domingo, 25 de setembro de 2011

SOLIDÃO DE 'CACIQUES'



"(...) Eu acordo pra trabalhar / Eu durmo pra trabalhar / Eu corro pra trabalhar / Eu não tenho tempo de ter / O tempo livre de ser / De nada ter que fazer / É quando eu me encontro perdido / Nas coisas que eu criei / E eu não sei / Eu não vejo além da fumaça / O amor e as coisas livres, coloridas / Nada poluídas (...)"
            Marcos Valle / Paulo Sérgio Valle
            "Capitão de indústria", Paralamas do Sucesso, Nove luas, EMI MUSIC LTDA., Rio de Janeiro, 1996.

SOLIDÃO DE 'CACIQUES'
Por Fábio Brito

Em 1996, quando ouvi “Nove luas”, CD do grupo Paralamas do Sucesso lançado naquele ano, minha atenção se voltou para a regravação de “Capitão de indústria”, canção dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle: “Eu acordo pra trabalhar / Eu durmo pra trabalhar / Eu corro pra trabalhar (...)”, também revisitada, anos mais tarde, por Erasmo Carlos no songbook de Marcos Valle. Pois é, faz tempo que sempre ouço essa canção, que me serve de açoite quando percebo que estou começando a ficar viciado em trabalho.
           Não me canso de dizer que, para quem trabalha além da conta, a vida vira só trabalho. E a vida não pode virar só trabalho. Fico triste porque conheço muitos “viciados em trabalho”. Gostaria – sinceramente – de conhecer menos... ou de não conhecer quaisquer pessoas com esse tipo de vício. São os tais “workaholics”, termo que, de uns tempos para cá, tem sido cada vez mais empregado. Triste isso!
              A grande neurose desse tipo de viciado é achar ('teoria do achismo' mesmo!) que todas as pessoas têm, necessariamente, de ser viciadas também. Quando o tal viciado é um cacique, aí, então, o clima pesa. O todo-poderoso (o onipotente) tenta impor seu ritmo a todos, o que acaba virando loucura. Primeiro, porque o ritmo desses viciados desconhece pausa (até para almoço, lanche ou sono); segundo, porque ninguém tem o mesmo tempo; terceiro, porque descanso faz bem e todos o merecem. Às vezes, quando sinto que estou “fora de mim” e totalmente imerso em alguma atividade de trabalho, dou uma “parada” estratégica: faço algo totalmente diferente. Assim, fujo à neurose.
            Dia desses, estive pensando na aposentadoria dos “caciques” viciados em trabalho. Não existe! Quando é possível, continuam trabalhando depois de aposentados. Sempre alegam que, em casa, vão enlouquecer. Poxa! Que sandice! Será que não há qualquer atividade digna fora do local de trabalho? Sempre digo que, quando minha aposentadoria chegar, haverá uma vida aqui fora 'me' esperando. Há muitos lugares que ainda não conheço, há muitos livros que ainda não li, há muitos filmes a que ainda não assisti, há muitas peças que ainda verei... e por aí vai. Terei tempo - e de sobra! - para minhas caminhadas, para a leitura de meus jornais. Fora essas atividades, há ainda trabalhos voluntários que podem sem prestados e que, certamente, enriquecem o espírito de qualquer pessoa. São atividades que nos fazem pessoas melhores, que nos tornam mais “gente”.
