sábado, 24 de dezembro de 2011

"MISÉRIA É MISÉRIA EM QUALQUER CANTO..."



            MISÉRIA
            Arnaldo Antunes / Sérgio Britto / Paulo Miklos

            Miséria e miséria em qualquer canto
            Riquezas são diferentes
            Índio mulato preto branco
            Miséria é miséria em qualquer canto
            Riquezas são diferentes
            Miséria é miséria em qualquer canto
            Filhos amigos amantes parentes
            Riquezas são diferentes
            Ninguém sabe falar esperanto 
            Miséria é miséria em qualquer canto 
            Todos sabem usar os dentes
            Riquezas são diferentes
            Miséria é miséria em qualquer canto 
            Riquezas são diferentes
            A morte não causa mais espanto 
            Miséria é miséria em qualquer canto 
            Riquezas são diferentes
            Miséria é miséria em qualquer canto 
            Fracos doentes aflitos carentes
            Riquezas são diferentes
            O sol não causa mais espanto
            Miséria é miséria em qualquer canto
            Cores raças castas crenças
            Riquezas são diferentes

           
Ref.: CD: "Miséria". Titãs, Õ blésq blom, WEA, M257042-2, Rio de Janeiro, 1989.


O PRIMEIRO MILAGRE
Nélida Piñon

            Maria consola a fome do visitante. Só dispõe de sonhos para repartir naquela hora do dia ensolarado. O visitante resiste à benevolência humana que não lhe cura a vida. A vida se define pela abastança, esta é a rota da felicidade.
            Maria, então, recorre ao filho. A partir do olhar da mãe, Jesus aceita promover o conceito da fartura. Para cumpri-lo, inaugura ali mesmo, perto de Maria, seu primeiro milagre. Decide, de um único pão, reproduzir mil outros, em um só golpe.
            Abre, fulgurante, as comportas do amor, sob a guarda da mãe. Não teme empobrecer porque se privou dos próprios bens. Sob a custódia da mulher, inventa símbolos, instaura grande carnaval moral.
            Inaugura, pois, a série de milagres com a reprodução dos pães. O gesto alcança dimensão cênica. Não quis milagre discreto, educado, perpetrado no escuro, no recesso do lar. Refutou também a turbulência dos amantes que, em nome da falsa generosidade da carne mutuamente saciada, interrompem as iguarias privadas da luxúria, para deixar tombar dos lábios entreabertos, em plena agitação do beijo, as migalhas do seu amor carnívoro. Decerto pensando, com o gesto distraído, atenuar a miséria de quem a vida expulsou do banquete.
            Fervoroso adepto do alvoroço dos sentimentos humanos, Jesus persiste nos milagres. Aspira implantar com eles a misericórdia, erradicar a penúria. Milagre é um ato natural, quando se tem em mira a incansável ilusão humana. Ou a fé, este estandarte que mesmo em frangalho faz a alma tremular ao indício de qualquer brisa.
            Cristo perambula pelas aldeias. Sem cajado, mas dono do verbo revolucionário. Sua eloquência, herdada de Deus e testada anteriormente pelos profetas, bane a miséria e a injustiça do seu território moral. O trigo deve estar ao alcance do homem. Para tanto, banaliza o bem comum e censura aquele que descrê do ato transformador capaz, por si só, de substituir a carência pelos mananciais da fartura. Irmão do homem não é o que brame a palavra inconsequente em mesquinha imitação dos gestos de Deus.
            Este Deus, antigo protagonista da Bíblia, é de uma natureza essencialmente teatral. Inventou a terra, mas, em prol do livre arbítrio, deixou o espetáculo ao encargo da consciência do homem.
            Cristo escuta os homens. A encenação da fome, levá-la ao palco da realidade, aviltaria os atores do próprio drama. Seu Deus exige provas públicas, sim, de fé, mas aposta na prática do seu milagre. Assim, Jesus convoca seguidores. Para formar, quem sabe, a legião que se insurja contra a miséria em prol da multiplicação dos pães a cada difícil amanhecer. Para pisar o palco do cotidiano, gargalhar, soluçar, amar, esse adepto do Cristo deve aprender a inclinar-se ante os acordes da piedade que o coração anuncia. Ao som da trombeta, proclamar que, antes de Cristo, o próprio homem exigiu primeiro o direito aos recursos da vida. E quem lhe siga as pegadas desamarra os nós da indiferença, repudia a estética do canibalismo, que expurga feios, desdentados, miseráveis.
            Ao seguir de perto o coração em chagas do Cristo, precisa rasgar as cortinas da casa, que vedam a luz, e abrir as portas do coração a machadadas. Espalhar assim a doçura e espantar o medo da morte. É o descaso pela vida que assopra os princípios da cobiça, da avareza. A agonia oriunda do ouro esquarteja as ilusões.
            O espírito desabrido, que Cristo estimula, apunhala os dias vãos, decepa as unhas de mandarim que cegam os olhos para que não se enxerguem os pobres, de gengivas descarnadas.
            Enquanto se aguarda a totalidade do Cristo, os senhores do espetáculo da terra prevalecem. Para eles a verdade já não ofende. Deus não lhes cruza as portas. Guardam, à entrada da casa, os sinais do desprezo pelo próximo. O frio do desamor é o manto que os resguarda.
            Os miseráveis da terra não levam em seus rostos os nossos rostos. Não espelham em sua humanidade o nosso ser. Somos, em tudo, antagônicos. Nós somos a espécie que Deus quis preservar. Eles, os miseráveis, os que merecem morrer. Só Jesus, oriundo da fé, aninha-se entre eles à espera do milagre. Cabe agora ao homem a coragem de multiplicar os pães e fazer afinal o seu primeiro milagre.

Fonte: Jornal do Brasil, domingo, 12/9/93 (caderno especial FOME)


6 comentários:

  1. "Os miseráveis da terra não levam em seus rostos os nossos rostos. "
    Um texto maravilhoso.

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  2. Obrigado, Rondi e Gabriela, pelas visitas. O texto da Nélia é lindo mesmo.
    Bjs,
    Fábio

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  3. Rondi, querido, este 'blog' também é seu. Bjs, Fábio

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  4. Meu amigo, maravilhoso texto! Parece lugar comum falar em miséria, em desigualdades. Que seja!, precisamos falar muito mais ainda: afinal, nosso milagre exige muita fé e muita luta.

    Abração, obrigado pelo texto em momento tão propício!

    Rodrigo Davel

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  5. Uma vez que o sentido do NATAL tem sido tão... , é sempre bom "esbarrar" em textos como o da Nélida. Obrigado pela visita. Abração!
    Fábio

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