terça-feira, 6 de dezembro de 2011

'NEM TODOS OS UNGUENTOS VÃO ALIVIAR'



            SAUDADE
            Chico César - Moska 

            Saudade a lua brilha na Lagoa
            Saudade a luz que sobra da pessoa
            Saudade igual farol engana o mar
            Imita o sol
            Saudade sal e dor que o vento traz

            Saudade o som do tempo que ressoa
            Saudade o céu cinzento a garoa
            Saudade desigual
            Nunca termina no final
            Saudade eterno filme em cartaz

            A casa da saudade é o vazio
            O acaso da saudade fogo frio
            Quem foge da saudade
            Preso por um fio
            Se afoga em outras águas
            Mas do mesmo rio

            CD: Maria Bethânia, Tua, Biscoito Fino, BF 914, Rio de Janeiro


             'NEM TODOS OS UNGUENTOS VÃO ALIVIAR'
             Por Fábio Brito
           
            "A vida é o fio do tempo
              A morte é o fim do novelo"
                                      Dori Caymmi / Paulo César Pinheiro 


            "Nem todos os unguentos vão aliviar"* a dor da 'despedida' das pessoas queridas. Bem disseram que é difícil entender a vida. Para mim, mais difícil que entender a vida é compreender a morte ou dela chegar perto. Não sei até quando a "grande dama" vai continuar sendo um enigma, um mistério para mim. Desde a mais tenra idade, preocupo-me com ela, faço perguntas constantemente e não encontro respostas. O que sei é que tenho de concordar com D. Estamira**: "A morte é dona de tudo". Impossível negar isso.
             Há um tempo, disseram-me que “viver é colecionar lutos”.  Quando ouvi isso, eu não tinha sequer a noção das perdas que viriam. Mesmo assim, dei atenção redobrada a essas palavras, que me deixaram marcas indeléveis. O tempo foi passando, as tais perdas foram chegando, a vida foi desbotando um pouquinho. A saudade, sempre imponente, foi ganhando força, foi assimilando os contornos tão bem delineados na canção "Saudade", de Moska e Chico César, doída ao extremo nas vozes de Lenine e Bethânia.
            Perda e saudade são palavras que nos levam, imediatamente, ao "campo-santo", só para usar uma expressão de nossa poeta Adélia Prado, para quem, "no cemitério é bom de passear". Lá, "a vida perde a estridência". E houve um tempo em que, para mim, cemitério era apenas um lugar distante e visitado por pessoas que iam lá rezar por seus entes queridos, levar flores e cuidar das sepulturas. Hoje, é um lugar que, vez ou outra, visito, mas não necessariamente em novembro. Ir até lá não deixa de ser um exercício doloroso. Quando novembro se aproxima, é sempre a Adélia, mais uma vez, que chega acarinhando minha saudade: "Passou Finados não fui lá, aniversário também não. / Para quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?"*** Mesmo assim, vou... e venho notando que já consigo enxergá-lo como um lugar "quase comum". Se "a morte é dona de tudo", esse lugar tem de ser comum. Precisa ser comum. Quando vejo crianças e adolescentes com seus skates brincando nas calçadas do cemitério por que passo frequentemente, constato que o "campo-santo" é um lugar como outro qualquer: nele, cabem até brincadeiras. 
           É... se morte e brincadeira têm tudo a ver, estamos, então, combinados: a morte é uma grande diversão dos deuses. À semelhança do que fazemos com os ioiôs,  eles, os deuses, brincam conosco: soltam e puxam, inúmeras vezes, estes pobres mortais que somos (até quando a 'cordinha' vai aguentar?). Assim, testam a capacidade de resistência das "criaturazinhas" frágeis que somos. Talvez seja melhor mesmo pensarmos na morte como um brinquedo, uma diversão de alguma divindade. Caso contrário, seria muito mais difícil suportá-la. 
           Suportando ou não a ideia da morte, é sempre impossível, para mim, não 'me' fazer, constantemente, esta pergunta: por que razões, somos, de repente (a morte é sempre "de repente"), privados do convívio com as pessoas que amamos? Nunca consegui entender isso, mas sempre entendi que somos os únicos animais que têm consciência de seu fim. Daqui a cinco, dez, quinze anos, quem estará por aqui?, pergunto constantemente. Melhor não pensar, não é mesmo? Melhor é ir vivendo.  
            Dia desses, assistindo aos DVDs da novela "Dancin' Days", que foi ao ar em 78, ou seja, há exatos 33 anos, foi difícil não chorar. Meu Deus, quanta saudade de tudo! Para usar uma expressão bem antiga, "rebobinei a fita" imediatamente. Voltei àquele 1978. Tive uma saudade imensa de tudo, principalmente da inocência perdida. Tive saudade do descompromisso. Saudade de um tempo em que eu não precisava ter preocupações, porque outros as tinham por mim. Saudade de um tempo em que o corpo e a mente eram muito mais vigorosos (com o passar dos anos, fui percebendo - claro! - que os "vinte e poucos anos" têm um vigor incomparável). Ah! Que saudade de meu pai; saudade de minha avó, de meu avô, de muitos parentes, de muitos amigos. Assistindo a esses DVDs, deixei que os reservatóros sentimentais vazassem. Nessas horas, peço socorro a meus poetas (sempre eles!): "No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / Eu era feliz e ninguém estava morto. / Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, / E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer. (...)". Que consolo! Pois é, a fileira da bola fora, como diz nossa Elisa Lucinda, com o passar dos anos, só vai aumentando. Não há como evitar. Ficam, no entanto, as belas lembranças, as belas recordações, os carinhos guardados. 
             E por falar em carinhos guardados, não faz muito tempo, fui ao velório de uma "tia-avó-mãe" de dois amigos. Solteira e sem filhos, essa tia viveu quarenta e seis anos com a família que ela escolheu. Enquanto aguardávamos a hora do sepultamento, um deles me contou histórias ternas e comoventes sobre essa "tia": quando pequenos, se iam dormir com os pés ou o rosto "não muito limpos", mesmo depois do banho, ela, cuidadosamente, providenciava um pano úmido. Nas manhãs frias, minutos antes de saírem para a escola, ela, rapidamente, passava um roupa para que o tecido, ainda 'quentinho', agasalhasse-os. Impossível esquecer esses pequenos/grandes carinhos. Pois é, se a morte vai "levando tudo que encontra pelo caminho", fica o mais importante: o amor, que não acaba. 
             Lembranças, recordações, carinhos guardados e  o fato - estarrecedor - de que, um dia, o fim chegará democraticamente para todos. Dias atrás, lendo uma entrevista com Fernanda Montenegro, percebi que as preocupações da humanidade acerca da morte são bem semelhantes: "O engraçado é que só me toquei da minha finitude depois de perder o Fernando. Claro que, antes, me observava no espelho e acusava a passagem dos anos. Mas não percebia que meu tempo está se esgotando, uma constatação terrível. Experimentar o desmonte psíquico, o desmonte muscular, o desmonte existencial... Algumas pessoas já me olham com assombro: 'Ainda fala! Ainda se locomove!'"*
            Seria melhor, então, que não tivéssemos a consciência do fim? Sei lá... Será que a vida "só tem graça" por causa da morte? Parafraseando John Lennon, a vida é o que vai acontecendo enquanto vamos fazendo planos e mais planos. Deixemos tudo correr... Para onde? Não sei! Decididamente, não sei!
* Verso da canção O que será (À flor da pele), de Chico Buarque;
** Estamira (documentário, Brasil, 2006);
*** "Poema esquisito" (In Bagagem).
ENTÃO VALE A PENA
Gilberto Gil
Se a morte faz parte da vida
E se vale a pena viver
Então morrer vale a pena
Se a gente teve o tempo para crescer
Crescer para viver de fato
O ato de amar e sofrer
Se a gente teve esse tempo
Então vale a pena morrer

