sábado, 25 de agosto de 2012

SALVAÇÃO PELA POESIA



Para Beatriz Fraga, Hércules Campos e Valéria Bressan, amigos extremamente sensíveis.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Cecília Meireles


GUARDAR

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Cicero, Antonio. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996.

UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO
VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor
dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.

Barros, Manoel. O livro das Ignorãças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.


POEMAS AOS HOMENS DO NOSSO TEMPO
XVI
Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo

Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe o ornamento, desconversas:
“Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas”.
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto

Não cabe no meu canto.

HILST, Hilda. Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo: Globo, 2001.


Receita para arrancar poemas presos:
Você pode arrancar poemas com pinças.
Buchas vegetais, óleos medicinais.
Com as pontas dos dedos, com as unhas.

Você pode arrancar poemas com banhos
De imersão, com o pente, com uma agulha.
Com pomada basilicão.
Alicate de cutículas.
Com massagens e hidratação.

Mas não use bisturi quase nunca.
Em caso de poemas difíceis use a dança.
A dança é uma forma de amolecer os poemas,
Endurecidos do corpo.

MOSÉ, Viviane. Pensamento chão. Rio de Janeiro: Record, 2007.


A VOZ DA POESIA

Affonso Romano de Sant’Anna

A poesia exige um silêncio abismal. E isto pode levar à vertigem.
Ou: a poesia é quando se está à beira de si mesmo. Cair em si, sem se perder, ou achar-se do outro lado de si mesmo. Isto exige perícia. Pois há que ouvir sons, ruídos, mensagens que fluem também do lado de fora, no exterior.
Certa vez fiquei duas horas sobre as pedras do Arpoador, à toa, apenas ouvindo o mar. O marulhar do mar. O marulhar da alma. É preciso uma certa ousadia para se ouvir o nada. O nada é onde tudo começa. É de onde surge o a voz da poesia.
Estranha relação entre o eu e o mundo. O pessoal e o social. Há de haver uma orquestração.
Não é de muita valia ficar chorando pelos cantos. O choro pessoal ainda não é poesia.Tem que haver algo mais: converter-se em coro.
Por isto a voz do poeta é uma voz de utilidade pública. Quando não sabemos como dizer certas coisas, pedimos a voz do poeta emprestada e entoamos uma verdade simbólica.
Rainer Maria Rilke, poeta alemão, pediu emprestado um castelo para, isolado, ouvir melhor o que os querubins lhe diziam.
Victor Hugo foi para as ruas e barricadas ouvir a voz de seu tempo.
Rimbaud, de repente, calou-se para sempre.
Ficou mudo. Um zumbi perdido nos desertos africanos. Sem voz.
Quando Orfeu soava seus versos, as bestas mais ferozes se acalmavam e até as pedras o entendiam.
Como cada pássaro tem um canto especial, o poeta tem que descobrir qual a sua voz interior. Não se pode cantar com a voz do outro.
Claro que alguns, na literatura e na vida, começam imitando o canto alheio. É um aprendizado.
Camões ouvia Virgilio e Homero. João Cabral de Melo Nelo começou ouvindo Carlos Drummond.
Na música popular a mesma coisa: Dalva de Oliveira gerou Angela Maria. Mas João Gilberto não pode cantar como Orlando Silva ou Nelson Gonçalves. Ou vice-versa.
Cada qual no seu canto. Na sua voz.
E já que ouvir a voz interior é um risco, alguns a ouvem, e desesperam. Outros tapam os ouvidos. Enchem sua vida de ruídos espetaculares.
O músico (como o poeta) faz falar o espaço em branco. Faz falar o indizível. Pausa é música. Música é pausa no ruído cotidiano. Música é a salvação do ruído.
E como esse mundo ficou barulhento, meu Deus!
E se poesia é voz oculta sob a prosa, em certas épocas a voz do cantor e do poeta são perigosas.
Eles fazem falar o silêncio, o que foi calado, reprimido.
As ditaduras nos dão estranhas lições de poesia.
Repito: poesia exige um silêncio abismal.
Ler, escrever ou ouvir poesia é abismar-se.

Affonso Romano de Sant’Anna é poeta e escreveu este texto a propósito do projeto BR6 Convida, realizado no CCBB-Rio.

Fonte: O Globo, domingo, 12.8.2012.

