quinta-feira, 29 de setembro de 2011

TEMPO DE DELICADEZAS



TODO O SENTIMENTO
Chico Buarque / Cristovão Bastos

Preciso não dormir / Até se consumar / O tempo / Da gente / Preciso conduzir / Um tempo de te amar / Te amando devagar / E urgentemente / Pretendo descobrir / No último momento / Um tempo que refaz o que desfez / Que recolhe todo o sentimento / E bota no corpo uma outra vez / Prometo te querer / Até o amor cair / Doente / Doente / Prefiro então partir / A tempo de poder / A gente se desvencilhar da gente / Depois de te perder / Te encontro, com certeza / Talvez num tempo da delicadeza / Onde não diremos nada / Nada aconteceu / Apenas seguirei, como encantado / Ao lado teu

 Hollanda, Chico Buarque de. Tantas palavras / Chico Buarque. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.


TEMPO DE DELICADEZA
Affonso Romano de Sant'Anna
O Globo, 10-05-00

Sei que as pessoas estão pulando na jugular umas das outras.
Sei que viver está cada vez mais dificultoso.
Mas talvez por isso mesmo ou talvez devido a esse maio azulzinho, a este outono fora e dentro de mim, o fato é que o tema da delicadeza começou a se infiltrar, digamos, delicadamente nesta crônica, varando os tiroteios, os sequestros, as palavras ásperas e os gestos grosseiros que ocorrem nas esquinas da televisão e do cinema com a vida.
Talvez devesse lançar um manifesto pela delicadeza. Drummond dizia: "Sejamos pornográficos, docemente pornográficos". Parece que aceitaram exageradamente seu convite e a coisa acabou em "grosseiramente pornográficos". Por isso, é necessário reverter poeticamente a situação e com Vinícius de Morais ou Rubem Braga dizer em tom de elegia ipanemense:
- Meus amigos, meus irmãos, sejamos delicados, urgentemente delicados.
Com a delicadeza de São Francisco, se pudermos.
Com a delicadeza rija de Gandhi, se quisermos.
Já a delicadeza guerrilheira de Guevara era, convenhamos, discutível. Mas mesmo ele, que andou fuzilando pessoas por aí, também andou dizendo: "Há que endurecer, mas sem perder a ternura jamais!".
Essa é a contradição do ser humano. Vejam o nosso sedutor e exemplar Vinícius, que há 20 anos nos deixou, delicadamente.
Era um profissional da delicadeza. Naquela sua pungente "Elegia ao primeiro amigo" nos dizia: "Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente / E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha alma / Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera. / Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento. / Se me entediam, abandono-as delicadamente, despreendendo-me delas com uma doçura de água. / Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim / Desprende esse fluído que as envolve de maneira irremissível / Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher / Mas com singular delicadeza. Não sou bom / Nem mau: sou delicado. Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida / Como um lobo."
Está aí: porque somos ferozes, precisamos ser delicados. Os que não puderem ser puramente delicados que sejam ferozmente delicados.
Houve um tempo em que se era delicado. E houve um tempo em que, citando poetas, até se citava Rimbaud. Esse Rimbaud que Paulo Hecker Filho acabou de retraduzir no livro Só poema bom e o Leandro Konder reinventou numa moderna trama policial em A morte de Rimbaud.
Pois aquele Rimbaud, que aos 17 anos já tinha feito sua obra poética, é quem disse um dia: "Por delicadeza, eu perdi minha vida."
Intrigante isso.
Há pessoas que perdem lugar na fila, por delicadeza. Outras, até o emprego. Há as que perdem o amor por amorosa delicadeza. Sim, há casos de pessoas que até perderam a vida, por pura delicadeza. Não é certamente o caso de Rimbaud, que se meteu em crimes e contrabandos na África. O que ele perdeu foi a poesia. E isso é igualmente grave.
Confesso que buscando programas de televisão para escapar da opressão cotidiana, volta e meia acabo dando em filmes ingleses. Mais que as verdes paisagens, que o elegante guarda-roupa, fico ali é escutando palavras educadíssimas e gestos elegantemente nobres. Não é que entre as personagens não haja as pérfidas, as perversas. Mas os ingleses têm uma maneira tão suave, tão fina de serem cruéis, que parece um privilégio sofrer nas mãos deles.
Tudo é questão de estilo.
Aquele detestável Bukovski, sendo abominável, no entanto, num poema delicado dizia que gostava dos gatos, porque os gatos tinham estilo. É isso. É necessário, com certa presteza, recuperar o estilo felino da delicadeza.
A delicadeza não é só uma categoria ética. Alguém deveria lançar um manifesto apregoando que a delicadeza é uma categoria estética.
Ah, quem nos dera a delicadeza pueril de algumas árias de Mozart. A delicadeza luminosa dos quadros dos pintores flamengos, de um Vermeer, por exemplo. A delicadeza repousante das garrafas nas naturezas mortas de Morandi. Na verdade, carecemos da delicadeza dos adágios.
Vivemos numa época em que nos filmes americanos os amantes se amam violentamente e, em vez de sussurrarem "I love you", arremetem um virótico "Fuck you".
Sei que alguém vai dizer que com delicadeza não se tira um MST - com sua foice e fúria - dos prédios ocupados. Mas quem poderá negar que o poder tem sido igualmente indelicado com os pobres deste país há 500 anos?
Penso nos grandes delicados da história. Deveriam começar a fazer filmes, encenar peças sobre os memoráveis delicados. Vejam o Marechal Rondon. Militar e, no entanto, como se fora um místico oriental, cunhou aquela expressão que pautou o seu contato com os índios brasileiros: "Morrer se preciso for, matar nunca".
A historiadora Denise Bernuzzi de Sant'Anna anda fazendo entre nós o elogio da lentidão, denunciando a ferocidade da cultura da velocidade. É bom pensar nisso. Pela pressa de viver as pessoas estão esquecendo de viver. Estão todos apressadíssimos indo a lugar nenhum.
Curioso. A delicadeza tem a ver com a lentidão. A violência tem a ver com a velocidade. E outro dia topei com um livro - "A descoberta da lentidão" - onde Sten Nadolny faz a biografia do navegador John Franklin, que vivia pesquisando o Pólo Norte. Era lento em aprender as coisas na escola, mas quando apreendia algo o fazia com mais profundidade que os demais.
Sei que vão dizer: A burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados.
 - E eu não sei?
Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados.


LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rocco, 1998.

"(...) Neste mesmo instante estou pedindo ao Deus que me ajude. Estou precisando. Precisando mais do que a força humana. Sou forte mas também destrutiva. O Deus tem que vir a mim já que não tenho ido a Ele. Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu não mereça. Venha. Ou talvez os que menos merecem mais precisem. Sou inquieta e áspera e desesperançada. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor. Às vezes me arranha como se fossem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e no entanto continuo inquieta é porque preciso que o Deus venha. Venha antes que seja tarde demais. Corro perigo como toda pessoa que vive. E a única coisa que me espera é exatamente o inesperado. Mas sei que terei paz antes da morte e que experimentarei um dia o delicado da vida. Perceberei - assim como se come e se vive o gosto da comida. (...)" 


O MILAGRE DAS FOLHAS

Não, nunca me acontecem milagres. Ouço falar, e às vezes isso me basta como esperança. Mas também me revolta: por que não a mim? Por que só de ouvir falar? Pois já cheguei a ouvir conversa assim, sobre milagres: "Avisou-me que, ao ser dita determinada palavra, um objeto de estimação se quebraria." Meus objetos se quebram banalmente e pelas mãos das empregadas. Até que fui obrigada a chegar à conclusão de que sou daqueles que rolam pedras durante séculos, e não daqueles para os quais os seixos já vêm prontos, polidos e brancos. Bem que tenho visões fugitivas antes de adormecer - seria milagre? Mas já me foi tranquilamente explicado que isso até nome tem: cidetismo, capacidade de projetar no campo alucinatório as imagens inconcientes.
Milagre, não. Mas as coincidências. Vivo de concidências, vivo de linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um leve e instantâneo ponto, tão leve o instantâneo que mais é feito de pudor e segredo: mal eu falasse nele, já estaria falando em nada.
Mas tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhões de folhas transformadas em uma única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzi-las a mim. Isso me acontece tantas vezes que passei a me considerar modestamente a escolhida das folhas.
Com gestos furtivos tiro a folha dos cabelos e guardo-a na bolsa, como o mais diminuto diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto como lembrança. E também porque sei que novas folhas concidirão comigo.
Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

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