quarta-feira, 8 de junho de 2011

SOBRE PALAVRAS...



PALAVRA ACESA
Fernando Filizola – José Chagas

Se o que nos consome
Fosse apenas fome
Cantaria o pão
Como o que sugere a fome
Para quem come
Como o que sugere a fala
Para quem cala
Como o que sugere a tinta
Para quem pinta
Como o que sugere a cama
Para quem ama
Palavra quando acesa
Não queima em vão
Deixa uma beleza posta
Em seu carvão
E se não lhe atinge
Como uma espada
Peço não me condene
Ó minha amada

Pois as palavras foram
Pra ti, amada

“Palavra acesa”, Quinteto Violado, Millennium, Universal 546114-2, Rio de Janeiro, 1999.



UM COMUNICADO SOBRE AS PALAVRAS

Palavras são feitas de matéria escura, quase sólida. Secam rapidamente, depois de pensadas ou ditas. Mas secam também antes que saiam da boca, quando deixamos de usá-las de maneira apropriada. Há duas grandes famílias de palavras – as que são súbitas e as que roubam tempo. As primeiras devem seu nome ao fato de aparecerem pouco, como pontilhões transparentes e de curtíssima duração até aquilo que nos rodeia. Vêm em geral cercadas de espanto por seu misto de precisão e harmonia, como uma enorme coincidência que logo some, carregando consigo a breve duração de sua promessa. De tão raras, parece sempre que estamos diante das palavras súbitas pela primeira vez. Formam, neste sentido, o oposto complementar da segunda família de palavras, conhecidas como rouba-tempo, que estão sempre disponíveis e aparecendo em legião. São estas que nos cercam a cada momento, a tal ponto que já não é possível separar nossa vida da sua. Para que agem assim, roubando nosso tempo como um roedor nos leva para a sua toca ou um marsupial para a sua bolsa? É uma questão complicada. Parecem apegadas à superfície dissipada da vida, que não consegue fixar-se e encontra nelas o seu coagulante. Estão para as palavras súbitas como os anões de jardim para as pessoas vivas. No entanto, a própria superficialidade de sua existência imperfeita confere uma poderosa característica a esta família: sua reprodutibilidade. Como partículas subatômicas, trombam o tempo todo numa dança desordenada, mas aparentando grande lógica, de verbos e substantivos que expele sufixos, rimas incompletas, hexâmetros e pés quebrados e um número enorme de frases feitas semicirculares. É esta pasta confusa que obscurece o céu estrelado sobre nossas cabeças, o astro vermelho que tomba diante de nós ou a branca fatia da lua. Normalmente, em sua forma mais virulenta, as rouba-tempo comentam aquilo que está sendo visto: “parece que posso tocar as estrelas!”, “nunca vi um sol tão vermelho!” ou “a lua está transparente como porcelana”. Naturalizam assim sua própria condição dissipada, atazanando as mentes que dominam. Sim, porque é próprio das rouba-tempo afligir seu hospedeiro impedindo que se distraia, que se uma verdadeiramente àquilo que o chama; ficam resmungando baixinho, soletrando nomes e pronomes, embalando o órgão que deveria no entanto utilizar-se delas num sono acordado que vai terminar por matá-lo. Este órgão, o cérebro, ao invés da emissão de raios amorosos para a qual parece destinado, captando a freqüência da matéria, da memória, dos afetos ou mesmo do que se esconde na sombra mais profunda para reproduzir, como se fosse um sino, sua onda vibratória (que não vem de cima, mas do interior das coisas), fundindo-se assim ao pulso único, irreprodutível, de uma maçã, por exemplo, e vibrando de volta com ele, ao invés de seguir essa vocação, possuído pelas rouba-tempo, este cérebro fala, ou pensa que fala – pensa, ou pensa que pensa. Abandona assim a matéria transparente, neutra e vazia da harmonia física e vibratória entre os seres pelo campo preventivo destes pequenos duplos de som organizado que parecem, no fundo, querer apenas perpetuar-se. Como o ser vibra em ondas, logo assumiram a forma sonora, procurando confundir-se com sua fonte ou, ao menos, manter com ela um parentesco primário, uma matéria comum ondulatória de que o som parece a configuração mais explícita. No entanto, é nesta mesma astúcia que acabam por revelar-se, pois sabemos que não vibra o emaranhado pantanoso de simipalavras e fragmentos de orações que nos turva a mente o dia todo, parecendo mais um bolo amorfo que expande e colapsa sobre si do que a fuga bailarina, cíclica e sempre renovada de uma palavra súbita ou de outra onda qualquer, luminosa, cheia de sargaços, infravermelha ou afetiva. Parecem ter nessa dificuldade de expansão o seu ponto fraco, o avesso da reprodutibilidade extrema que as caracteriza. É a partir daí que devem ser predadas. Sim, porque se não as alimentarmos com visões ou sentimentos, se não trouxermos o vento até elas, se não dissiparmos a clausura asfixiante de sua falta de objeto, entram rapidamente em colapso. É bem possível que o cérebro hospedeiro colapse junto, ouvindo o ranger das correntes mesmo enquanto dorme, mas desta crise extrema pode também brotar a liberdade e o silêncio. A fadiga do cérebro doente, a concentração de todas as suas forças contra o invasor que já o tomou quase completamente, acaba muitas vezes por fazer nascer um órgão renovado, que cedeu à doença partes inteiras de sua matéria e de suas habilidades, mas reuniu ainda assim o essencial para uma sobrevida. Trata-se, na verdade, de uma operação bastante arriscada, mas que obteve sucesso muitas vezes, pois diante da morte do hospedeiro as próprias rouba-tempo recuam, diminuindo o nível de sua atividade. Ao que parece, pressentem o ponto de colapso do organismo, recolhendo-se como um exército ordenado de formigas. O que lhes interessa não é de fato destroçar o hospedeiro mas mantê-lo num estado de torpor em que processa, numa espécie de fotossíntese, a substituição contínua do que lhe é exterior pela sintaxe desordenada das próprias rouba-tempo. Existe ainda uma segunda forma de combatê-las, mais estranha e menos eficaz, mas que diversas vezes apresentou resultados. Consiste em materializá-las, escapando à ilusão aérea e vibratória que as caracteriza. A primeira tarefa deste método é sempre grafar as palavras, evitando a forma oral. Como já dissemos, o caráter imaterial que assumiram, através de ondas sonoras, é que permite sua camuflagem astuciosa. Esta técnica consiste portanto em dar corpo às palavras, tornando-as pesadas, onduladas, viscosas ou sujas, escrevendo-as com barro, concreto ou metais fundidos, sempre em escala significativa. A primeira propriedade que adquirem neste caso é a lentidão: até que terminemos de construí-las repetiremos mentalmente tantas vezes o som que as caracteriza que este já não terá qualquer sentido. Além disso, como criar sintaxe entre fósseis paralisados, carregados de matéria e de peso; como encontrar aposição de um verbo e de um adjetivo numa situação eminentemente física, feitos de terra, por exemplo, num terreno que a chuva encharcou? Isoladas, presas na matéria, não podem mais trombar indefinidamente umas com as outras nem reproduzir-se. Parecem perder sentido conforme ganham corpo, e então já não há perigo de que nos enganem.
RAMOS, Nuno. O pão do corvo. São Paulo: Ed. 34, 2001.


