segunda-feira, 3 de outubro de 2011

SACANAGEM NÃO PODE SER 'COISA' NORMAL



"(...) E me fala de coisas bonitas / Que eu acredito que não deixarão de existir / amizade, palavra, respeito, caráter, / bondade alegria e amor / Pois não posso, não devo, não quero / Viver como toda essa gente insiste em viver / E não posso aceitar sossegado / qualquer sacanagem ser coisa normal (...)"
                                                                                                                 Milton Nascimento / Fernando Brant

CD: "Bola de meia, bola de gude". Milton Nascimento, Orquestra Jazz Sinfônica, Rouxinóis Divinópolis, Crianças Programa Curumim, Amigo, Warner Music Brasil, M450998651-2, Rio de Janeiro, 1995.
 
            O DESONESTO MORA AO LADO
            Por Fábio Brito

            
            Tive o desprazer de assistir, dias atrás, a uma gravação em que um jovem senhor, na faixa dos 50 anos, furta um objeto, um aparelho eletrônico, esquecido na cadeira ao lado da sua. Isso em uma instituição pública onde ele seria atendido.
            A cena precisa ser detalhadamente narrada. Vamos lá! Em uma cadeira entre duas pessoas, está uma sacola com o tal objeto. De uma dessas cadeiras, levanta-se uma das pessoas. Segundos depois, a que permaneceu sentada verifica - com uma "olhadela" - o que há dentro da sacola. Sem titubear, puxa-a para perto de sua mochila. Com mais rapidez ainda, e sempre procurando agir com naturalidade, cobre - com a mesma mochila - o que ele pretende pegar. Depois, é bem simples: "guarda" o aparelho. Tudo isso em segundos. Pronto! Serviço concluído. Não demora, ele é chamado para ser atendido por um funcionário da instituição.
          Em pouquíssimo tempo, o tal senhor furtou algo cujo valor está em torno de mil e trezentos reais. Se conseguir vender por uns quinhentos, ou até menos, tenho certeza de que ele ficará muito satisfeito. Um décimo terceiro salário no meio do ano não é nada mal, deve ter pensado o jovem senhor. Não duvido de que não faltará gente para comprar o objeto por uma bagatela. Alguém duvida?
          Logo após assistir a essa cena triste, não me contive: “- Esse senhor deve ser um dos muitos cidadãos brasileiros que se revoltam diariamente quando ficam sabendo dos inúmeros, incontáveis casos de corrupção envolvendo políticos, por exemplo”. E é para ficar indignado mesmo! Ninguém suporta ser lesado sem ‘esbravejar’. Brincando um pouquinho com as palavras, uma “indigna ação”, seja ela qual for, deve, sim, merecer nossa indignação, nosso repúdio... sempre.
          No entanto, o que muitos pensam é que só os atos desonestos do vizinho merecem reprimenda, revolta e gritos de protesto. Quando atitudes desonestas "brotam" no quintal de suas casas, muitas pessoas se comportam naturalmente. Ou seja, quando elas podem 'se' beneficiar de alguma ação que deveria merecer repúdio, não pensam duas vezes: beneficiam-se. Um exemplo claro disso é o eterno ato de “furar fila”. Se, porventura, alguém “fura uma fila”, haverá muitos gritando. E devem gritar mesmo! Devem vociferar! Entretanto, se a um desses que gritam for dada a chance de ser atendido antes de alguém que “chegou primeiro”, não raro ele aceitará. Incrível, não?
