domingo, 4 de fevereiro de 2018

CELULAR E COMIDA DO LIXO



CONSUMO
Música: Plebe Rude / Letra: André X

Tomei uma coca
Cadê o sorriso?
Gastei dinheiro
e fiquei liso

Cale a boca e consuma
Cale a boca e consuma
Você não tem o direito de duvidar

Comprei de tudo
à prestação
O SPC
é o meu caixão

Cale a boca e consuma
Cale a boca e consuma
Você não tem o direito de duvidar

Consumidor
que não reclama
paga filé, come banana

Cale a boca e consuma
Cale a boca e consuma
Você não tem o direito de duvidar



CELULAR E COMIDA DO LIXO
Por Fábio Brito 

Conheço uma família ("conheço" é modo de dizer) que, em pleno séc. XXI, é até numerosa: pai, mãe e quatro filhos (não sei se há mais algum). Dos filhos, a mais velha (imagino que seja a mais velha), tem três crianças, entre as quais um bebê de, aproximadamente, um mês (é bem novinho). 
A casa dessa família, que fica num bairro muito pobre, não tem emboço e nem reboco em quaisquer das paredes. Somente lodo. Construída no terraço/na laje de outra casa, tem como rampa de acesso uma escada de madeira bem danificada. Em verdade, não é bem escada, mas pedaços de madeira que, pregados de forma bem rudimentar, ficam parecendo uma escada. Eu diria que é uma espécie de pinguela. 
No espaço da laje não ocupado pela casa, há um tanque, improvisado, e todo tipo de quinquilharia: um fogão - com as portas abertas - onde dorme um cachorro que vive amarrado, um pedaço de geladeira, o esqueleto de uma moto (uma "cinquentinha"), o que restou de uma enceradeira, vários pedaços de madeira, vasos com plantas que só veem água quando chove, uma grade enferrujada (que deve ter sido de alguma janela) encostada numa parede, pedaços de um ventilador, um tampo de plástico de uma mesa,  um pedaço de cadeira entranhado entre essa casa e a parede da vizinho e por aí vai... 
Diante do descrito, não fica difícil imaginar que, nessa casa, limpeza e arrumação devem ser artigos de luxo. Essa casa me faz lembrar uma história que minha mãe não se cansa de contar sempre que certas pessoas insistem em "casar" sujeira com falta de recursos materiais: uma de suas "tias" (em verdade, prima de minha avó) era extremamente humilde, mas caprichosa ao extremo. Para ilustrar, minha mãe cita o fogão à lenha dessa "tia", que recebia barro branco praticamente todos os dias. Os panos de prato são outro exemplo do capricho extremado da tia: apresentavam uma alvura inacreditável. 
Bom, o leitor deve estar achando estranho eu descrever detalhes da casa se eu mesmo disse que é força de expressão dizer que "conheço" a família sobre a qual estou falando. De fato, não a conheço a ponto de descrever seus hábitos, seu dia a dia. Entretanto, de tanto passar por essa casa quase todos os dias, enquanto caminho, acabei ficando, de certa forma, familiarizado não só com a tal casa, mas com as pessoas que moram ali. Ou seja, se observo, sempre no mesmo horário, parte da rotina dessa família, fica fácil descrever - até com detalhes - o que estou vendo constantemente. 
O que mais chama minha atenção quanto às pessoas dessa casa pode não ser estranho para muita gente, mas, para mim, é: num muro próximo, que serve de banco, é muito comum ver quase todos da família ali sentados e mexendo em seus celulares. A filha mais velha, por exemplo, cercada de seus filhos, fica encolhida e com o bebê sobre as pernas. A atenção - e nem é preciso dizer - está toda voltada para o aparelho. Em certos momentos, ela deve até esquecer que tem um bebê no colo. Os outros dois estão sempre por perto. Às vezes, choram e resmungam. A mãe, claro!, não está nem aí. Todos (quase todos) - essa filha mais velha, um irmão, o pai e a mãe -  estão encantados com seus aparelhinhos. Só "com o rabo dos olhos", dá para eu ver que estão na "net": no "whatsapp", no "face"... sei lá! O que sei é que estão todos conectados... e deslumbrados. Passo por eles quase todos os dias, observo-os até com vagar e continuo minha caminhada.
Ao dobrar a esquina que marca minha volta para casa depois de mais de uma hora caminhando, não raro encontro um garotinho acocorado no local em que depositam o lixo da redondeza. Numa das vezes em que vi esse menino, fingindo que amarrava o tênis, eu me sentei numa mureta próxima só para observar esse menininho, cujo tipo físico é de uma criança de 8 anos, talvez um pouco mais. Como n’O bicho, conhecido poema do Bandeira, essa criança "catava comida entre os detritos". Fingindo que estava cansado, demorei mais um pouco ali na mureta. Sem que eu esperasse, o menino me cumprimentou e sorriu para mim. Talvez tenha ficado sem graça ao notar que alguém o observava. Retribuí o cumprimento e, sem graça também, não tive coragem de perguntar nada, mas a vontade era de saber se ele aceitava algum trocado. Assim, pelo menos naquele dia, ele não ia precisar revirar o lixo. A imagem desse menino me tocou muito todas as vezes em que o vi. Crianças pedindo esmolas ou catando lixo sempre me comovem. Adultos também, mas criança atinge zonas mais sensíveis.
Pouco tempo depois, com uma sacola em cada mão, o menino se retira. Fui atrás, mas não para segui-lo. Simplesmente tínhamos o mesmo trajeto. Em pouco tempo, ele chega a casa. Para minha surpresa (ou seria espanto?), a casa do garotinho que cata comida entre os detritos do lixo mais próximo é a mesma descrita no início deste texto, ou seja, a casa em que quase todos da família têm um celular com internet e não sei mais o quê. Isso é patético? Nem sei mais. Só sei que andei mais um pouco, parei, sentei-me no meio-fio e, por alguns minutos, fiquei pensando na sociedade de consumo em pleno século XXI. Fiquei pensando no mal que ela faz às pessoas. Ter um celular com muitos recursos é mais importante do que ter comida em casa? Comida pode ser do lixo; celular tem de ser "top". Que violência! 



