Sei que você vai gostar. Em 1973, no MIDEM, como relata o biógrafo da Clara, o cantor Charles Asnavour, encantado com o canto da Guerreira, subiu ao palco para dar uma rosa à nossa Clara. Hoje, Virgínia, a rosa é para você... 
Em tempos de "cantantes" que pulam e gritam sem parar (porque é só o que sabem fazer), gravar um CD como esse da Virgínia Rosa é, além de uma declaração de amor à música, um ato de resistência. É a prova inconteste de que merecemos, além do canto luxuoso de Virgínia, a sobrevivência de uma música acima de quaisquer modismos. Muito obrigado, Virgínia Rosa, Ogair Júnior, Dino Barioni, Robertinho Carvalho, Ramon Montagner, Toninho Ferragutti, Douglas Alonso, Ailton Graça, Osvaldinho da Cuíca, Clarianas... Obrigado, Clara.

*Expressão do compositor Gonzaguinha, que está num dos versos da canção "Feliz".



AI, QUEM ME DERA
Toquinho e Vinicius de Moraes

Ai, quem me dera terminasse a espera
Retornasse o canto simples e sem fim
E ouvindo o canto se chorasse tanto
Que do mundo o pranto se estancasse enfim 

Ai, quem me dera ver morrer a fera
Ver nascer o anjo, ver brotar a flor
Ai, quem me dera uma manhã feliz
Ai, quem me dera uma estação de amor

Ah, se as pessoas se tornassem boas
E cantassem loas e tivessem paz
E pelas ruas se abraçassem nuas
E duas a duas fossem ser casais

Ai, quem me dera ao som de madrigais
Ver todo mundo para sempre afim
E a liberdade nunca ser demais
E não haver mais solidão ruim

Ai, quem me dera ouvir o nunca-mais
Dizer que a vida vai ser sempre assim
E, finda a espera, ouvir na primavera
Alguém chamar por mim


NA LINHA DO MAR
Paulinho da Viola

Galo cantou
Às quatro da manhã
Céu azulou
Na linha do mar
Vou-me embora desse mundo de ilusão
Quem me vê sorrir
Não há de me ver chorar

Flechas sorrateiras cheias de veneno
Querem atingir o meu coração
Mas o meu amor sempre tão sereno
Serve de escudo pra qualquer ingratidão


O MAR SERENOU
Candeia

O mar serenou
Quando ela pisou na areia
Quem samba na beira do mar
É sereia

O pescador não tem medo
É segredo se volta ou se fica
No fundo do mar
Ao ver a morena bonita
Sambando se explica que não vai pescar
Deixa o mar serenar 

A lua brilhava vaidosa
De si orgulhosa e prosa
Com o que Deus lhe deu
Ao ver a morena sambando
Foi se acabrunhando
Então adormeceu (e o sol apareceu)

Um frio danado
Que vinha do lado, gelado
Que o povo até se intimidou
Morena aceitou o desafio
Sambou e o frio
Sentiu seu calor (e o samba se esquentou)

A estrela estava escondida
Sentiu-se atraída
Depois então apareceu
Mas ficou tão enternecida
Indagou a si mesma
A estrela, afinal, será ela ou sou eu? 


JUÍZO FINAL
Nelson Cavaquinho e Elcio Soares

O sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar aos corações
Do mal será queimada a semente
O amor será eterno novamente

É o juízo final
A história do Bem e do Mal
Quero ter olhos pra ver
A maldade desaparecer


UM SER DE LUZ
Mauro Duarte, Paulo César Pinheiro e João Nogueira

Um dia
Um ser de luz nasceu
Numa cidade do interior
E o menino Deus abençoou
De manto branco ao se batizar
Se transformou num sabiá
Dona dos versos de um trovador
E a rainha do seu lugar 

Sua voz então
A se espalhar
Corria chão
Cruzava o mar
Levada pelo ar
Onde chegava espantava a dor
Com a força do seu cantar

Mas aconteceu um dia
Foi que o menino Deus chamou
E ela se foi pra cantar
Para além do luar
Onde moram as estrelas
E a gente fica a lembrar
Vendo o céu clarear
Na esperança de vê-la, Sabiá

