domingo, 25 de dezembro de 2011

"VAI EU, UM AMIGO MEU E QUATRO 'MULÉ'"



PALAVRAS
Sérgio Brito / Marcelo Fromer

Palavras não são más
Palavras não são quentes
Palavras são iguais
Sendo diferentes
Palavras não são frias
Palavras não são boas
Os números 'pra' os dias
E os nomes 'pra' as pessoas
Palavras eu preciso
Preciso com urgência
Palavras que se usem
Em casos de emergência
Dizer o que se sente
Cumprir uma sentença
Palavras que se 'diz'
Se 'diz' e não se pensa
Palavras não têm cor
Palavras não têm culpa
Palavras de amor
'Pra' pedir desculpas
Palavras doentias
Páginas rasgadas
Palavras não se curam
Certas ou erradas
Palavras são sombras
As sombras viram jogos
Palavras 'pra' brincar
Brinquedos quebram logo
Palavras 'pra' esquecer
Versos que repito
Palavras 'pra' dizer
De novo o que foi dito
Todas as folhas em branco
Todos os livros fechados
Tudo com todas as letras
Nada de novo debaixo do sol

CD: Titãs, "Õ blésq blom". WEA M257042-2.


“VAI EU, UM AMIGO MEU E QUATRO MULÉ”
 Por Fábio Brito


Graças a Rubem Braga, aprendi que a crônica pode “nascer” a qualquer momento e em qualquer lugar. Às vezes, de uma conversa que ouvimos “de passagem”, nasce uma (crônica). Pois foi isso que me ocorreu há alguns dias. Ou melhor, é isso que me ocorre constantemente. Em uma caminhada “notúrnica”, pude ouvir o "brilhante de dezoito quilates" do título aí de cima. Sentado no encosto de um banco em um ponto de ônibus e com os pés no assento, um rapaz, ao celular, disse essa “pérola” exatamente no momento em que por ele eu passava.
 Para exercitar minha imaginação, fiquei pensando no lugar aonde o “eu”, o “amigo meu” e as “quatro mulé” poderiam ir. Quem arrisca uma resposta? Certamente, para um lugar em que se fala a língua de todos nós, para espanto dos puristas. Tocaremos nesse assunto daqui a pouco.
Ah! Ainda tentei exercitar meus conhecimentos matemáticos: se “é” quatro “mulé”, façamos, então, as contas. “Arme e efetue”: o “eu” fica com uma; o “amigo meu”, com outra; o carinha (acho que era homem) com quem o “eu” conversava fica com outra. Sobrou uma “mulé”, não é mesmo? Será que é uma reserva? Hum... pensemos, pois, sobre esse problema seriíssimo. Não vejam machismo nisso, por favor.
Voltando ao que o rapaz disse, o certo é que houve comunicação. Muitos afirmarão isso, inclusive eu. E houve mesmo! O interlocutor do rapaz entendeu, claramente, que seis pessoas iriam ao tal lugar: o “eu”, o “amigo meu” e as “quatro mulé”. Ao contrário do que muitos pensarão, não “torci o nariz” quando ouvi o que o rapaz disse. Esse moço pertence – é óbvio! – a um grupo social. E é exatamente nos grupos sociais que as variações linguísticas têm sua origem.
 A fim de espantarmos de vez os preconceitos, é bom que se saiba que as diferenças de linguagem são, em verdade, um distintivo (ou um emblema) dos grupos sociais. Assim, essas diferenças contribuem para a constituição da identidade desses grupos. Tais variantes, em grande parte, correspondem a grupos até certo ponto definidos: as pessoas mais jovens, por exemplo, têm seu linguajar próprio, assim como as mais velhas e por aí segue a história.
Há que se considerarem ainda as situações de comunicação. Claro que ninguém vai tomar uma caipirinha no botequim da esquina, por exemplo, e usar a variante culta da língua! Deixe a ‘erudição’ para outras situações. Em uma sala de aula, por exemplo, se o aluno (de Letras!) diz que precisa “coisar” algo, aí é desleixo com a língua. Se, em um vestibular, pede-se o emprego da variante culta da língua, é preciso usá-la. No entanto, muitos “misturam” tudo e transpõem a linguagem do “facebook” - só para citar um exemplo - para a redação do vestibular. Derrapada feia! Não seria deslize se, na proposta, a utilização da linguagem do “face” fosse permitida. É preciso cuidado. Cuidar da língua é essencial. Caso contrário, ela se esfacela.    
A língua, como sabemos, é um organismo vivo e, como tal, vai incorporando mudanças, o que é muito salutar. E tais mudanças não se relacionam somente à linguagem oral, mas à escrita também, embora, neste caso, essas mudanças ocorram com mais vagar, com mais lentidão. Havendo ou não mudanças, é importante que se entenda que há diferenças entre linguagem oral e linguagem escrita. Muita gente parece não entender isso. Assim, o que venho notando – e já faz um tempinho – é que está havendo uma volta ao período fonético da língua portuguesa. Ou seja, a escrita tem se mostrado como a reprodução fiel da fala. E como é difícil fazer os alunos entenderem isso! Não deveria ser tão difícil, não é mesmo?! Frequentemente, chegam-me textos escritos que são a “pura reprodução da fala”. Se tentarmos localizar a origem disso, vamos esbarrar na falta de contato com o texto escrito, claro! Querem exemplos? Há muitos! Quem, por exemplo, "conclui" (?) o ensino médio em poucos meses terá pouquíssimo contato - ou quase nenhum! - com a leitura. E dificilmente escreverá... As pessoas, neste mundo "das tecnologias" (nada contra a tecnologia!) em que vivemos, estão lendo muito pouco. E isso não é um mal de que padece somente a garotada. Sem leitura (a tradicional mesmo!), tempos sombrios vêm por aí... ou já chegaram?