O Bicho
Manuel Bandeira 


Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.


EU, ETIQUETA
Carlos Drummond de Andrade 

Em minha calça está grudado um nome 
que não é meu de batismo ou de cartório, 
um nome... estranho. 
Meu blusão traz lembrete de bebida 
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro 
que não fumo, até hoje não fumei. 
Minhas meias falam de produto 
que nunca experimentei, 
mas são comunicados a meus pés. 
Meu tênis é proclama colorido 
de alguma coisa não provada 
por este provador de longa idade. 
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, 
minha gravata e cinto e escova e pente, 
meu copo, minha xícara, 
minha toalha de banho e sabonete, 
meu isso, meu aquilo, 
desde a cabeça ao bico dos sapatos, 
são mensagens, 
letras falantes, 
gritos visuais, 
ordens de uso, abuso, reincidência, 
costume, hábito, premência, 
indispensabilidade, 
e fazem de mim homem-anúncio itinerante, 
escravo da matéria anunciada. 
Estou, estou na moda. 
É doce estar na moda, 

ainda que a moda 
seja negar minha identidade, 
trocá-la por mil, açambarcando 
todas as marcas registradas, 
todos os logotipos do mercado. 
Com que inocência demito-me de ser 
eu que antes era e me sabia 
tão diverso de outros, tão mim mesmo, 
ser pensante, sentinte e solidário 
com outros seres diversos e conscientes 
de sua humana, invencível condição. 
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro, 
em língua nacional ou em qualquer língua 
(qualquer, principalmente). 
E nisto me comparo, tiro glória 
de minha anulação. 
Não sou - vê lá - anúncio contratado. 
Eu é que mimosamente pago 
para anunciar, para vender 
em bares festas praias pérgulas piscinas, 
e bem à vista exibo esta etiqueta 
global no corpo que desiste 
de ser veste e sandália de uma essência 
tão viva, independente, 
que moda ou suborno algum a compromete. 
Onde terei jogado fora 
meu gosto e capacidade de escolher, 
minhas idiossincrasias tão pessoais, 
tão minhas que no rosto se espelhavam 
e cada gesto, cada olhar 
cada vinco da roupa 

resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
sou gravado de forma universal, 
saio da estamparia, não de casa, 
da vitrine me tiram, recolocam, 
objeto pulsante mas objeto 
que se oferece como signo de outros 
objetos estáticos, tarifados. 
Por me ostentar assim, tão orgulhoso 
de ser não eu, mas artigo industrial, 
peço que meu nome retifiquem. 
Já não me convém o título de homem. 
Meu nome novo é coisa. 
Eu sou a coisa, coisamente.