           E tem muitos outros matizes essa erva daninha chamada desonestidade. Também é desonesto quem toma algo emprestado, por exemplo, mas não o devolve. Por isso, agora, depois de ser muito lesado, quando o assunto é empréstimo de dinheiro (ai... que tristeza!), se chego a "emprestar" (tenho andado bem "ruinzinho" ultimamente), procuro pôr em prática um ensinamento que está em Na sala com Danuza*: "Tenho um (...) amigo que, quando lhe pedem dinheiro emprestado, ele separa 20, 30%, e dá, dizendo claramente que é um presente. Assim, segundo ele,  não perde o dinheiro nem o amigo". Nossa! Já perdi a conta dos "amigos" que se afastaram por causa de dinheiro! "Mui" amiiiigos! Pior de tudo: quem empresta acaba ficando muitíssimo constrangido. É saia justa mesmo! Que esquisito isso, não? Quem lesa é que deveria ficar envergonhado! E a criatura, como eu já disse em outro texto, desaparece, some, evapora. Antes, porém, ela esbarrava em mim frequentemente. Feito mágica, surgia à minha frente em todos os lugares. Onipresença mesmo! Agora, sem aviso, ela desapareceu. Não a encontro mais. Sumiu! Que dó! Deve ser a vida corrida, não é mesmo? 
          Voltando à história do objeto furtado: por que o tal senhor não o entregou a um dos funcionários da repartição em que ele se encontrava? Seria tão simples. Nessa hora, o instinto – ou seja lá o que for! – desonesto gritou primeiro e bem alto. Beeeem alto! Imagino que, para esse senhor, o que ele fez não é nada extraordinário, não é nada que seja parecido com “desonestidade”. Se, por acaso, ele for encontrado e tiver de prestar esclarecimentos acerca do que fez, posso 'prever' algumas respostas. Uma é esta: - "Todo o mundo faz isso, não faz?" ("- Espere aí, meu senhor! 'Eu' não faço!"). Outra possível resposta: “- Achado não é roubado. Quem perdeu foi relaxado”. Não é isso que apregoam por aí? Não é isso que sopram aos quatro ventos? Para muitos, tudo o que é perdido deixa de ter dono. Ou melhor: o dono passa a ser o "sortudo" que encontra o que "relaxados" perdem. Nunca entendi isso... nem quero entender.
          É bem provável que pai e mãe nunca tenham dito a esse rapaz, quando pequeno, que ações como essa que ele praticou não são corretas. O que é do outro, quando perdido, continua sendo do outro. É muito simples esse ensinamento. A aprendizagem disso dispensa psicólogos ou profissionais afins. Sempre digo que as noções de ética, moral e bons costumes, por exemplo, foram transmitidas a mim por meus pais. E nem sempre os ensinamentos foram verbalizados. Em muitas ocasiões, o simples exemplo bastou. Muitos não sabem disso, mas deveriam saber.
          Há uns anos, garis de Vitória (ES) viraram notícia de jornal e foram destaque na TV quando encontraram dinheiro no lixo e devolveram o 'achado'. Vi muitas pessoas admiradas com isso. Só não entendi o porquê da admiração. Não entendi o estardalhaço que envolveu o episódio. Melhor dizendo: entendi! Ações assim, como a dos garis, são raras. Virou exceção o que deveria ser regra. Incrível! Atitudes honestas, hoje em dia, quase não são vistas ou praticadas. Ninguém deveria ficar espantado com a honestidade, meu Deus!
          E por falar em honestidade, ou em desonestidade, lembrei-me, agora, de "Onde está a honestidade?" (Noel Rosa e Francisco Alves), de 1933: "Você tem palacete reluzente, / Tem jóias e criados à vontade. / Sem ter nenhuma herança ou parente, /Só anda de automóvel na cidade... / E o povo já pergunta com maldade: / 'Onde está a honestidade? / Onde está a honestidade?' (...)".  Está por aí. Difícil é encontrá-la... Que pena!
          
