sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

"DE PORTO ALEGRE AO ACRE, A POBREZA SÓ MUDA O SOTAQUE"



Às amigas Ana Rita Louzada e Isabel Bastos, que fizeram leituras dramatizadas e inesquecíveis de O bicho e A bomba suja, respectivamente.

SERES TUPY
Pedro Luís
Seres ou não seres
Eis a questão
Raça mutante por degradação
Seu dialeto sugere um som
São movimentos de uma nação
Raps e hippies
E roupas rasgadas
Ouço acentos
Palavras largadas
Pelas calçadas sem arquiteto
Casas montadas, estranho projeto
Beira de mangue, alto de morro
Pelas marquises, debaixo do esporro
Do viaduto, seguem viagem
Sem salvo-conduto é cara a passagem
Por essa vida, que disparate
Vida de cão, refrão que me bate
De Porto Alegre ao Acre
A pobreza só muda o sotaque

Ref.: CD: "Seres tupy". Ney Matogrosso e Pedro Luís e a Parede, Vagabundo, Universal/Som Livre, 6024981751-3, Rio de Janeiro, 2004.
         
           SACOS DE LIXO
              Ignácio de Loyola Brandão

              'Você precisa dar um jeito! Assim não é possível! Precisa ver de onde vêm estes gatos ou cachorros. Devem ser de algum vizinho. Todas as noites, a mesma história! Os sacos  de lixo estão despedaçados. Reclamei dos lixeiros, outro dia, quando vieram pedir caixinha. Eles disseram que é o mesmo, com todos os lixos da rua. Uma porcariada, fica difícil para eles também. Quando apanham os sacos, estão abertos, rasgados, dilacerados, metade cai pelo caminho". Aconteceu, logo que nos mudamos para uma casa, na Aclimação, tranquilo bairro classe média de São Paulo, ainda não contaminado pela violência. Crianças brincam numa pracinha, vizinhos ficam conversando na porta, carros dormem na rua, há um enorme parque com lago, onde, antigamente, foi o jardim de aclimatação dos animais, antes de serem transferidos para o zoológico. As ruas eram limpas, tudo cuidado. Até que começou a aparecer o problema dos lixos rasgados. Terça, quinta e sábado são dias de o caminhão passar e recolher o lixo. Passa na madrugada, fazendo uma barulheira infernal. Na manhã seguinte à passagem do caminhão, a rua amanhecia cheia de porcaria. Todos começaram a reclamar. Mandaram cartas à empresa responsável pela coleta. Até que falaram com os lixeiros, numa tarde em que passaram para pedir caixinha. A indústria da caixinha é irritante. Da caixinha ao suborno e comissões para políticos e administradores, tudo parece fazer parte do esquema de corrupção que assola o país. Mas o mistério era: os lixos rasgados. Vizinhos reunidos, decidiu-se: seria feito um turno de vigilância. Cada noite, dois homens estariam à espreita, até se resolver o caso.
            Não foram necessárias muitas noites. Na primeira, um escondido atrás de uma árvore da praça e outro nos arbustos de um jardim, logo, solucionaram o caso. Que se mostrou de um primarismo que dispensava elocubrações à la Hercule Poirot ou Simenon. Assim que a rua se aquietou, eles surgiram. Eram dez. Vinham de pontos diferentes, mas pareciam ter programado. Chegavam com cuidado diante de cada casa, assuntavam, se havia alguma lâmpada acesa, passavam para a próxima. Eram meninos de seis a dez anos, se bem que ficava difícil dizer se o de seis não teria dez, ou o de dez não seria alguém de quinze. Magros, olhos fundos, cautelosos, chegavam nos sacos de lixo. Tentavam, primeiro, desamarrar a boca. Se estava complicado, rasgavam. E começavam uma autópsia, separando toda a porcaria que estava dentro. Latas, papéis, folhas. O que indicava ser resto de comida era apanhado e colocado numa lata de óleo, dessas de vinte litros. Compenetrados, parecendo técnicos especializados, sabendo o que queriam. Alguns não se continham, comiam ali mesmo nacos de pão, restos de macarrão, chupavam ossos. Nenhum dos vigilantes teve coragem de sair de seu posto, dar um carreirão. Estavam paralisados, chocados. Porque sabemos das coisas, lemos sobre elas, vemos na televisão, ouvimos conversas. No entanto, parecem distantes. E uma notícia em tevê vem pasteurizada, a imagem destrói a notícia, ela é fria. Outra coisa é olhar e ver, à sua frente, um bando de meninos, da idade de nossos filhos, se atirando furtivamente, e com medo, sobre sacos de lixo, em busca de comida. Se isto ocorre num bairro classe média de São Paulo – e de onde vêm estes meninos, quanto caminham pela noite? – imaginemos no resto do Brasil. Que formidável exército esfomeado percorre as ruas, à noite, enquanto deixamos sobras nos pratos e os restaurantes jogam comida no lixo. O desperdício mataria a fome de quantos? E, assim, dia desses, fui tomado por um calafrio, ao olhar o relógio, cujo ponteiro de segundos fazia tic-tic-tic. Naquele momento me veio uma revelação, uma iluminação. Como que em neon vermelho, vi à minha frente uma outra notícia: a de que, a cada segundo, morre uma criança no Brasil. De fome ou de subnutrição. Como segurar aquele ponteiro maldito? E adiantaria segurar? E quando chegar o dia em que este exército esfomeado nos engolir? Nos devorar canibalescamente? Poderemos reclamar? 

