terça-feira, 14 de junho de 2011

A CAPATAZIA 'NA' LÍNGUA PORTUGUESA



Eis aí os melhores professores de LÍNGUA PORTUGUESA. Alguém duvida?


A CAPATAZIA ‘NA’ LÍNGUA PORTUGUESA
Por Fábio Brito
Sinto-me no século XIX quando ouço alguém dizer que “fulano é professor de gramática”. Pois é exatamente assim que muitos cursinhos (e faculdades também) denominam o profissional a quem cabe o ensino das regras da gramática normativa (parece-me que eles são incumbidos somente disso). Muitos até sentem-se orgulhosos, gabam-se da ‘decoreba’ das exceções das regras. Pior: não só se gabam disso, mas cobram – com requintes de crueldade – essas benditas exceções de seus alunos. Sem pudor, jogam “cascas de banana” para que os incautos alunos derrapem mesmo. E o tombo, não raro, é feio: reprovações e mais reprovações em cursos ou concursos (muitos concursos, hoje em dia, privilegiam o texto. Que bom! Os tempos estão mudando). Detalhe: conheço bastantes regras e exceções, mas não as uso como "método punitivo". Prefiro privilegiar o texto, a leitura. Pausa: certa vez, ouvi de uma de minhas professoras no curso de Letras que “gramática normativa é livro de consulta”, como os dicionários. Concordei plenamente com ela. Há uns bons anos, essa minha professora já estava muito à frente de seu tempo. Outros professores, no entanto, nem parecem estar no século XXI, mas no XIX, ou no XVIII...
Recentemente, em matéria publicada em um jornal de nosso Estado sobre a prova do ENEM, havia a opinião de dois “professores de gramática” acerca dessa prova. Um deles, inclusive, comentou que essa prova volta-se mais à interpretação de textos, o que libera o aluno da preocupação excessiva em “decorar as regras”. Mais adiante, esse mesmo professor diz que o aluno que é “bom em gramática” acaba, diante desse tipo de prova, sendo prejudicado (?!), tendo em vista seu nervosismo, o que pode acarretar confusão no momento de interpretação do texto. Ih! Polêmica à vista!
 Minha Santa Margarida, ajude-me! "Como é que é mesmo"?! Deixe-me ver se entendi: o aluno que é “bom em gramática” pode ficar enrolado na interpretação de um texto? Aaaaaah! Acho que entendi. O “bom de gramática” é o aluno “ferinha” nas regras, mas incompetente (desculpe-me da palavra "dura") 'para' a leitura e a produção de textos? Desconfio de que muitos “professores de gramática” também pequem na leitura e na interpretação de textos (não estou ‘me’ referindo aos professores citados, que nem conheço). Hum... Os tais alunos “ferinhas” em gramática talvez tenham herdado isso de algum professor... também “ferinha” no mesmo quesito. Quem sai aos seus não degenera, não é mesmo? É a velha história do discípulo seguindo o mestre. 
           Nessa mesma matéria do jornal a que me referi, outro professor, também “de gramática”, afirma que o ideal seria que a prova do ENEM mesclasse interpretação de textos e regras gramaticais. Ou seja, para ele, e para muitos outros, o ensino da língua portuguesa parece funcionar por meio de compartimentos estanques: interpretação de texto de um lado, “regras gramaticais” de outro. Santo Deus, preciso de ajuda!
         Há um bom tempo nessa vida de professor de LÍNGUA PORTUGUESA, sempre condenei essa divisão mais que tacanha entre “regras de gramática”, como dizem, e “interpretação de texto”. Tudo é, ou deveria ser, aula de LÍNGUA PORTUGUESA. Com isso, não estou dizendo que as tais regras não devam ser ensinadas. A norma culta, como disse João Ubaldo Ribeiro*, é necessária “para preservar e aprimorar a precisão da linguagem científica e filosófica, para refinar a linguagem emocional e descritiva, para conservar a índole da língua, sua identidade e, consequentemente, sua originalidade”. O problema é “como” ensinar essas regras. Por que, então, não as ensinar (nem todas, é claro) por meio de textos, em vez de, dogmaticamente, “ensiná-las” (?) de forma isolada, ou seja, dissociada de um texto? É provável que muitos professores, e escolas,  não simpatizem com a “gramática textualizada”. Ops! Mais perigo à vista: gramática textual não significa apanhar textos literários - como muitos, irresponsavelmente, ‘o’ fazem – e usá-los como pretexto para a cobrança de fatos gramaticais. Agindo assim, destroem o literário e afastam os estudantes da literatura, da qual muitos têm verdadeira ojeriza. Cuidado! Não insistam em mais esse absurdo.
           Essa divisão entre “professor de gramática” e “professor de interpretação de texto” está bem disseminada por aí, para meu espanto e de outros profissionais. Recentemente, em texto sobre a polêmica cartilha do MEC que “ensina a escrever errado”, como disseram, um famoso músico brasileiro também usou a expressão “professor de gramática”. E ele foi além: disse que o pessoal da linguística adora odiar esses professores. Não é por aí. Pelo que sei, esse “pessoal da linguística” não tem uma visão tacanha e obturada acerca da LÍNGUA PORTUGUESA. Para esses profissionais, todos nós falamos diversas “línguas”: a das pessoas com "baixo nível de escolaridade"; a das crianças; a das pessoas do interior do país; a das pessoas mais velhas... e por aí vai.
 O “povo da linguística” nos ensina as variações linguísticas, que são uma espécie de distintivo e que contribui para a identidade dos grupos. Todas essas “línguas” não podem ser catalogadas como “certas” ou “erradas”, uma vez que elas funcionam... e muito bem. O que ocorre, às vezes, é o que chamamos de inadequação. Por exemplo: se, num bate-papo informal, “dano” a empregar uma linguagem complicada e altamente rebuscada, estarei sendo, no mínimo mentecapto. O mesmo ocorre com os alunos que, em textos avaliativos do curso de Letras, por exemplo, que exigem a variante culta da língua, insistem em usar a linguagem que eles empregam no MSN. Eis outro caso de inadequação. Ou seja, estou falando de "situacionalidade": cada situação de comunicação exige um tipo de texto. Difícil entender isso? Acho que não. Para alguns “professores" talvez seja. Paciência!   
         Como resumo dessa ópera toda, posso dizer que a solução está na literatura, a melhor professora de LÍNGUA que temos, mas que poucos, infelizmente, consultam. Basta que se recorra a Machado, Clarice, Rosa, só para citar três que são fundamentais. Estão nas obras bem escritas as melhores aulas de LÍNGUA PORTUGUESA. Entretanto, muitos não sabem disso. E, em vez de livros e mais livros para seus alunos, despejam regras e mais regras, exceções e mais exceções sobre os coitados. E a tirania de muitos “professores" parece não ter fim. De "açoite em punho", eles não pensam duas vezes: erro é erro e pronto! Se, em vez de escrever "exceção", o pobre do aluno usar dois SS, coitado. Trezentas chibatadas e, em seguida, banho com água e sal. Não faltam capatazes da LÍNGUA PORTUGUESA. Perdoe esses tiranos, meu Pai, porque eles não sabem o que fazem.
 