16 comentários:

  1. Não consegui enviar as fotos...
    ficou desse jeito aí!!!!
    Vou te mandar por e-mail!

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    1. Ok, Fernando. Vi as imagens, que resumem tudo. É a entronização do celular, o novo "ídolo". Beijos e obrigado.

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  2. Tudo questão de prioridade, não é?
    Comer não é prioridade!!!!
    Ter celular de última geração... sim!!!!!

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    1. É, Fernando, ter um celular de última geração é O QUE MAIS IMPORTA NESTE MUNDO. Nada é mais importante. E o caminho é o da loucura mesmo. Neste MUNDO DO CELULAR, a pessoa dorme atualizada e acorda ultrapassada. As mudanças são muito rápidas. Então, o que a criatura faz? Se não tiver como acompanhar as mudanças, que chamam de evolução, ela vai enlouquecer... Beijos, querido. Obrigado.

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  3. Amado mestre, que maravilha. Compartilhando para que outros amigos façam a reflexão que acabei de fazer! Abraço!

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    1. Querido Adriano, luxo para mim tê-lo como leitor. Pois é, esse assunto que abordo aí no texto - que tem muitos desdobramentos - é bem mais delicado do que pensa a maioria das pessoas. Muito obrigado, meu amigo. Seja sempre bem-vindo. Abração.

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  4. Mais uma vez, como sempre, você brilhou querido mestre. Sensibilidade, senso de oportunidade histórica, criticidade, denúncia e compartilhamento de perplexidade, tudo sob o holofote da ponderação arguta. Porém, todavia, contudo rs...pela primeira vez terei a honra e/ou o privilégio (na verdade é pura ousadia rs) de poder discordar: 'ter um celular de última geração é O QUE MAIS IMPORTA NESTE MUNDO. Nada é mais importante. E o caminho é o da loucura mesmo.Se não tiver como acompanhar as mudanças, que chamam de evolução, ela vai enlouquecer'..

    Sendo assim ,.euzinho, uma pobre criatura até hoje 'descelularizada", pelo seu diagnóstico... enlouqueci? Dizem as boas e más línguas que ainda tenho um cadinho de lucidez (será? rs). Vou procurar um psiquiatra e depois envio o laudo rs.



    O que posso fazer a não ser lamentar pelas pobrezas -financeira e de espírito - desta esquisita família.



    Tenho muita preocupação com o aumento vertiginoso dos pobrezinhos do Patropi. É preciso colocar um limite nesta proliferação e/ou perpetuação da pobreza, que pode ser, também, um celeiro para delinquência posto que as oportunidades de melhoria praticamente não existem, conceitualmente. Enquanto o Estado não ensinar ou possibilitar o planejamento familiar(tudo indica que nunca, infelizmente) para os de baixa renda ou de nenhuma renda , a pobreza só tende a aumentar em progressão geométrica. Só no Rio de Janeiro já são mais de 500 favelas (comunidade é eufemismo cínico, pois mudou o nome e permaneceram as MESMAS condições precárias). É de se pasmar e lamentar.



    .Há no Brasil varias gerações de seres que nasceram de aventuras irresponsáveis e cresceram dentro de um padrão de comportamento que objetiva apenas a satisfação dos apetites mais imediatos do corpo (comer, beber, dormir, transar, etc.). Quem mora na periferia de grandes cidades, pode observar que a iniciação sexual se dá em idade muito baixa, meninas de doze anos já se tornam mães, e tudo ganha contornos de total naturalidade, principalmente quando os pais biológicos também menores de idade seguem seu curso de irresponsabilidades jogando bola na rua, soltando pipas em cima da laje, sem qualquer preocupação com o fato de serem pais e as meninas a seu turno, entregam os filhos aos pais que os criam como se fossem seus próprios filhos. A “cultura” funk, apregoa esses valores constantemente em seus "poemas inspirados" rs que incentivam a pratica do sexo da forma mais vulgar e bestial entre a garotada que adotou esta manifestação 'cultural' como padrão de comportamento. Portanto, este negocio de pensão alimentícia é coisa de classe média mesmo, pois o que teriam os pais dos filhos das meninas das periferias a oferecer à suas famílias senão apenas a sua pessoa para se tornarem mais uma boca a sustentar pelos avós daqueles pobres bastardos.