GUIA

A poesia me salvará.
Falo constrangida, porque só Jesus
Cristo é o Salvador, conforme escreveu
um homem (sem coação alguma)
atrás de um crucifixo que trouxe de lembrança
de Congonhas do Campo.
No entanto, repito, a poesia me salvará.
Por ela entendo a paixão
que Ele teve por nós, morrendo na cruz.
Ela me salvará, porque o roxo
das flores debruçado na cerca
perdoa a moça do seu feio corpo.
Nela, a Virgem Maria e os santos consentem
no meu caminho apócrifo de entender a palavra
pelo seu reverso, captar a mensagem
pelo arauto, conforme sejam suas mãos e olhos.
Ela me salvará. Não falo aos quatro ventos,
porque temo os doutores, a excomunhão
e o escândalo dos fracos. A Deus não temo.
Que outra coisa é senão Sua Face atingida
da brutalidade das coisas?

PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986.


TESTAMENTO

O que não tenho e desejo
É o que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros – perdi-os...
Tive amores – esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me desde eu menino,
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

ARTE POÉTICA IV

(...)
Sei que o poema aparece, emerge e é escutado num equilíbrio especial da atenção, numa tensão especial da concentração. O meu esforço é para conseguir ouvir o "poema todo" e não apenas um fragmento. Para ouvir o "poema todo" é necessário que a atenção não se quebre ou atenue e que eu própria não intervenha. É preciso que eu deixe o poema dizer-se. Sei que quando o poema se quebra, como um fio no ar, o meu trabalho, a minha aplicação não conseguem continuá-lo.
Como, onde e por quem é feito esse poema que acontece, que aparece como já feito? A esse "como, onde e quem" os antigos chamavam Musa. É possível dar-lhe outros nomes e alguns lhe chamarão o subconsciente, um subconsciente acumulado, enrolado sobre si próprio como um filme que de repente, movido por qualquer estímulo, se projecta na consciência como num écran. Por mim, é-me difícil nomear aquilo que não distingo bem. É-me difícil, talvez impossível, distinguir se o poema é feito por mim, em zonas sonâmbulas de mim, ou se é feito em mim por aquilo que em mim se inscreve. Mas sei que o nascer do poema só é possível a partir daquela forma de ser, estar e viver que me torna sensível - como a película de um filme - ao ser e ao aparecer das coisas. E a partir de uma obstinada paixão por esse ser e aparecer.
Deixar que o poema se diga por si, sem intervenção minha (ou sem intervenção que eu veja), como quem segue um ditado (que ora é mais nítido, ora mais confuso), é a minha maneira de escrever.
(...)

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Poemas escolhidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.


4 comentários:

  1. ...que presente maravilhoso... é impossível dar valor ao que ouço, ao que sinto e que acaba de chegar ao meu coração, ao cérebro e ao meu ser... sinapse prazerosa, massagem aos neurônios... limpeza da alma... Ah Fábio! Obrigado, mil vezes obrigado! Obrigado por me iluminar e me fazer tão bem!!!! Obrigado por ter me levado há tantos e ter trago tantos até mim..."A poesia me salvará!"... a poesia me salva!!! "Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, vigiá-la... vigília por ela,velar por ela, estar por ela, ser por ela!"... quanta coisa guardada tenho aqui, quanta coisa desejei guardar, quis guardar... outras já joguei fora há tempo!! "um poema é para? guardá-lo!!!" Poeta, que emoção tomou-me diante desse som e da voz que declama essa divindade... estou escrevendo sem ler os textos movido pela emoção do som e da voz... meu Deus que poder tem a poesia, o som... onde estou? Me perdi por três minutos e dezenove segundos... ufa! ôpa! voltei!!! deixa eu ler os textos... ...
    Maravilhosos os textos!!! Findo assim: "A poesia exige um silêncio abismal. E isto pode levar à vertigem.
    Ou: a poesia é quando se está à beira de si mesmo. Cair em si, sem se perder, ou achar-se do outro lado de si mesmo. Isto exige perícia. Pois há que ouvir sons, ruídos, mensagens que fluem também do lado de fora, no exterior".
    Beijo na alma!!!
    Irei ouvir isso muito mais do que as dez vezes que já ouvi!!!!!

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    1. Que maravilha ler esse comentário! Pois é, a poesia salva mesmo. É ótimo quando podemos apresentar a alguém tantos textos lindos... sem contar a voz da Fernanda Montenegro.
      Muitíssimo obrigado. Um beijo.

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  2. Ah, Fábio, meu amigo, como é gostosa esta postagem! Aliás, com poesia tudo fica gostoso - sem suas triviais malícias, por favor!

    Abração, amigo,
    Rodrigo Davel

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  3. Rodrigo, meu querido, não me canso de repetir a Adélia, para quem "a literatura é salvífica". Ah, com poesia, tudo fica muito melhor. Muiiiiito mesmo!!! Abração. Valeu!

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