quarta-feira, 8 de junho de 2011

MAIS PALAVRAS...



UMA PALAVRA
Chico Buarque

Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra

Palavra viva
Palavra com temperatura, palavra
Que se produz
Muda
Feita de luz mais que de vento, palavra

Palavra dócil
Palavra d’água pra qualquer moldura
Que se acomoda em balde, em verso, em
                                                       [mágoa
Qualquer feição de se manter palavra

Palavra minha
Matéria, minha criatura, palavra
Que me conduz
Mudo
E que me escreve desatento, palavra

Talvez, à noite
Quase-palavra que um de nós murmura
Que ela mistura as letras, que eu invento
Outras pronúncias do prazer, palavra

Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra


HOLLANDA, Chico Buarque de. Tantas palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma ideia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento. Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos.
 Clarice Lispector


PALAVRAS
Luiz Gonzaga Jr.

Palavras, palavras, palavras
Eu já não aguento mais
Palavras, palavras, palavras
Você só fala, promete e nada faz
Palavras, palavras, palavras
Desde quando sorrir é ser feliz?
Cantar nunca foi só de alegria
Com tempo ruim
Todo mundo também dá bom-dia
Cantar nunca foi só de alegria
Com tempo ruim
todo mundo também dá bom-dia

“Palavras”, Luiz Gonzaga Jr., Luiz Gonzaga Jr., Odeon, Rio de Janeiro, 1973.



MAMA PALAVRA
João Bosco e Francisco Bosco

Se disparada pelo amor
Palavra-bala
Na boca do ditador
Toda palavra cala
Ô, mama
Cala palavra
Ô, mama, ô, mama
Mama palavra
Quando não se quer ouvir
Palavra-mala
Quando não se faz sentir
Pobre palavra rala
Ô, mama
Rala palavra
Ô, mama, ô, mama
Mama palavra
Em volta da mesa do bar
Palavra-porre
Se o tédio me assaltar
Palavra me socorre
Ô, mama
Cada palavra
Ô, mama, ô, mama
Mama palavra
Se gritar pega ladrão
Palavra corre
Quando não se tem tesão
Toda palavra morre
Ô, mama
Morre a palavra
Ô, mama, ô, mama
Mama palavra
Mãe de todos nós
Dos sem-mãe
Dos sem-voz
Na fala do policial
Palavra-malha
No Distrito Federal
Toda palavra encalha
Toda palavra encalha
Aquela que não funcionar
Palavra-falha
Aquela que não se juntar
Vira palavra-tralha
Tralha
Quando tudo fala igual
Palavra-palha
Pra tudo que é marginal
Palavra que batalha
Palavra que batalha
Aquela que não funcionar
Palavra-falha
Aquela que não se juntar
Vira palavra-tralha
Tralha

“Mama palavra”, Arnaldo Antunes, Songbook João Bosco – vol. 1, LD64-03/03, Lumiar Discos, Rio de Janeiro, 2003.



PROCURA DA POESIA

(...)
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


ANDRADE, Carlos Drummond. A rosa do povo. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.

RECEITA PARA LAVAR PALAVRA SUJA
Mergulhar a palavra suja em água sanitária.
Depois de dois dias de molho quarar ao sol do meio-dia.
Algumas palavras, quando alvejadas ao sol,
adquirem consistência de certeza,
por exemplo, a palavra vida.
Existem outras, e a palavra amor é uma delas,
que são muito encardidas e desgastadas pelo uso,
o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra,
depois enxaguar em água corrente.
São poucas as que ainda permanecem sujas
depois de submetidas a esses cuidados,
mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tira as manchas mais difíceis.
Mas todas as tentativas de lavar a piedade
foram sempre em vão.
Mas nunca vi palavra tão suja como perda.
Perda e morte, à medida que são alvejadas,
soltam um líquido corrosivo
- que atende pelo nome de amargura –
capaz de esvaziar o vigor da língua.
Nesse caso o aconselhado é mantê-las sempre de molho,
em um amaciante de boa qualidade.
Agora se o que você quer
é somente aliviar as palavras do uso diário,
pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.
O perigo aqui é misturar palavras que mancham
no contato umas com as outras.
A culpa, por exemplo,
mancha tudo que encontra
e deve ser sempre alvejada sozinha.
Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo.
Desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva,
pode, o que não é inevitável,
esgarçar a força delicada da palavra amizade.
Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras
sob o risco de perderem o sentido.
A sujeirinha cotidiana quando não é excessiva
produz uma oleosidade que conserva a cor
e a intensidade dos sons.
Muito valioso na arte de lavar palavras
é saber reconhecer uma palavra limpa.
Para isso conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos,
que passeie pelas expressões dos seus sentidos.
À noite permita que se deite,
não a seu lado mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme,
a palavra, plantada em sua carne,
prolifera em toda sua possibilidade.
Se puder suportar a convivência,
até não mais perceber a presença dela,
então você tem uma palavra limpa.
Uma palavra limpa é uma palavra possível.

MOSÉ, Viviane. Toda palavra. Rio de Janeiro: Record, 2006.


4 comentários:

  1. Que seria da humanidade se não fosse a poesia; da matemática; da física; da filosofia, etc.

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  2. Amigo José Mnuel, sem poesia, a vida seria muitíssimo árida.
    Abração e obrigado pela visita.
    Fábio

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  3. Maravilha! Gostoso demais para a alma.

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  4. Como eu já disse em outro texto, a literatura "tira o encardido da alma".
    Abração, meninos do "Bixudipé".

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