sexta-feira, 30 de setembro de 2011

E POR FALAR EM PECADO...



"(...) se dona Maria soubesse / que o filho pecava e pecava tão lindo / pegava o pecado e jogava de lado / e fazia da Terra uma estrela / sorrindo"
                                                                                                                                                          Itamar Assumpção / Paulo Leminski


PENSAMENTOS, PALAVRAS E OBRAS


        Em matéria de pecados, aliás em matéria de religião geral, eu sempre achei que a pior coisa é os pensamentos. Na aula de catecismo, que era depois da missa e antes do futebol, quer dizer, a gente só pecando porque não queria assistir o catecismo, nessa aula dona Maria José, com aquelas blusas dela de mangas fofolentas e os olhos piscando o tempo todo e a cara de doente, dizia que se peca por pensamentos, palavras e obras. Palavras e obras, certo, muito certo, certo. Mas pensamento é muito descontrolado, de maneira que todo mundo tinha dificuldades nessa parte, talvez somente dona Maria José não tivesse, porque tudo o que ela pensava era catecismo.
Muitas vezes perguntei a minha mãe — e não perguntei a dona Maria José, porque o que a gente perguntava a ela, ela mandava a gente estudar e escrever uma dissertação para ler alto no outro domingo — como é que a pessoa fazia para não pecar por pensamentos e ela me disse que bastava não pensar nem besteira nem safadagem. Ora, isso está todo mundo sabendo, a questão é que a besteira e a safadagem aparecem o tempo todo, sem ninguém chamar. Mas de fato era uma coisa muito de admirar que os crescidos todos, na hora da comunhão, iam sem pestanejar, quer dizer, não tinham pecado nem por pensamento, porque senão não iam arriscar a receber o corpo de Cristo com tudo por dentro sujo imundo de pecados. Eu não, eu sempre tive problemas, porque primeiro nunca deixava de esquecer algum pecado e na hora que saía é que eu lembrava e aí ficava com vergonha de voltar ao padre e aí ficava achando que ia comungar sujo imundíssimo. Mas minha mãe disse que não podia fazer lista de pecados, onde já se viu, que na hora o Espírito Santo ajudava, mas ele nunca me ajudou, pelo menos eu nunca notei nada. Enfrentei bastante sofrimento.
No primeiro ano, eu não tive o problema do pecado, porque a comunhão foi na Páscoa do colégio e eu era o único aluno que ainda não tinha feito comunhão, de forma que minha mãe me mandou com uma fita branca desta largura amarrada no braço e descendo com umas franjas, que eu fiquei envergonhadíssimo. Na outra mão, minha mãe mandou eu segurar uma vela também amarrada de fita e fiquei mesmo um espetáculo, de forma que me considerei fazendo penitência o tempo todo e, de qualquer jeito, só conseguia pensar na fita e na vela, uma coisa tristíssima de se ver que eu estava e todo mundo me olhando e só não dando risada porque era uma questão de comunhão. Mas ainda assim eu fiquei desconfiado e aí, na hora que o colégio todo ficou sentado na igreja, esperando a missa começar, consegui falar com dona Maria José, para saber se podia fazer uma confissão de última hora. E somente um reforço, disse eu, a senhora sabe, a pessoa vai andando, vai pecando. Palavras e obras, não, mas pensamentos sempre uma coisa ou outra vai escapando, disse eu, e ela ficou vermelhíssima. Então ela me levou até um padre alto