sábado, 22 de outubro de 2011

PESSOA = PESSOAS





POEMA EM LINHA RETA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideus!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo em ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
[...]
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
[...]

'MUITOS' PESSOAS...

Façam do meu coração uma flâmula de almirante
Na hora de guerra dos velhos navios!

O que quero é levar pra Morte
Uma alma a transbordar de Mar...

Esgotou-se a alma, ficou só um eco dentro de mim.

E há em cada canto da minha alma
um altar a um deus diferente.

E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

E há um só caminho para a vida, que é a vida...

Fui educado pela Imaginação,
Viajei pela mão dela sempre...

Não não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!

Como os que invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.

Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Para, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento...

Tenho que arrumar a mala de ser.

Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...

Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.

Hoje não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho.
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Álvaro de Campos


Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio,
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

O ódio e o amor iguais nos buscam; ambos,
Cada um com seu modo, nos oprimem.

PARA SER GRANDE
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

COROAI-ME DE ROSAS
Coroai-me de rosas.
Coroai-me em verdade
De rosas -
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!
coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta
Ricardo Reis


Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...

Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.

Todo eu sou qualquer força que me abandona.

Basta existir para se ser completo.

Nunca tive um desejo que não pudesse realizar,
Porque nunca ceguei.

Sentir é estar distraído.
Alberto Caeiro


O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos...

A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece...

A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.

Meu coração é um pórtico partido
Dando excessivamente sobre o mar.

O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é...

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio...

Há um poeta e mim que Deus me disse...
Fernando Pessoa

PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus: seleção poética; seleção e nota editorial [de] Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

2 comentários:

  1. Conhecimento, sensibilidade e bom gosto.

    Sua pessoa em Pessoa.
    Meu beijo.
    Graça

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  2. Graça, querida, que bom "vê-la" por aqui. Que luxo para mim, 'pessoa'! Beijos imensos, Fábio

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