Quem acordou no dia
Adormeceu na noite
Sorriu cada alegria sua
Quem andou pela rua
Atravessou a ponte
Pediu bênção à dindinha Lua
Não teme a sua sorte
Abraça a sua morte
Como a uma linda ninfa nua

GIL, Gilberto. Todas as letras. Org. Carlos Rennó. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

5 comentários:

  1. Fábio, meu amigo, suas palavras invadiram-me e reviraram lembranças e sentimentos. Não me lembro de ter lido algum texto seu com tamanha melancolia, perdoe-me a avaliação. Sempre tão sarcástico, irônico... Acredito, catolicamente, que sei um pouco do que sente, e sentiu, com este texto. Pois, já pude ter alguma conversa sobre o assunto contigo e percebi em seus olhos tudo o que grafou.

    Meu amigo, excelente texto! Reflexões (?) que nos freiam a impulsividade cotidiana e nos remetem ao fim do novelo.

    Abração, amigo,

    Rodrigo Davel

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    1. Obrigado, Rodrigo. Não é fácil lidar com esse tema, mas, aos poucos, estou conseguindo. Aos poucos mesmo! Lentamente... Abração.

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  3. Eu tinha lido esse texto, sim, senhor!!! Até comentei...
    Ué (rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs) está apagando meus comentários agora?
    Lembrei... vc me mandou por e-mail.

    Recordar mesmo das coisas... é conversar com Dylla... uma fonte inesgotável de histórias... histórias interessantíssimas!!! Conversar com ela... é ter momentos de boa conversa e muito riso!!!

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    1. Obrigado, Fê, pela visita ao 'blog'. Concordo com você: minha mãe é um excelente papo. Beijos.

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