que estava na sacristia e perguntou a ele se ele podia ouvir a confissão de última hora de um rapaz e eu ali me sentindo todo besta, com a fita e aquela vela na mão, mas eu queria estar garantido, com essas coisas não se brinca, e o padre era desses que vêm logo querendo dar porrada, desses que puxam o queixo da pessoa e passam uns tapinhas na cara, não suporto. Ah, quer dizer que veio para a primeira comunhão e não se confessou, não é, falou ele, puxando minha fita que quase esculhamba tudo e me deu grande preocupação, porque minha mãe ia botar a culpa em mim e, se eu botasse a culpa no padre, ainda ia tomar um cachação. Não senhor, eu me confessei, é que eu estou com um problema. E então o padre foi mais simpático, me chamou para o canto e disse: qual é o problema? Raiva da mãe, disse eu para não perder tempo, porque a missa ia começar e, se eu não estivesse lá na frente, minha mãe ia se aborrecer. Por causa dessa fita e dessa vela, disse eu. Ah, disse o padre, dois padre-nossos. Achei barato naquela hora, rezei os dois padre-nossos, assisti à missa, comunguei e achei que estava tudo ótimo. É a inocência.
No segundo ano não tinha mais a fita nem a vela, foi um grande alívio, porém durou pouco, justamente porque, não tendo nem fita nem vela, sobrou mais espaço para pecados de pensamento e, além disso, a pessoa vai ficando mais velha e vai pecando mais, é a lei da vida. Felizmente nesse ano teve retiro no sábado e comunhão no domingo, de forma que a gente saía correndo da confissão e ia comungar, para não dar tempo de pecar por pensamento. Também Valdilon, que tem um irmão padre e deve saber dessas coisas, explicou que o camarada fecha os olhos, tapa os ouvidos e fica fazendo barulhos os mais altos possíveis com a boca fechada, que ressoa no ouvido e faz aquele escarcéu etc. etc. e a pessoa vai evitando o pecado. Com treino, acho que é possível e de fato Valdilon treinou diversos, mas eu nunca treinei porque ficava com vergonha de esperar a comunhão no meio daqueles sujeitos tudo de olho fechado, ouvido tapado e fazendo mmmnnn-mmmnnn e bzzzz-bbzzz. Mas, de qualquer maneira, essa segunda comunhão correu muito bem, porque eu comunguei em cima da confissão, saí leve, leve. Quase na certeza.
Na terceira é que foi muitíssimo pior, porque eu estava numa idade de viver pecando por pensamentos. É aí que eu até entendi por que o catecismo fala tanto nos pensamentos, é porque tem gente que se torna assim como eu me tornei: não faz nada, só pensa maus pensamentos, todos os tipos. Mesmo fazendo força, não adiantava nada. Era parar, era estar tendo maus pensamentos. Às vezes eu dizia assim, franzindo até a testa: não vou ter, não vou ter, sai pra lá, e cantando músicas alto — vestida de branco ela apareceu, trazendo na cinta as cores do céu, ave, ave, ave Maria — mas não resolvia: o mau pensamento zipt! Pronto. Nessa situação, era mais do que difícil uma boa comunhão, ainda mais que eu dei para achar que os outros não tinham esse problema, que era tudo obra das tentações do diabo do cão, não se podia confiar em ninguém.