 Para os chefes viciados em trabalho, no entanto, atividades prazerosas são apenas as que têm a ver com seu local de trabalho. Quando ficam em casa, muitos morrem mais cedo. Entram em processo de profunda depressão (há casos e mais casos por aí). O triste (triste mesmo!) é que essas pessoas são, não raro, rigorosos ao extremo. Em nome do rigor que o trabalho exige (pelo menos, é o que eles dizem), humilham, ofendem, escravizam, enfim, passam por cima de tudo com uma naturalidade espantosa. Repeito às individualidades? Não existe! Respeito ao tempo de cada um? Não existe! Desconhecem ética e liberdade de expressão. Ai de quem ousar enfrentá-los! Quer tentar? Vá em frente! No entanto, seja cuidadoso, cauteloso. Seja, acima de tudo, inteligente. Chegue com calma e sabedoria.  
Em se tratando dessas chefias, impossível não pensar, por exemplo, na solidão desse povo. Que vida triste, não? Que pessoas infelizes, meu Deus! Não têm amigos (têm bajuladores), não têm companheiros, não têm lazer, não têm diversão, não têm momentos de ócio (nunca ouviram tal palavra!). Para qualquer encontro prazeroso, são os primeiros nomes descartados. Ninguém os suporta, claro! Quem respira trabalho "vinte e quatro horas por dia" e ainda por cima é "chefe" torna o ar "irrespirável". E quando chegar a velhice (a velhice mesmo!) dessas pessoas? Talvez não vivam tanto, mas... e se viverem "até lá"? Nada mais previsível do que imaginar o fim a que terão direito: sozinhas e remoendo suas dores, suas amarguras, seus rancores, suas decepções, suas faltas, seus excessos, seu ódio, seu rigor exacerbado (que não serviu para nada!). A vida passou...      
             Quando penso nos muitos chefes viciados em trabalho que conheci e conheço, lembro-me de  A VIDA É SONHO, de Calderón de La Barca, em que o homem seiscentista toma consciência de que ele não é o "centro de tudo". Fica sabendo, antes de tudo, que "a vida é sonho", que nada dura para sempre, que tudo muda, que a efemeridade da vida é inevitável. Vale, aqui, um resuminho da história: o protagonista, príncipe Segismundo, foi condenado por seu pai a viver isolado em uma torre, onde viveu do nascimento até a juventude, só conhecendo seu carcereiro. Quando percebe que talvez tenha errado ao isolar seu filho, o rei Basílio decide tirá-lo da prisão e testá-lo, a fim de saber se ele pode (e merece) ser seu herdeiro. Se o príncipe o decepcionar, terá de retornar à prisão. Para evitar o sofrimento do filho, o rei, então, pensa em uma estratégia: a Segismundo será dada uma droga muito forte que o deixará dormindo profundamente. Quando acordar, já estará em um quarto luxuoso do palácio. Assim, o jovem príncipe experimentou as "honrarias e as pompas" do palácio. Mais tarde, porque cometeu ações condenáveis quando exerceu o poder, é obrigado a voltar à torre onde passara boa parte de sua vida. O carceiro o convence, então, de que tudo foi apenas um sonho.
                Para os "chefes-déspotas-viciados-em-trabalho", o regresso à "torre" nada mais é do que a solidão - ou a "sosinhez" - sem remédio a que foram condenados. Nem mais "se" reconhecem ou têm consciência dos abusos que cometeram quando foram "reis", quando julgaram ter um poder sem fim, quando acharam que "eram" o poder, quando todos os bajuladores não os enxergavam nus. A diferença é que, agora, eles continuam nus, usando seus tecidos mágicos, mas até os bajuladores se foram.

