quinta-feira, 7 de setembro de 2017

SEM REDE DE PROTEÇÃO



SEM REDE DE PROTEÇÃO
Por Fábio Brito

Singular. Raro. Majestoso. Esmerado. Irretocável. Primoroso. E ainda faltam adjetivos para qualificar o espetáculo que Ithamara Koorax e Marcio Bahia apresentaram dia 2 de setembro, na Sala Baden Powell, no Rio de Janeiro, sob as bênçãos de Nossa Senhora de Copacabana.
Parafraseando Décio Pignatari, na geleia geral em que se transformou a Música Popular Brasileira, alguém tem de ser o osso e a medula. Alguém tem de ter, eu diria, tutano, algo que Koorax e Bahia têm de sobra. Como dois equilibristas caminhando cuidadosa, delicada e impetuosamente sobre um fio tênue e sem a mínima possibilidade de uma rede de proteção a esperá-los, eles apresentaram um espetáculo audacioso, que, certamente, figura entre os melhores a que já pude assistir. Ineditismo e ousadia deram a tônica da noite memorável.
Foi a própria Ithamara quem nos disse, logo depois do “show”, que a proposta não era apresentar um baterista acompanhando uma cantora, ou uma cantora acompanhando um baterista. Para todos os que estiveram presentes, a proposta ficou muito clara: dois músicos, em total harmonia, percorrendo caminhos inimagináveis até mesmo para pessoas com vasto conhecimento musical. Para tanta ousadia, há que se ter um talento bem acima da média, que é o caso de Koorax e Bahia.
Ithamara, como todos sabemos, é uma das grandes cantoras/intérpretes não só de sua geração: assim como Elis Regina, ela está entre as melhores de todos os tempos e não só aqui do Brasil. Prova disso é seu reconhecimento internacional, em especial pela revista “Down Beat”, uma das melhores (se não a melhor) publicações sobre “jazz” de que se tem notícia. Marcio Bahia, discípulo de Hermeto Pascoal, é outro talento raro. Esse moço faz o quer com sua bateria ensandecida, deixando-nos sempre perplexos com suas interpretações, sejam ao vivo, sejam em disco.
No palco da Sala Baden Powell, os dois mostraram um espetáculo único, em que retomaram, recriaram e realçaram todas as canções que apresentaram, com toques e mais toques de imprevisibilidade e audácia. Ambos mostraram um profissionalismo do mais alto nível, o que é fruto da densidade com que se entregam aos estudos, que não cessam. Ter músicos do calibre de Koorax e Bahia é uma honra para a música do mundo.
As canções apresentadas na Sala Baden Powell foram a prova do acabamento que só pode ser atingido depois de muitas e muitas horas de ensaio... e eles ensaiaram exaustivamente. O resultado foi um espetáculo impecável. Todas as canções do “show” ganharam interpretações soberbas.
“Sandália dela” [“Deixa a nega gingar”] (Luiz Claudio), que Ithamara gravou em “O grande amor” (com Peter Charli Trio), abriu a noite memorável. Essa canção é a prova cabal de que jogo rítmico e musicalidade não são para qualquer um. São para talentos como o de Koorax e Bahia.
Entre outros grandes momentos (e todos foram grandes momentos), também figura a “Ária na corda sol da suíte nº 3” (Johan Sebastian Bach), uma das mais belas canções eruditas de que se tem notícia. É chover no molhado dizer que, sempre que Ithamara a interpreta, fico extremamente comovido. Tenho a sensação de que não consigo respirar durante o tempo da canção, tamanha é minha comoção, meu encantamento. Só ouvindo, só vendo, só sentindo... não dá para traduzir, por meio de palavras, que são tão parcas, o que sinto – e de que emoção sou tomado – quando ouço Koorax interpretando essa obra-prima.
“Cry me a river” (A. Hamilton) é, indiscutivelmente, um dos maiores clássicos de todos os tempos. Centenas de intérpretes a gravaram mundo afora. Com a própria Ithamara, já ouvi essa canção algumas vezes e posso afirmar, sem medo de errar, que cada uma das interpretações foi única. No “duo” com Bahia, então, o céu foi o limite.
Numa homenagem ao músico João Donato, curador da Sala Baden Powell, Koorax e Bahia juntaram seus talentos e deixaram o público levitando com a interpretação que uniu “Bananeira” (João Donato e Gilberto Gil) e “Emoriô” (João Donato e Gilberto Gil), o que acabou resultando num momento de puro deleite não só dos intérpretes: a plateia também delirou.
 “Chovendo na roseira” (Tom Jobim), que ganhou uma gravação antológica de Elis Regina e Tom Jobim (“Elis & Tom”, 1976), foi a responsável por um dos momentos mais refinados do “duo” Koorax/Bahia. Foi um “dilúvio na roseira”, como disse um amigo que, como eu, assistia, embevecido, ao “show”. Momento inesquecível.  
“Cabeça feita" (Jackson do Pandeiro e Sebastião Batista da Silva) e “O ovo” (Hermeto Pascoal)”, unidas, foram interpretadas com muita descontração, mas sem perder o ritmo e a musicalidade. Agradou bastante, tanto que a dupla a cantou no bis. “Aranjuez (Follow me)” é sempre sublime. Não foi diferente no espetáculo. Ao ouvi-la, fechei os olhos e viajei.
É... depois de assistir a esse espetáculo único (que lotou a sala, é bom ressaltar), pensei no porquê de “shows” assim não chegarem ao grande público. Por que o que se ouve, hoje, no Brasil e no mundo, é tão ruim? O que chamam de “cultura popular de massa” chega a ser, em muitos casos, constrangedor, patético. Que sistema é esse que tira de seu povo o que há de melhor em Arte? Que tristes e sombrios horizontes...
Pois é, apesar de, a despeito de, temos, honrosamente, talentos como Marcio Bahia e Ithamara Koorax, dois músicos cuja compreensão musical é de mestres dos mestres. Aprendamos com eles... sempre. 