E teve coisas piores nesse ano. Minha irmã ia fazer primeira comunhão e minha mãe fez uma mesa especial, muito mais especial do que a minha, que nem foi especial. Quer dizer, pecado da inveja. E depois tinha de ficar em jejum e eu quase como uma bolachinha de goma, só não comendo porque meu anjo da guarda foi forte e apareceu gente na hora de pegar a bolacha. Pecado da gula, mais sacrilégio. A madrinha de minha irmã apareceu da Bahia e eu fiquei olhando para as pernas dela: conte aí mais pecados, começando de cem. Meu pai me deu dez mil-réis e deu cinco a minha irmã e pediram para eu comprar um santinho para mim e um para ela, todos os dois com meu dinheiro e eu não gostei. Pecado da avareza e mais diversos quebrados e mistos.
Quando chegou na igreja, eu já estava suando e nesse dia não era uma questão de esquecimento na confissão, nem nada disso. Cada respirada que eu dava, tome uma pecada. A missa ia andando, ia andando e eu vendo a danação chegando, até que não aguentei mais e aproveitei que meu pai assistia missa lá de fora fumando, e minha mãe não podia gritar comigo na igreja e então disse a meu pai que queria ter uma conversa com ele de homem para homem, se ele não ia rir. Não vou rir, disse meu pai. Pois então, pois então eu quero ficar aqui na igreja até a outra missa, possa ser a missa das nove, das dez, das onze ou de meio-dia. Quero ficar para comungar depois de confessar direito. Muito bem, disse meu pai, quando voltar traga uma garrafa de clarete único da bodega de seu Barreto e volte antes de uma hora.
Minha mãe ainda quis que eu fosse com todo mundo e ainda quis muitas conversas, mas minha irmã estava com asas de anjo e tudo e tinha a madrinha altamente grã-fina da Bahia, de forma que eu fiquei. Confessei às nove, faltando um pouco. Pequei logo na saída, quis regressar, titubeei, fiz que ia mas não ia, acabei fazendo o sinal da cruz, rezando a penitência, assistindo à missa, mas não tive coragem de comungar, porque, na hora, eu parecia uma cabeleira pendurada de piolhos de pecados, um aspecto péssimo. Voltei, confessei às dez. Achei que, se corresse para o altar de Santo André e rezasse até a hora da comunhão, ia conseguir segurar o pecado. Mas, quando fui ajoelhando no altar, veio uma onda de pensamentos de pecado e fiquei com vontade de comer um pastel com guaraná e até pensei que qualquer coisa eu dava para não estar ali e estar em outro lugar comendo um, ou dois ou três pastéis com guaraná. A missa toda eu passei pensando em comida e, quanto mais eu queria não pensar, mais eu pensava. Não comunguei, estava cada vez mais triste. Às onze, confessei rapidamente, ofereci minha fome a São Judas Tadeu e rezei cinco minutos de olhos fechados, acho que sem pecar. Mas, quando abri os olhos um minutinho, estava uma porção de moças passando lá fora para a praia e pequei, pequei, pequei! Uma fome enorme e uma vontade de chorar e então eu rezei todas as rezas que sabia e me confessei às doze horas para a missa do meio-dia e, ali ajoelhado, esperando a hora, fui sabendo que estava pecando, fui vendo aquela fieira de pecados passando por mim e até fiquei como que de fora, assistindo cinema. E nem me lembro como foi que eu me levantei e fui receber a comunhão, boiando no meio de todos aqueles pecados e, Deus me perdoe, quase tenho um engulho de arrependimento na hora da hóstia entrar em minha boca. A fome passou e acho que tive febre e até hoje não gosto de me lembrar disso, mas vivo me lembrando. Até hoje, tenho certeza de que vou para o inferno. E é só por isso que eu não quero morrer agora, porque, tirante isso, eu queria.