O Grito.jpg
"O grito", de Edvard Munch

A roupa nova do rei
Hans Christian Andersen
Versão livre:
Alfredo Braga

Era uma vez um Rei que apreciava de tal maneira roupas novas que despendia com elas grandes fortunas. Ele não se importava com as bibliotecas, com as escolas, ou com os museus, a não ser para exibir as suas roupas. Para cada hora do dia vestia uma diferente. Em vez de o povo dizer: Ele está em seu gabinete de trabalho, dizia: Ele está em frente ao espelho no seu quarto de vestir. Mesmo assim a vida cultural era muito movimentada naquele reino que postulava ser de primeiro mundo.
Um dia foram contratados, pela Fundação Cultural do Reino, vários curadores e artistas, e entre eles dois que se apresentavam como estilistas-tecelões e que se gabavam de costurar os mais belos trajes com os mais belos tecidos do mundo. Segundo eles, não só os padrões, as tramas e as cores dos modelos eram belíssimos, mas os tecidos fabricados por eles tinham a infalível virtude de ficarem completamente invisíveis para as pessoas dissimuladas, ou as incompetentes, ou as destituídas de inteligência.
— "Essas roupas com esses tecidos serão maravilhosas." — pensou o Rei — "Usando-as poderei descobrir quais pessoas são falsas, ou que não estão em condições de ocupar cargos, e então poderei substituí-las por outras... Mandarei que fabriquem muitas peças desse tecido para mim..."
Fez um adiantamento em moedas de ouro para que começassem a trabalhar imediatamente. Os estilistas então encomendaram uma grande quantidade de bobinas e carretéis dos mais caros fios de seda e fios de ouro (que escamotearam sorrateiramente e guardaram em seus baús enquanto simulavam trabalhar nos teares vazios) e começaram a tecer, mas nada havia na urdidura ou nas lançadeiras.
Depois de alguns dias, o Rei estava ansioso e andava de um lado para o outro enquanto procurava se distrair com algum casaco ou chapéu do qual ainda não estivesse muito enjoado, ou que ainda estivesse na moda.
Eu quero saber como vai indo o trabalho dos tecelões. — dizia o Rei, mas andava vagamente pensativo e preocupado... Ele não tinha propriamente dúvidas sobre a sua honestidade e inteligência, mas achou melhor mandar outra pessoa ver o andamento do trabalho.
Todos na cidade também já tinham ouvido falar no poder maravilhoso do tecido, e cada um estava mais ansioso para saber quem era o mais falacioso e burro entre os seus vizinhos.
— "Mandarei o Primeiro Ministro observar o trabalho dos estilistas-tecelões; ele verá o tecido, pois é inteligente e desempenha as suas funções com perfeição." — cavilou o Rei.
Mandou chamar o Primeiro Ministro e ordenou que fosse ao salão (onde os dois charlatães simulavam trabalhar nos teares vazios) saber do tecido.
— "Deus me acuda!" — pensou o Primeiro Ministro, arregalando os olhos quando lhe mostraram o tear. — "Não consigo ver nada!" — no entanto teve o cuidado de não dizer isso em voz alta.
Os tecelões o convidaram a aproximar-se para verificar como o padrão da trama estava ficando bonito e apontavam para os teares. O pobre homem apertava a vista o mais que podia, tirava e punha os óculos, mas não conseguiu ver coisa alguma.
— "Céus!" — pensou ele — "Será possível que eu seja tão fingido e incompetente? Bem, ninguém deverá saber disto e não contarei a ninguém que não vi o tecido."
Vossa Excelência nada disse sobre o tecido... — queixou-se um dos estilistas.
Ah, sim. É muito bonito. É encantador! — respondeu o Primeiro Ministro, limpando os óculos com um lenço de cambraia de linho — O padrão é lindo e as cores são de muito bom gosto. Direi ao Rei que me agradou muito.
Estamos encantados com a vossa opinião, Senhor Primeiro Ministro. — responderam os dois ao mesmo tempo, e iam descrevendo as cores e a trama especial daquele pano tão caro. O Primeiro Ministro prestou muita atenção a tudo o que diziam para poder depois repetir diante do Rei.
Os estilistas pediram mais dinheiro, mais seda e mais ouro para prosseguir com o trabalho e, como das outras vezes, puseram tudo em seus baús e continuaram fingindo que teciam.
Poucos dias depois o Rei enviou o Ministro da Cultura e das Artes para olhar o trabalho e saber quando ficaria pronto. Aconteceu-lhe como ao Primeiro Ministro: Olhou, olhou, tornou a olhar, mas só via os teares vazios.
Não é lindo o tecido? — indagavam os tecelões, e davam-lhe as mais variadas explicações sobre a trama, o padrão, os brilhos, as cores.
— "Eu penso que não sou muito desonesto..." — refletiu o Ministro da Cultura e das Artes — "e nem estúpido... Se fosse assim, não teria chegado à altura do cargo que ocupo... Que coisa estranha!..."
Pôs-se então a elogiar as cores e o desenho, e mais tarde, não só como Ministro mas como Curador de exposições de artistas e fotógrafos, comunicou ao Rei:
É um trabalho sublime... em seus aspectos de inconcretude material... hã... uma obra-prima em sua fundamentalidade semântica... e visualidade sígnica... hã... o imagético e o invisível se fundem num todo de... hã... expectativas estético-formais... neste simulacro crítico... se percebe a função... hã... as funções, semióticas... da transcendente imaterialidade da arte...
E já completamente tomado:
Assim, neste procedimento referencial do não-objeto... hã... em sua virtual vacuidade... o deslocamento do olhar... em sua intensa... hã... re-significação... a obscurecer ao limite extremo... toda e qualquer possibilidade de reflexão perceptiva... hã... insere-se nesta vertiginosa... pós-modernidade... hã... Mas, por outro lado... o discurso estético... das poéticas da segunda metade do século XX ... hã...
O Rei teve de o interromper:
Está bem, já compreendi.