CHOVENDO NA ROSEIRA
Tom Jobim 

Olha! Está chovendo na roseira
Que só dá rosas, mas não cheira
A frescura das gotas úmidas
Que é de Luíza, que é de Paulinho, 
Que é de João,
Que é de ninguém 

Pétalas de rosa carregadas pelo vento 
Um amor tão puro carregou meu 
pensamento 

Olha! Um tico-tico mora ao lado
E passeando no molhado 
Adivinhou a primavera
Olha! Que chuva boa, prazenteira
Que vem molhar minha roseira 

Chuva boa, criadeira
Que molha a terra, que enche o rio, 
Que limpa o céu
Que traz o azul 

Olha! O jasmineiro está florido 
E o riachinho de água esperta
Se lança em vasto rio de águas calmas 

Ah! Você é de ninguém... 


MÚSICA
Carlos Drummond de Andrade 

O monumento negro do piano
domina a sala de visitas. 
(...)
Nele habitam cascatas encadeadas
à espera da manhã. 

4 comentários:

  1. Nossa!!! Lindo!!!! Proposta inovadora e bem escolhida!!!!!!
    Quero mais!!!!!!

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    1. Obrigado, Fernando, pela visita ao blogue. De fato, a proposta é inovadora. Nunca vi nada parecido. Adoramos o "show". Valeu!

