quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

UM 'CHÂTEAU', POR FAVOR




O TEATRO DOS VAMPIROS
Marcelo Bonfá / Dado Villa-Lobos / Renato Russo
Sempre precisei de um pouco de atenção
Acho que não sei quem sou
 Só sei do que não gosto 
 E destes dias tão estranhos
 Fica a poeira se escondendo pelos cantos.
 Este é o nosso mundo: 
O que é demais nunca é o bastante
(...)

UM CHÂTEAU , POR FAVOR
Por Fábio Brito

Sem titubear, responda, se puder, a esta pergunta meio capciosa: em uma segunda-feira, na chuva, quase anoitecendo, que motivos teria uma moça bem vestida (estava, inclusive, “de salto alto”) para lavar um carro? É isso mesmo! Ela estava lavando um carro com balde e pano, o que é mais trabalhoso ainda. Não consegue responder? Nem eu! Entretanto, lá vai uma tentativa de resposta: o carro lhe dá “status”, poder. Ela tem, afinal, um bem que, aos olhos de muitos, é “passaporte” para ser aceita nesta sociedade de que fazemos parte.  Assustou-se?! Mas é isso mesmo. Hoje, o que importa é a pessoa “ter”. Ter o quê? De preferência, algo valioso. Assim, a pessoa estará “feita”, como dizem. Quem não tem algo de valor, ou quem não tem algo, não merece andar por aí. Não merece existir. E carro, como sabemos, é visto, desde tempos imemoriais, como o elemento que separa os “que podem” dos que “não podem”. A moça que lavava seu carro na chuva sabe que, para ela “continuar sendo aceita” neste mundinho, terá de conservar direitinho seu precioso bem. Alguém pode dizer que, hoje, todos podem ter um carro. Nem todos! Nem todos!
É isso! Para essa moça, sua felicidade, imagino, é ter um carro e sair com ele por aí. Vez ou outra, deve convidar alguns amigos para uns passeios “legais”. Ela deve ter trabalhado bastante para comprar seu “brinquedo/passaporte”. Deve ter levado anos sonhando com o momento em que, um dia, teria um carro para mostrar a amigos e, talvez, a alguns desafetos. Pode ser maldade minha, mas isso pode ser a explicação do sacrifício de lavar o carro em plena chuva e, “ainda por cima”, com roupa “de festa”. Que cena!
Em verdade, "lavar o caro" nunca soou para mim como algo comum. Para muita gente, conservar o carro não é como conservar outro bem material qualquer. O cuidado que as pessoas têm com esse bem não é o mesmo que elas têm com uma roupa, por exemplo. E não é pelo preço do carro, que é bem mais alto - lógico! - que o de outros bens. Há mais mistérios por trás disso. Em se tratando do carro, o cuidado que muitos têm extrapola a simples vontade de querer que o objeto dure mais tempo. O cuidado excessivo com ele - já vi famílias inteiras lavando 'um' carro! - vai além. Esse "lavar o carro" é emblemático. Por trás disso, está, como já dissemos, o que a posse desse bem simboliza, representa.  
Pois é, essa história de lavar carros (ou de 'se' ter um carro!) nada mais é que o início de um assunto bem comum até:  "consumismo e aceitação", história mais do que “batida” em textos e conversas que rolam aos borbotões por aí. Voltemos a frisar: é por meio do consumo (de um "carro" ou de qualquer outro bem, mas principalmente de um carro) que as pessoas são "bem vistas", são aceitas. Temos de consumir! Somos obrigados a consumir! Se o produto for um carro, melhor ainda. Associado a ele, ao carro, está, como dissemos, o poder, o "status" e muitas "garantias". Quem consome tem dinheiro, não é mesmo? Ou parece que tem... Se se rompe a barreira econômica, outras (barreiras) também poderão ser transpostas.  
Consumo, então, é palavra de ordem. E isso já nos leva a outros questionamentos. Se consumir é uma ordem, os “shoppings” não nos deixam mentir.    Felicidade é consumo;  consumo é aceitação. Agora, então, quando o Natal e o fim de ano se aproximam, muita gente fica até deprimida se não for às compras. Nessa época – e noutras datas comemorativas, é claro! – brota uma “necessidade” incontrolável de as pessoas mostrarem que elas têm amor – ou afeto, ou carinho – por outras. Até aí, tudo bem. Quem não gosta de demonstrar amor, carinho e afeto? Quem não gosta de ser “gostado”? Todos nós, não é mesmo? O problema é que, para muitos, essa demonstração só é possível via presente. Ou seja, sem presente, ninguém consegue dizer que ama outra pessoa. Ninguém consegue demonstrar afetos e carinhos. Tristes tempos!
Nessa estrada da demonstração de algum sentimento por meio de presentes e mais presentes, a poeira não para de subir. Quanto mais a pessoa se sente obrigada a comprar e a receber (caso contrário, não há amor) presentes, mais ela se endivida. Lá vem outro questionamento: é exatamente isso de que nossa sociedade capitalista precisa. Quando mais a pessoa se endivida, mais ela precisa trabalhar. Hoje, ninguém mais vive do salário que recebe. As despesas estão sempre muitos quilômetros à frente. Constantemente, vejo pessoas dizerem que têm uma despesa mensal altíssima. E é exatamente por isso que elas trabalham muito. Sobre esse ganhar mais para gastar mais, impossível não lembrar um fragmento de “Eu sei, mas não devia”*, uma das crônicas mais bonitas – e mais divulgadas – de Marina Colasanti: “A gente se acostuma (...) a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra. (...)”
E deixa o povo trabalhar mais! E deixa o povo ter dois, três empregos! E deixa o povo enlouquecer de tanto consumir. Quanto a mim, estou longe das lojas. Tento estar, melhor dizendo. Vez ou outra, passo por algumas das quais, não raro, saio arrependido. Fica sempre a sensação de ter comprado algo de que eu não precisava e de que não vou precisar tão cedo. Ainda bem que arrependimento não mata... Só dá gastrite! Argh!

COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.


CONSUMO, LOGO EXISTO
Frei Betto
Ao visitar em agosto a admirável obra social de Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador, ouvi-o contar que na infância, vivida ali na pobreza, ele não conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha, feijão, frutas e hortaliças. "Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse. O eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc. A economia de mercado, centrada no lucro e não nos direitos da população, nos submete ao consumo de símbolos. O valor simbólico da mercadoria figura acima de sua utilidade.
Assim, a fome a que se refere Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável. É próprio do humano - e nisso também nos diferenciamos dos animais –manipular o alimento que ingere. A refeição exige preparo, criatividade, e a cozinha é laboratório culinário, como a mesa é missa, no sentido litúrgico. A ingestão de alimentos por um gato ou cachorro é um atavismo desprovido de arte. Entre humanos, comer exige um mínimo de cerimônia: sentar à mesa coberta pela toalha, usar talheres, apresentar os pratos com esmero e, sobretudo, desfrutar da companhia de outros comensais. Trata-se de um ritual que possui rubricas indeléveis. Parece-me desumano comer de pé ou sozinho, retirando o alimento diretamente da panela. Marx já havia se dado conta do peso da geladeira. Nos "Manuscritos econômicos e filosóficos" (1844), ele constata que "o valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor de seus respectivos bens. Portanto, em si o homem não tem valor para nós." O capitalismo de tal modo desumaniza que já não somos apenas consumidores, somos também consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos que me cercam é que determinam meu valor social. Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo ignaro da pobreza e à cultura da exclusão. Para o povo maori da Nova Zelândia cada coisa, e não apenas as pessoas, tem alma. Em comunidades tradicionais de África também se encontra essa interação matéria-espírito. Ora, se dizem a nós que um aborígene cultua uma árvore ou pedra, um totem ou ave, com certeza faremos um olhar de desdém. Mas quantos de nós não cultuam o próprio carro, um determinado vinho guardado na adega, uma joia? Assim como um objeto se associa a seu dono nas comunidades tribais, na sociedade de consumo o mesmo ocorre sob a sofisticada égide da grife. Não se compra um vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire um carro, e sim uma Ferrari; não se bebe um vinho, mas um Château Margaux. A roupa pode ser a mais horrorosa possível, porém se traz a assinatura de um famoso estilista a gata borralheira transforma-se em Cinderela. Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura neoliberal nos faz acreditar que delas emana uma energia que nos cobre como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder.
Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles tocamos. E se somos privados desse privilégio, o sentimento de exclusão causa frustração, depressão, infelicidade. Não importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados, é alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia. Ela se torna também objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela, mas não é ela: bens, cifrões, cargos etc. Comércio deriva de "com mercê", com troca.
Hoje as relações de consumo são desprovidas de troca, impessoais, não mais mediatizadas pelas pessoas. Outrora, a quitanda, o boteco, a mercearia, criavam vínculos entre o vendedor e o comprador, e também constituíam o espaço das relações de vizinhança, como ainda ocorre na feira. Agora o supermercado suprime a presença humana. Lá está a gôndola abarrotada de produtos sedutoramente embalados. Ali, a frustração da falta de convívio é compensada pelo consumo supérfluo. "Nada poderia ser maior que a sedução" - diz Jean Baudrillard - "nem mesmo a ordem que a destrói." E a sedução ganha seu supremo canal na compra pela internet. Sem sair da cadeira o consumidor faz chegar à sua casa todos os produtos que deseja. Vou com frequência a livrarias de “shoppings”. Ao passar diante das lojas e contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam indagando se necessito algo. "Não, obrigado. Estou apenas fazendo um passeio socrático", respondo. Olham-me intrigados. Então explico: Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo. Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por vendedores como vocês, respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz".

Um comentário:

  1. Fábio, meu amigo, como é bom esse tal de blogue, não é? Como agente aprende. Acabo de aperfeiçoar-me, um pouco mais, em matéria humana. Sua crônica, como sempre - recheada de humor e talento, esta ótima. E o texto de é "coisa" fina de se ler.
    Amigo, parabéns por semear tão bem "seu povo".

    Abração,

    Rodrigo Davel

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