A cidade inteira só falava nesse deslumbrante tecido, de modo que o Rei resolveu vê-lo enquanto estava nos teares. Acompanhado por um grupo de cortesãos e cortesãs, entre os quais os Ministros que já tinham ido ver o prodigioso pano, e curadores e artistas convidados, lá foi ele visitar os ardilosos tecelões. Eles estavam trabalhando mais do que nunca nos teares vazios.
Veja, Vossa Alteza Real, que delicadeza de desenho! Que combinação de cores! — balbuciavam os altos funcionários do Rei enquanto apontavam para os teares vazios e os curadores desenvolviam os seus discursos. — Ofuscante... Estonteante... — suspiravam as cortesãs.
O Rei, que nada via, preocupado pensou: — "Serei eu o único cretino e não estarei em condições de ser o Rei? Nada pior do que isto poderia me acontecer!" — então, em alto e bom tom, declarou:
Muito bom! Realmente merece a minha aprovação!
Por nada deste mundo ia confessar que não tinha visto coisa alguma. Todos aqueles que o acompanhavam também não conseguiam ver o tecido, mas exclamavam em prolongados murmúrios:
Oh! Deslumbrante... Magnífico... — e aconselharam ao Rei que usasse a roupa nova por ocasião da parada anual que ia se realizar daí a alguns dias. O Rei até concedeu a cada tecelão-estilista a famosa Comenda das Artes e o nobre título de Cavaleiro Estilista-Tecelão.
Na noite que precedeu o desfile, os charlatães tecelões fizeram serão. Iam acendendo todas as lâmpadas do atelier para que todos pensassem que estavam trabalhando à noite para aprontar os trajes do Rei. Fingiam tirar o tecido dos teares, cortavam a roupa no ar com um par de tesouras muito grandes e coseram-na com agulhas sem linha. Na manhã do dia seguinte disseram:
Agora, a roupa do Rei está pronta.
Sua Majestade, acompanhado dos cortesãos, veio provar a roupa nova. Os estilistas embusteiros fingiam segurar alguma coisa e diziam:
Aqui estão as calças, aqui está o casaco e aqui o manto. Estão leves como teias de aranhas; até parece que não há nada cobrindo o Rei, mas aí é que está a rara e fina qualidade deste modelo e deste tecido.
Sim! — concordaram todos, embora nada estivessem vendo.
Poderia Vossa Majestade despir-se? — pediram os impostores. — Assim poderemos vestir-lhe a roupa nova.
O Rei despiu-se e eles fingiram vestir-lhe peça por peça. Sua Alteza Real virava-se para lá e para cá, olhando-se ao espelho (vendo sempre a redonda imagem de seu corpo nu).
Oh! Como lhe assentou bem o novo traje, Alteza! Que lindas cores! Que bonito padrão! — diziam todos com medo de caírem no ridículo e perderem os altos cargos se descobrissem que não viam nada. Entretanto o Mestre de Cerimônias anunciou:
A carruagem está esperando para conduzir Vossa Majestade.
— Estou quase pronto. — respondeu o Rei.
Mais uma vez virou-se solenemente em frente ao espelho, com o rosto erguido sobre o ombro, numa atitude de quem está mesmo apreciando alguma coisa.
Os pagens que iam segurar a cauda do manto, inclinaram-se como se fossem levantá-la e foram caminhando com as mãos à frente, sem dar a perceber que não estavam vendo roupa alguma. Durante o desfile o Rei ia caminhando cheio de pompa à frente da carruagem. O povo nas calçadas e nas janelas, também não querendo passar por tolo, ou mentiroso, exclamava:
Que caimento tem a roupa do Rei! Que manto majestoso! E que brilhante tecido!
Nenhuma roupa do Rei jamais recebera tantos elogios! Entretanto um menino que estava entre a multidão, achou aquilo tudo muito estranho e disse:
Coitado do Rei... Está nu!
Os homens e as mulheres do povo, conhecendo que o menino não era nem falso e nem tolo, começaram a murmurar... e logo a seguir, como numa onda, em altos brados repetiam:
O Rei está nu! O Rei está nu!

O Rei, ao ouvir aquelas vozes do povo, ficou furioso por estar tão ridículo! O desfile entretanto devia prosseguir, de modo que se manteve imperturbável e os pagens continuavam a segurar-lhe a cauda invisível.
Depois que tudo terminou ele voltou ao Castelo Real de onde nunca mais pretendia sair. Mas, como sempre acontece, uma semana depois o povo já havia esquecido o escândalo, e os funcionários do reino seguiam como se nada houvesse acontecido: Os cargos continuavam a ser distribuidos entre as mesmas duas ou três famílias e seus agregados; os impostos sonegados; o desvio de verbas continuava em alta, enfim, tudo voltou ao normal.
Quanto aos dois estilistas-tecelões, desapareceram misteriosamente levando o dinheiro, os fios de seda e o ouro. Meses depois um viajante contou que eles haviam pregado o mesmo golpe em outro pequeno reino, onde os cidadãos também andavam de nariz empinado, cheios de soberba e afeitos às pequenas e às grandes hipocrisias.
(...)

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