Fonte: Jornal do Brasil, domingo, 12/9/93 (caderno especial "Fome")


            O BICHO
           Manuel Bandeira              

            Vi ontem um bicho
            Na imundície do pátio
            Catando comida entre os detritos.

            Quando achava alguma coisa,
            Não examinava nem cheirava:
            Engolia com voracidade.

            O bicho não era um cão,
            Não era um gato,
            Não era um rato.

            O bicho, meu Deus, era um homem. 

           Rio, 27 de dezembro de 1947.
           BANDEIRA, Manuel. Belo belo.            

  

          NOTÍCIA DE JORNAL
           Fernando Sabino

          Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca, trinta anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante setenta e duas horas, para finalmente morrer de fome.
          Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do pronto- socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao homem, que acabou morrendo de fome.
          Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome.
          O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Médico Legal sem ser identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome.
          Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa – não é homem. E os outros homens cumprem deu destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum. Passam, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão.
          Não é de alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.
          E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo providências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.
          E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição, tombado em plena rua, no centro mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro, um homem morreu de fome.
          Morreu de fome.

Fonte: Jornal do Brasil, domingo, 12/9/93 (caderno especial "Fome")


SEM BARULHO
João Antônio

            Sobejava, assim, a pouca vergonha. Descalabro. A perversidade corria solta e sangrava à grande. Massacre após massacre, polícia no centro do redemoinho e só se sabia, pelas notícias, quem morria. Quem matava não aparecia.
            O povo, antes, dizia. Agora, só pensava: “Urubu tá comendo gente”.
            Então, um homem morreu de fome na estação de ônibus. Um brasileiro como tantos, alagoano, pouquinho mais de cinquenta anos e magreza áspera, na Rodoviária do Rio de Janeiro.
            Um dos molambos da área, dos que costumam baixar cedinho à rodo e acabam, pela presença, velhos conhecidos da indiferença. Passa, sujo, caquerado, pelos funcionários, esbarra nos homens da Polícia Militar, atrapalha o conforto relativo e o bem-estar dos passageiros à espera dos ônibus interestaduais.
            Cedo. Veio trêmulo, troncho, o saco de farinha imundo e quase vazio às costas. Arriou na poltrona e sofreu quieto, a cabeça bandeou e pendeu um tanto para a esquerda e endureceu. De todo.
            Ali apagou sem barulho. Tempo correu, alguém se encabulou com aquele corpo imóvel e continuado. Foi tocado. E deram com o morto. Descobriram-se coisas no saco imundo. Um nome na carteira profissional. Inútil, não tinha trabalho ou patrão. Tinha morrido à míngua, só feito Job. Sua sujeira e sua solidão eram de causar nojo.
            Veio alguém com um saco de lixo, plástico preto. Um outro arranjou, cobriu o corpo da cintura para cima. Nem foi preciso que descruzassem os pés pretos dentro da sandália fuleira. Assim, o morto de fome, ensacado da cintura para cima, já não incomodava.
            Os outros puderam, em paz, cruzar as pernas, ler, conversar, ir e vir, enquanto esperavam o ônibus. Ele já não perturbava sequer a visão e a pressa da rodoviária, segunda grande do país.
            Um Raimundo, descobriu a polícia. Com certeza nada ouviu ou soube ao redor da palavra solidariedade. Sujo, só alterava um pouco; depois, morreu de fome sem barulho. Também não fez agito depois de morto – não teve quem lhe reclamasse o corpo.
            Raimundo, solteiro ou casado, morreu como nem os cachorros morrem na cidade.
            Passou.
            A cidade tem litoral rico, e terra tão fecunda forneceria três colheitas todo ano, milho e feijão. A firme Bolsa de Valores do país, a poderosa emissora de televisão, o segundo produtor industrial do Brasil, o Carnaval maior festa popular do mundo, tem raio laser, computadores magníficos, infalíveis, uma ponte tão bonita e grande atravessa a baía. A cidade com alguns milhões de pessoas, chamada de muito heroica e gentil.