* “Observações de um usuário”, João Ubaldo Ribeiro, O GLOBO, 29 de maio de 2011.

7 comentários:

  1. Professor!
    Desculpe-me, mas, não vou privilegiar um comentário sobre o assunto abordado; o que deveria ser.
    Que excelente aula o senhor acaba de proporcionar. E que texto lindo. Adoro o seu estilo de escrever. Acho, simplesmente, o máximo; um luxo.
    Quanto aos argumentos; são fatos. Literatura neles.


    Um abração,

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  2. Esse exemplar de Florbela Espanca foi o que te presenteei? Muito chique estar no centro dos livros... ontem, tentei ligar de volta... não vi na hora que me ligou. Estava dormindo... quando acordei mandei mensagem...

    Quanto ao texto... os melhores professores são esses mesmos... contudo, nas mãos de bons professores se tornam melhores ainda...
    Abração.
    FC

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  3. Obrigado, Rodrigo, pelo comentário. Tenho certeza de que você será um excelente professor... de LÍNGUA PORTUGUESA. Eduque bem a Sophia, viu? Quando ela estiver na escola, não se esqueça de verificar se ela terá "professor de gramática" e professor de "interpretação de texto". Se sim, pule fora.
    Fê, o livro da Florbela é, sim, o exemplar que você me deu. Leio-o sempre. Que presentão!
    Bjs, Fábio

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  4. Bom... eu acho que muita gente não vai gostar desse texto. Voce deu uma boa mexida no bolso dos professores que se mantém na profissão por meio das dificuldades da matéria estudada: Gramática da Língua Portuguesa hahahá. E tem muitos mesmo por ai.

    Como eu acredito que o papel (da forma como o conhecemos e utilizamos) irá acabar quase que totalmente em 40 anos, e que os corretores ortográficos serão cada vez mais comuns, a tão estudada gramatica cumprirá mesmo o papel de manter a unificação da língua e como livro de consulta.

    Eu adoraria não ter estudado a cartilha "Hora Alegre" que foi a minha. Eu adoraria não ter tido professores carrascos que me faziam decorar regras gramaticais. Mas não... eu tive tudo isso e hoje eu não me sinto amigo da minha própria lingua materna, pois penso no assunto como um monte de regras.

    Queria ter tido livros e professores que fomentassem essa outra vertente do ensino da Lingua Portuguesa enquanto criança. Talvez o apredizado "osmótico" da gramática tivesse sido menos dolorido e eu não torcesse tanto o nariz para aulas de Lingua Portuguesa.

    (desculpe o desabafo e parabéns pelo post!)

    Abração
    Rondi

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    1. Rondi, meu amigo, você está certo: muitos professores "vivem das dificuldades da gramática normativa". Não falta gente competentíssima em relação às regras, mas incompetentes "para" a leitura e a produção de textos. Obrigado, amigo. Abração.

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  5. Meu caro amigo Fábio.
    É bem claro o seu texto e bem assim a sua opinião, livre, quanto ao ensino da língua portuguesa que em Portugal tem outras vertentes: a gramática; oralidade; literatura; interpretação de texto; escrita criativa e linguística. Concordo que daqui por 40 anos, com ou sem cartilha ou “acordos” tudo vai ser diferente. A língua é dinâmica e é ela que dá forma à escrita, ou seja “o falar do povo” com as suas influências globais. Embora em Portugal se estude Camões, vários anos, já não se fala como ele escreveu e os seus poemas são de difícil interpretação na escolaridade básica. Não há nem haverá nunca professores “capatazes” da língua falada ou escrita e quem o pense engana-se. Quando frequentava o liceu, jovem ainda, tive um professor que dizia “fala claro e mija direito”. Bem… nem uma, nem outra são possíveis.
    Um grande ABRAÇO.

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    1. Excelente seu comentário, amigo José Manuel! Espero que a "capatazia" acabe, viu? Espero mesmo. Valeu!

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