*Leão, Danuza. Na sala com Danuza. São Paulo: Siciliano, 1992.
 
SEGREDO DE CORRUPÇÃO
“Quem não participa vira Francisco de Assis, santo mas pobre”

O penitente ajoelhou-se no confessionário. Impossível definir-lhe o rosto através da treliça de madeira. Tinha, porém, a voz nítida:
“Padre, há anos sou corrupto. Agora, estou arrependido.”
O arrependimento viera de um trauma de família: a filha adolescente aparecera com câncer. Ele fizera a promessa de virar a página das maracutaias. Narrou a sequência de notas frias, achaques, negociatas, propinas, paraísos fiscais, doleiros, evasão de divisas, sonegações e outros crimes do mundo em que vivia.
Perguntei-lhe se aceitava um café na casa paroquial. Não interessava a sua identidade. Queria saber como se faz um corrupto.
Na copa, detalhou como, ao longo dos anos, aprendera a mandar os escrúpulos as favas:
“Comecei numa empresa privada, para a qual eu fazia contatos com o poder público. No início, eu nem pensava em pegar dinheiro para o meu bolso. O patrão me convenceu de que os negócios têm regras que nem sempre condizem com a lei. E quem não participa vira Francisco de Assis, santo mas pobre".
“Eu acertava o contrato da obra, oferecia ao representante do poder público comissão de 10 a 15% do orçamento, marcava as cartas da licitação. Aprendi que, assim, certos políticos fazem seu caixa de campanha. O que custa 100 é aprovado para receber 500, e 200 vão para o caixa dois. Tudo sem nota fiscal, intermediação bancária, assinaturas. Vale o dinheiro vivo. Lucra a empresa, que ganha a obra; lucra o empresário, que superfaturou; lucra o político, pois as campanhas estão cada vez mais caras. E tudo pago pelo contribuinte”.
“Com o tempo, fiquei tentado a atuar do outro lado da banca. Entrei no serviço público por indicação de um político cuja hiena se alimentava na minha mão. Aprendi a fazer lobby, tráfico de influência, negociar intermediações, vender informações. Utilizava com frequência a triangulação: meu setor público conveniava-se com uma instituição aparentemente idônea através de projetos que, ditados por nós, eram preparados e enviados por ela. E a instituição contratava serviços a custos bem mais altos do que aqueles que o Estado paga diretamente. Nesse repasse ganham todos, onerando os cofres públicos.”
“Um dia me dei conta de que até nas pequenas coisas eu virara ladrão: carregava para casa caixas de lapiseiras e material de escritório e informática. O melhor eram as viagens, nas quais eu superfaturava contas de hotéis e restaurantes.”
“Meu único receio residia em meu padrão de vida. Morava em condições muito confortáveis para o meu nível salarial. Não chegava a ter medo, porque as pessoas são ingênuas, não prestam atenção na desproporção do cargo que ocupamos com o luxo de que desfrutamos. Nem sequer cobram dos políticos e dos partidos transparência nos gastos de campanha. É por isso que a reforma política não sai. E se sair duvido que acabe com o financiamento privado de candidaturas e obrigue todos os políticos eleitos a quebrarem seu sigilo bancário.”
“É muito dinheiro que vai para o ralo da corrupção. E há pessoas honestas que sabem disso, mas fazem vista grossa porque não ignoram que a corda rompe do lado mais fraco. Há também chefes e chefetes que não sujam as mãos com o dinheiro escuso, mas se apropriam das vantagens sociais e políticas das negociatas. Pagam a conivência com o seu silêncio”.
“Por que não existe um Disque Corrupção no qual o denunciante não tenha que se expor?”, perguntei.
"Poderia haver uma “caça as bruxas” alimentada por inescrupulosos interessados em manchar a honra de gente séria”, disse ele. “Mas garanto que, na peneira, muito graúdo não haveria de passar.”
Indaguei do penitente como pretendia agir daqui para a frente. Disse que enviara um relatório-denúncia ao Ministério Público e entregara cópias a jornalistas de sua confiança. E decidira se desfazer de tudo aquilo que fora adquirido em negociatas, favorecendo a manutenção de uma clínica para enfermos de baixa renda.
Ele me autorizou a publicar o relato. Dei-lhe a absolvição após meditarmos sobre o encontro de Jesus com o rico Zaqueu, que entregou metade de seus bens aos pobres e quatro vezes mais a quem havia fraudado (Lucas 19,1-10).

Frei Betto
“Caros Amigos”, nº 25, setembro 2005


4 comentários:

  1. Aff...
    fiquei tão idignado que te mandei um link pra voce ver por email hoje.

    =(

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  2. Continuemos, pois, indignados, Rondi.
    Abração e obriagado,
    Fábio

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  3. Fábio, querido, mesmo com atraso quero dizer que nunca é tarde para erguemos certas bandeiras.
    A indignação não será panfletária, jamais.
    Botemos "o bloco na rua". Para um bom capixaba este verso sempre será oportuno.
    Sairei neste seu bloco toda vez que me chamar.
    Meu beijo,
    Graça

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  4. Graça, querida, muitíssimo obrigado pela visita.
    E por falar em "bloco", estou concluindo um texto sobre o Sérgio Sampaio, que é um luxo, não é? Beijos imensos,
    Fábio

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