Fonte: Jornal do Brasil, domingo, 12/9/93 (caderno especial "Fome")


A BOMBA SUJA
Ferreira Gullar

Introduzo na poesia
a palavra diarreia.
Não pela palavra fria
mas pelo que ela semeia.

Quem fala em flor não diz tudo.
Quem me fala em dor diz demais.
O poeta se torna mudo
sem as palavras reais.

No dicionário a palavra
é mera ideia abstrata.
Mais que palavra, diarreia
é arma que fere e mata.

Que mata mais do que faca,
mais que bala de fuzil,
homem, mulher e criança
no interior do Brasil.

Por exemplo, a diarreia,
no Rio Grande do Norte,
de cem crianças que nascem,
setenta e seis leva à morte.

É como uma bomba D
que explode dentro do homem
quando se dispara, lenta,
a espoleta da fome.

É uma bomba-relógio
(e relógio é o coração)
que enquanto o homem trabalha
vai preparando a explosão.

Bomba colocada nele
muito antes dele nascer;
que quando a vida desperta
nele, começa a bater.

Bomba colocada nele
pelos séculos de fome
e que explode em diarreia
no corpo de quem não come.

Não é uma bomba limpa:
é uma bomba suja e mansa
que elimina sem barulho
vários milhões de crianças.

Sobretudo no nordeste
mas não apenas ali,                                                                                                          
que a fome do Piauí
se espalha de leste a oeste.

Cabe agora perguntar
quem é que faz essa fome,
quem foi que ligou a bomba
ao coração desse homem.

Quem é que rouba a esse homem
o cereal que ele planta,
quem come o arroz que ele colhe
se ele o colhe e não janta.

Quem faz café virar dólar
e faz arroz virar fome
é o mesmo que põe a bomba
suja no corpo do homem.

Mas precisamos agora
desarmar com nossas mãos
a espoleta da fome
que mata nossos irmãos.

Mas precisamos agora
deter o sabotador
que instala a bomba da fome
dentro do trabalhador.

E sobretudo é preciso
trabalhar com segurança
pra dentro de cada homem
trocar a arma da fome
pela arma da esperança.
GULLAR, Ferreira. Dentro da noite veloz. 3ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.



         

3 comentários:

  1. Meu amigo, entre tanta coisa boa que já nos ofertou em Doncovimeproncovô essa postagem é a que mais me edificou.

    Parabéns!

    Abração,

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  2. Pois é, Rodrigo, é tão bom poder dividir esses textos maravilhosos, não é? Tenho de agradecer - e muito! - a meu amigo Rondi Desteffani, que me "iniciou" nesse "trem" de 'blog'. 'Taí' um veículo maravilhoso por meio do qual podemos fazer a partilha de preciosidades como os textos aí de cima. Antes, meu amigo, como era difícil... Mesmo assim, eu partilhava: xerografava e saía distribuindo. Abração e, mais uma vez, muitíssimo obrigado. É um luxo sua visita. Fábio

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