RIBEIRO, João Ubaldo. Livro de histórias. Círculo do livro, s/d .


quinta-feira, 29 de setembro de 2011

TEMPO DE LIVROS, DE LEITURAS... SEMPRE



NO TEMPO DO LIVRO
João Ubaldo Ribeiro
O Globlo, 09-05-10

Ah, nem conto a vocês como era, fico com medo de acharem que estou
mentindo. Mas sei que não estou, quando lembro o dia começando a se
esgueirar por entre as frestas dos grandes janelões do casarão térreo
em que morávamos, e eu, menino de oito ou nove anos, pulando afobado
da cama, para mais uma vez me embarafustar pelo meio dos livros. Quase
febril, ansioso como se o mundo fosse acabar daí a pouco, eu nem sabia
com quem ia me encontrar e aonde viajaria, em nova manhã encantada.
Não havia problemas para eu me embolar com os livros, porque eles não
só estavam junto à minha cama, mas espalhados da cozinha ao banheiro,
em estantes para mim altas como torres, algumas das quais tão pejadas
que volta e meia estouravam, viravam cachoeiras de papel e vinham
abaixo, dando a impressão de que as paredes e o chão se dissolviam em
livros.
Problema havia na escolha, porque nenhum deles era proibido por meu
pai, a não ser, como muito depois ele me contou, os que ele queria que
eu lesse, me escondendo sem saber que tinha caído num ardil. Podia ser
mais um volume da coleção de Tarzan que eu já tinha lido praticamente
toda e não acabava nunca, porque repetia os favoritos. Não, talvez o
Dom Quixote, em dois tomos imponentes que eu mal conseguia sopesar e
cheio de palavras portentosas que eu não compreendia e não ousava me
esclarecer com o velho, porque já conhecia a resposta.
- Dicionário, jumento bípede - respondia ele. - E copie o verbete para
me mostrar depois.
- O que é verbete?
- Dicionário, miolo ralo. E copie esse também.
As gravuras de Gustave Doré que ilustravam as desditas do engenhoso
fidalgo, em imagens cheias de sombras e figuras desconhecidas, me
metiam medo mas eram irresistíveis e, mesmo sem entender direito o que
aquele livro tremendo me contava, eu sempre voltava a ele e muitas
vezes me pilhei devaneando em meio a um descampado e diante de
cata-ventos, na companhia de um magrelo em seu cavalo ainda mais magro
e de um gordo em seu burrico. Mas eu podia preferir ingressar na
Legião Estrangeira, relendo Beau Geste ou Beau Sabreur, que me
deixavam com sonhos de me alistar assim que completasse vinte anos,
para ir viver entre os lendários tuaregues e conquistar o amor da mais
linda princesa do deserto.
Ou podia ir para o Sítio do Picapau Amarelo. Quando Monteiro Lobato,
ainda hoje, para mim, um dos maiores escritores de todos os tempos, em
qualquer lugar, morreu e seu enterro foi mostrado pela revista O
Cruzeiro, demorei muito para acreditar. O sítio continuou a existir,
do mesmo jeito que o pó de pirlimpimpim, a viagem ao céu, o
saci-pererê e toda a mágica que o grande Lobato criou. Tanto assim que
peguei um caderno e comecei a escrever novas aventuras de Narizinho,
Emília e Pedrinho, até que meu pai olhou minha produção, disse que
estava mal escrita, me chamou de plagiário e me mandou ver no
dicionário o que isso queria dizer.
Desisti da empreitada, mas persisti em escrever, para desgosto do
velho, que até morrer lamentou que eu não fosse tabelião, como ele com
toda a razão queria.
Os outros meninos do bairro podiam não morar num mar de livros como eu
ou, ainda menos, ter um pai igual ao meu, mas não eram muito
diferentes. Jogávamos bola (eu, hoje craque do passado, era fominha),
brincávamos de médico com as meninas, fazíamos tudo o que as crianças
daquela época podiam fazer, mas todo mundo gostava de ler, porque ler
representava a liberdade e a fantasia. Comentávamos nossos heróis,
organizávamos empréstimos de livros e gibis e mentíamos
esplendidamente, em tertúlias em que acreditávamos nas histórias dos
outros, contanto que acreditassem nas nossas - era tudo a verdade de
nossas imaginações. A vã memória não distingue mais entre o que eu
contava e os outros contavam, mas isso não tem importância. Todos nós,
afinal, voávamos com Peter Pan e Sininho e alguns de nós namoraram com
a Wendy. Não houve um que não tivesse enfrentado piratas, descido ao
fundo do mar, ficado invulnerável a qualquer arma ou invisível à
vontade, decifrado códigos secretos, falado todas as línguas e vencido
todas as guerras e batalhas. Para isso, não tínhamos mais que os
livros, não precisávamos de mais que eles.
Mas isso era naquele tempo. Hoje, como nos informam a toda hora, os
livros estão mudando, aperfeiçoam-se cada vez mais. Para ler
modernamente, dever-se-á usar um dos muitos leitores eletrônicos que
já existem no mercado e que ainda vão surgir. Segundo uma notícia, um
desses aparelhos possibilita que seu usuário (não é mais leitor, é
usuário) interaja com as chamadas redes sociais na Internet. Suponho
que se lê um pedacinho e se manda um comentário via Twitter. Também
estarão disponíveis, em breve, livros com trilha sonora e com trechos
narrados por voz. Os romances e peças virão com clipes dos cenários
descritos pela narrativa, entrevistas com o autor, facilidade em
substituir palavras difíceis por sinônimos acessíveis, interatividade
com o usuário ("faça seu final, case Romeu com Julieta") - o céu é o
limite.
Acredito que, em relação a isso, vale uma comparação com o celular, o
qual começou como telefone, mas hoje é máquina fotográfica, batedeira
de bolos e ferro de passar e desconfio que está substituindo o(a)
parceiro(a) sexual. Admirável livro novo, que faz uma maravilha atrás
da outra e nem puxa pela imaginação, tudo já vem imaginado para você.
Espero que, tão famosamente equipado, o usuário ainda encontre um
tempinho para ler.