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    1. Marcos, meu querido, mais uma vez, você não fez um comentário, mas um TEXTO que propõe excelentes reflexões. Sobre o “enlouquecimento” a que chegam muitas pessoas caso não consigam o “celular de última geração”, vale frisar: a maioria, infelizmente, age assim, meu amigo. Você e eu, como sempre brinco, somos uns ETs. Somos, lembrando nosso grande poeta M. de Barros, uns primitivos. Ainda fico espantado quando vejo praticamente todas as pessoas – em quaisquer lugares – com os olhos “grudados” na telinha de um celular. Deus meu! Isso é algo patético! O que tanto falam? O que tanto escrevem? O que tanto leem? Certamente, não estão escrevendo, lendo ou vendo nada que possa enobrecer o espírito. Com certeza, não! Escrevem bobagem, leem bobagem, falam e ouvem bobagem. Não constato, por exemplo, o crescimento da leitura e da escrita nesse contato intermitente com celulares e afins. Não constato mesmo! É, meu amigo, o império da futilidade e da vaidade, cujas estruturas parecem indestrutíveis, está aí... em pleno século XXI. Que involução!

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    2. Brilhante resposta amigo querido...nada a excluir ou a acrescentar. Disse tudo com tanta lucidez que é quase desatino rs...de ver/ler/evidenciar e não poder mudar a trágica sorte do destino que só poderá ser e está sendo... a franca e incontornável INVOLUÇÃO . O neoliberalismo perverso/predador/concentrador de renda, conseguiu midiotizar o povo, com mais eficiência, ainda . Só que isto é a própria "burrice do demônio", este retrocesso que é um tiro no próprio pé. "O mundo está ao contrário e ninguém reparou", a não ser raríssimos como 'nosotros". Beijaços

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    3. Realmente, querido Marcos, "o mundo está ao contrário", mas NINGUÉM QUER REPARAR. Beijos. Obrigado.

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  5. DESCULPE...MAS TIVE DE EXCEDER e fiz dois "pitacões"...sou exorbitante rs.

    Quanto ao evidente aumento de violência , repito, enquanto não se fecharem as torneiras das gravidezes irresponsáveis, com ligadura de trompas ou vasectomia... não adianta ficar enxugando o chão... com prisões ou represálias.Meninas que moram na rua, já aos 12 anos começam a engravidar e todos os anos, enquanto vivas, jogando mais um infelize e sem futuro nas ruas...para fazer o quê???...além de perpetuarem a miséria.O controle de natalidade ou o planejamento familiar é mais do que urgente, é necessário, até porque o mundo não comporta mais tanta gente.A classe média e os ricos têm, EM MÉDIA, 2 FILHOS...e conheço muita gente com dinheiro que optou por não tê-los .Já os pobres, no mínimo 4, como no seu relato... normalmente são ninhadas....O inchaço das periferias, a superpopulação das comunidades evidenciam o descontrole.



    Só pode ser cego ou midiota quem não vê os excedentes humanos, sem perspectivas, não somente os sem tetos , pois o emprego cada vez é mais escasso, com a máquina substituindo gente..Uma pessoa sem dinheiro e com fome...desamparada, sem família, etc...é suscetível, no mínimo, a pequenos furtos...se cheirar cola ou fumar crack, então...Toda essa violência já está instaurada há décadas nas periferias da nossa cidade, mas só agora que começa atingir o lugar da elite é que ganha repercussão. Não adianta tratar o problema, tem de tratar a causa , reverter esse quadro social. O que vivemos é resultado, também, da falta de investimento adequado em educação, empregabilidade, programas de esporte, cultura e lazer.

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    1. Amigo Marcos, são muitos e assustadores nossos problemas. Enxergá-los, infelizmente, é para poucos. Lucidez social não é para qualquer um. Abração. Muito obrigado pela visita a este blogue, meu querido.

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  6. Fábio, meu amigo, seu olhar fotográfico 'captou' o mal moderno em que as prioridades inverteram-se. Grande abraço!

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    1. Meu querido Luiz Fernando, muito obrigado pela visita a este blogue. Pois é, meu amigo, às vezes, pergunto-me o seguinte: quanto às novas tecnologias, será que vai haver alguma exaustão? Ai, ai... Abração.

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