  
           

10 comentários:

  1. Fábio, você distinguiu bem a variação linguística da impregnação da escrita pela fala. Trabalhei este ano com o 6º ano, mais uma vez, e percebi como, nesta fase do aprendizado, a presença da oralidade na escrita é forte, sendo o desejável que vá declinando com o avançar da escolaridade, pelo menos em tese.

    A variação é outra coisa, mas também relacionada à oralidade, e recentemente li um trecho encantador do Lobato acerca da questão:

    ― Mostrengo ou monstrengo, vovó? ― quis saber Pedrinho. ― Vejo esta palavra escrita de dois jeitos.
    ― Os gramáticos querem que seja mostrengo ― coisa de mostrar: mas o povo acha melhor monstrengo ― coisa monstruosa, e vai mudando. Por mais que os gramáticos insistam na forma “mostrengo”, o povo diz “monstrengo”.
    ― E quem vai ganhar essa corrida, vovó?
    ― Está claro que o povo, meu filho. Os gramáticos acabarão se cansando de insistir no “mostrengo” e se resignarão ao “monstrengo”. (Monteiro Lobato, Fábulas, p. 15)

    Aliás, outro texto interessante do Lobato acerca da questão é "O colocador de pronomes".

    Beijo.

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    1. Obrigadíssimo, Mariana Marianinha. Seus comentários são sempre excelentes. Sinto muitas saudades de você. Beijão,

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  2. Obrigado, Mariana, pela leitura e pelos comentários sempre precisos.
    Pois é, o uso frequente acaba legitimando muitas mudanças na língua.
    Obrigado por Lobato.
    Bjs, Fábio

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  3. rs...
    Meu amigo, Rubem Braga teria muito orgulho se seu discípulo! Chego a pensar que as águas de nosso Rio Itapemirim trazem um "quê" de crônica para nós diariamente: os que se banham nos presenteiam com tantas coisa boa, como você.
    Mas, voltando ao assunto, sua crônica abre um leque para trabalhar-se: masculinidade, coisificação da mulher, variação linguística etc. Além, claro (!), de muito agradável leitura.

    Meu amigo, parabéns! Abração,

    Rodrigo Davel

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    1. Cara, dizer que sou discípulo de Braga é algo para eu "emoldurar". Quem me dera! Mesmo assim, fico muito honrado com suas palavras. Você é uma pessoa muito especial para mim. Abração,

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  4. Amigo Rodrigo, obrigado pela visita. É sempre prazeroso tê-lo por aqui. Obrigado pelos elogios.
    Abração, Fábio

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  5. Deixe de ser dissimulado fábio...
    "(nada contra a tecnologia!)"
    aham, tá bom. ¬¬

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    1. Gabriela, nada contra a tecnologia. Sério! Até mesmo porque preciso "dela". O problema é que a maioria não sabe o que é limite. Muitos precisam de uma "desintoxicação tenologica" urgente, antes que se transformem em maquininhas esquisitas. Eu já disse em outro texto que há muito mais gente viciada em celular, por exemplo, do que em cocaína, maconha e afins. É só constatar. Um beijo grande e obrigado pela leitura, pela visita, pela presença.

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    2. Retificando: "tecnológica". Fábio

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  6. Gabriela, nada contra a tecnologia mesmo! Até mesmo porque preciso 'dela'.O problema é que a maioria não sabe o que é limite. Muitos precisam de uma "desintoxicação tecnológica" urgente. Eu já disse em outro texto que há muito mais gente viciada em celular, por exemplo, do que em cocaína, maconha e afins. É só constatar.

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