A CASA DAS PALAVRAS

Na casa das palavras, sonhou Helena Villagra, chegavam os poetas. As palavras, guardadas em velhos frascos de cristal, esperavam pelos poetas e se ofereciam, loucas de vontade de ser escolhidas: elas rogavam aos poetas que as olhassem, as cheirassem, as tocassem, as provassem. Os poetas abriam os frascos, provavam palavras com o dedo e então lambiam os lábios ou fechavam a cara. Os poetas andavam em busca de palavras que não conheciam, e também buscavam palavras que conheciam e tinham perdido.
Na casa das palavras havia uma mesa das cores. Em grandes travessas as cores eram oferecidas e cada poeta se servia da cor que estava precisando: amarelo-limão ou amarelo-sol, azul do mar ou de fumaça, vermelho-lacre, vermelho-sangue, vermelho-vinho...

GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Trad.  Eric Nepomuceno. 4. ed. Porto Alegre: L & PM, 1995.


ESCOVA
Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam ali sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a eles, meio entressonhado, que eu estava escovando palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu joguei a escova fora.
BARROS, Manoel. Palavras inventadas. http://mizebeb.wordpress.com/2010/05/20/escova/






2 comentários:

  1. Quando entro aqui no seu cantinho,
    me delicio, me refresco, me descanso!
    Obrigada por abrir as portas sempre.
    Abraços.

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  2. Marta, querida, obrigadíssimo pela visita. Um cantinho com literatura é bom à beça, não é?
    Beijão, Fábio

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