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  2. Ninguém faria um texto melhor do que este, nestes termos, neste contexto.Continuo admirador deste grande mestre, nosso amigo Fábio Ferreira Brito. É perfeito, honesto e realista...além de poético. AMEI. Tenho a impressão de que ele cuida das palavras com tanto esmero , conhecimento e beleza, como a diva "Ithamaravilha' cuida da voz (e que voz, meu Deus!) . Logicamente, cada qual “no seu quadrado” ou no seu seu cada caos rs.
    As palavras , de fato, não dão conta da maravilhosa singularidade absoluta que teve este fenomenal e estimulante "show" . Epifania é pouco,
    A peculiaridade, a arte e a ousadia vistas neste espetáculo com estes dois geniais artistas, só tenho notícia de que aconteceu uma única vez e somente no Patropi . Ninguém mais fez ou conseguiu fazer algo tão inaudito.. O texto do Arthur Dapieve está excelente mas não entendi: "Se um projeto jazzístico de voz e percussão tivesse de dar certo, ao vivo, no Brasil, poucos nomes estariam mais capacitados que Ithamara e Marcio." Como não conheço um nome que possa cometer esta "deliciosa e esmerada loucura musical" e muito menos de superá-los...enquanto não souber quem "poderia'...discordo radicalmente do autor neste quesito. Repito que foi um "show" ímpar e incomparável onde a diva "Ithamaráxima" resplandeceu, mais uma vez.Quem tem Fábio, não precisa de Arthur rs.
    Vi ao vivo e ainda continuo quase não acreditando naqueles momentos de pura excelência e/ou altíssimo nível musical. Encontro de dois gênios para maravilhar-nos com performances fenomenais. Este "show" avassalador, não se parece com nenhum outro. Fiquei extasiado. Ainda bem que estava na companhia dos queridos Fábio Ferreira Brito e Fernando César que ajudaram-me a segurar a onda...sim, quase entrei em transe.. Obrigado querida diva pelos momentos divinos, ‘kooraxianos” ,inesquecíveis e "ithamaravilhosos' .
    Se houvesse no país uma política com algum foco na verdadeira arte, este "show" - absolutamente artístico, ousado, inaugural e prazenteiro - teria de ser apresentado de norte a sul, de leste a oeste para fomentar e/ou incrementar e evolução do povo. Se os produtores culturais de São Paulo , p.ex., tivessem, de fato, compromisso com a , repetindo...verdadeira arte e/ou com a excelência musical, naturalmente a contratação deste espetáculo ímpar, seria obrigatória e urgente...mas ...A verdade que não quer calar: não temos no Patropi uma cantora que possa, p.ex., substituí-la à altura, ou superá-la neste "show". Na verdade, em nenhum outro, porque a diva e querida Ithamara é a nossa maior e melhor cantora, a "number one".

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    1. Queridíssimo Marcos, muito, muito obrigado pelas palavras carinhosas acerca do texto "Sem rede de proteção". Seu carinho me comove, meu amigo. Transborda. Cuidar das palavras, cuidar da voz: ótimo ter lido isso. Lembrei-me da canção "Faxineira das canções", presente da Joyce para a "Divina", a "Enluarada" Elizeth Cardoso, madrinha musical de nossa Ithamara (ou "Ithamaráxima", "Ithamaravilhosa", como você costuma dizer): "Assim como quem cuida de uma casa / Com capricho e com carinho / Cuido bem da minha voz (...)". Ithamara cuida muito bem de sua voz, que é seu instrumento valiosíssimo. Também procuro cuidar, querido, das palavras (e é sem presunção que digo isso). Procuro zelar por elas. Sobre o "show", não há mais o que dizer (ou sempre haverá o que dizer, uma vez que jamais esqueceremos aquele momento de puro encantamento na Sala Baden Powell). Que espetáculo! Chega a ser inacreditável, não é mesmo? Lembrei-me, neste instante, de "A função da arte/1", do Eduardo Galeano: Diego não conhecia o mar. Quando pôde conhecê-lo, tremendo e gaguejando, pediu ao pai que o ajudasse a olhar". No espetáculo da Ithamara e do Bahia, foi mais ou menos assim: quando nos olhávamos, durante a apresentação, acho que estávamos pedindo "ajuda para ouvir". Ah, esse "show" - concordo com você - TEM de viajar. Outras pessoas têm de ter acesso a essa maravilha. No mais, um beijo, meu querido. Mil beijos.

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