Sabiá
Que falta faz sua alegria
Sem você
Meu canto agora é só melancolia
Canta, meu Sabiá
Voa, meu Sabiá
Adeus, meu Sabiá
Até um dia 


TRISTEZA PÉ NO CHÃO
Armando Fernandes "Mamão"

Dei um aperto de saudade no
meu tamborim 
Molhei o pano da cuíca com as 
minhas lágrimas
Dei o meu tempo de espera
para a marcação e cantei
A minha vida na avenida sem 
empolgação

Vai manter a tradição
Vai, meu bloco, tristeza e pé no chão

Fiz um estandarte com as minhas mágoas
Usei como destaque a tua falsidade
Do nosso desacerto fiz meu samba-enredo
No velho som da minha surda,
dividi meus versos

Nas platinelas do pandeiro
coloquei surdina
Marquei o último ensaio
em qualquer esquina
Manchei o verde-esperança da
nossa bandeira
Marquei o dia do desfile para
quarta-feira


MENINO DEUS
Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte

Raiou, resplandeceu, iluminou
Na barra do dia, o canto do 
galo ecoou
A flor se abriu
A gota de orvalho brilhou
Quando a manhã surgiu
Dos dedos de Nosso Senhor

A paz amanheceu sobre o país
E o povo até pensou que já era feliz
Mas foi porque
Pra todo  mundo pareceu
Que o Menino Deus nasceu 

A tristeza se abraçou com a 
felicidade
Entoando cantos de alegria e
liberdade
Parecia um carnaval no meio 
da cidade
Que me deu vontade de cantar
pro meu amor


A DEUSA DOS ORIXÁS
Romildo e Toninho 

Iansã, cadê Ogum? 
Foi pro mar
Mas Iansã, cadê Ogum? 
Foi pro mar

Iansã penteia
Os seus cabelos macios
Quando a luz da lua cheia
Clareia as águas do rio
Ogum sonhava
Com a filha de Nanã
E pensava que as estrelas
Eram os olhos de Iansã

Na terra dos Orixás
O amor se dividia
Entre um Deus que era de paz
E outro Deus que combatia
Como a luta só termina
Quando existe um vencedor
Quando existe um vencedor
Iansã virou rainha
Da coroa de Xangô


"Clara é uma de minhas cantoras preferidas e por quem sempre tive enorme admiração. Seu canto direto, forte e popular inspirou-me e me ajudou a encontrar minha personalidade musical e um jeito próprio de cantar. (...) 
Clara não era só uma cantora ou sambista extraordinária: Clara Nunes foi (é) uma das mais importantes intérpretes da música popular brasileira. (...)"

Virgínia Rosa



2 comentários:

  1. Mais uma vez, brilhantemente, você deu conta do recado. Tanto que vou querer comprar este cd, desde já obrigatório. Mais uma vez, repito, acertou, também, neste vaticínio: "não sei o porquê de eu ter lembrado [quando ouvi Virgínia pela primeira vez] Clara Nunes. Já sei! Ambas pertencem à estirpe das que cantam "pra" fora. O canto de Virgínia, assim como o de Clara, tem a ver com a luz do dia. É luminoso. É iluminado" . Bingo! Só aprecio cantoras assim, que despejam luzes sonoras, com potência e talento ímpares. Além deste maravilhoso video postado por você, fui conferir o Juízo Final que é a abertura do show no Sesc Consolação-SP e, claro, " boquiabri-me com a força da interpretação: virginiaroseanamente clara". Conheço e adoro os trabalhos iluminados e guerreiros- tanto em cd, quanto em "show! - da Fabiana Cozza e da Marienne de Castro, em homenagem à claridade da mineira, filha de Ogum com Iansã. Obrigado por compartilhar estes diamantes sonoros, estas "rosas virginias" musicais. Já estou fã da magnífica cantora. Abraçaço e beijaço.
    https://www.youtube.com/watch?v=f0FxAlUQJPs

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    1. Querido Marcos, mais uma vez, fico lisonjeado com seus comentários. Que honra para mim! Se o texto despertou em você a vontade de ter o CD da Virgínia, fico "pra" lá de contente. Um beijo imenso, meu amigo. Obrigado, obrigado, obrigado.

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