ERA UMA VEZ O PRINCÍPIO
Marina Colasanti
Jornal do Brasil, 08-08-06

"No princípio era a história", escreveu a narradora dinamarquesa Karen Blixen. E tinha razão, o bíblico "no princípio era o verbo" é só um ponto de partida. Para que ter verbo, senão para contar histórias? (...)
Os mitos, histórias contadas na origem dos tempos, entregam nosso vício. Pequenos humanos assustados, somos incapazes de viver sem inventar narrativas com as quais driblar o poço insondável do nosso desconhecimento. E de cada história fazemos uma viagem iniciática. As histórias, e não o tempo, brincam de eterno retorno.
Claude Lecouteux, o estudioso francês que sabe tudo sobre Idade Média, alinhava oito razões para justificar nossa necessidade de contar. Contamos para ter o prazer de compartilhar aquilo que amamos; para despertar a curiosidade e o imaginário do outro; para transmitir um saber; paar levar o ouvinte a um outro universo; para abolir o tempo e o espaço enquanto contamos; para transformar o fato de contar em ato mágico capaz de criar uma ligação com quem escuta; para fazer parte da tradição ancestral; e na busca de um eco. Toda história, diz ele, tem uma alma que não nos deixa jamais indiferentes, que se agarra na nossa e a obriga a amar.
A alma da história foi utilizada em pesquisas sobre sensibilidade auditiva intrauterina. Já se sabia que o feto, com poucos meses de vida, ouve ruídos exteriores. Mas acreditava-se que só reagisse aos mais fortes. Testes realizados com 600 mães, no sexto mês de gravidez, revelaram que o feto não só reage a sons acima de 100 decibéis, como também aos de 50 decibéis, equivalentes à intensidade da voz humana. No primeiro caso, agita braços e pernas, no segundo alteram-se seus batimentos cardíacos, mais acelerados pelos sons desconhecidos, mais lentos quando lhe chega a voz da mãe ou uma música já conhecida.
Pediram então às mães que, à noite, em casa, durante seis semanas, lessem um conto em voz alta. De volta aos testes, outra pessoa leu aquela mesma história. E os batimentos cardíacos do feto desaceleraram. Embora não sendo pela voz da mãe, reconhecer a musicalidade da história tranquilizava aquele esboço de ser humano. No princípio do princípio, poderiam ter dito os pesquisadores, era a história. Aquele ser ainda de nada prestava uma atenção de gente grande e, sem nem saber o que fosse uma palavra, era capaz de distinguir uma história de outra. Quando, ao contrário, contaram um conto diferente, reagiu em alerta, acelerando o minúsculo coração.
E o que acontece depois que a criança nasce? Ao que tudo indica, ela usa sua experiência sonora, seu arquivo de sons, como ponte de ligação com a nova realidade. Não chega tão nua quanto parece. traz, embutido, seu próprio IPod. A voz da mãe já lhe é familiar, se há um cachorro na casa ela conhece seu latido, é íntima do ronco do carro, do estalo do elevador. Poderíamos ir mais longe e deduzir que não à toa os filhos de músicos costumam ser músicos, enquanto dificilmente os filhos de escritores seguem os caminhos da escrita. Mas talvez seja ir longe demais.
Por amor, não como experiência, meu doce amigo Alcione Araújo chegou aos mesmos resultados das pessquisas. Durante a gravidez da sua mulher, toda noite contou um conto para a barriga em que a filha se aninhava. Não era o mesmo conto, mas era a mesma voz. E quando afinal ela nasceu, os contos narrados pela voz do pai apaziguavam qualquer choro, abriam o sorriso ou o caminho para o sono.
Quando uma criança, à noite, pede à mãe ou ao pai que lhe conte uma história já contada infinitas vezes, e exige que seja contada sempre da mesma maneira, sabe intuitivamente o que está fazendo. É como se pedisse colo ou chupeta para se acalmar, como se dissesse: mantenha o mundo parado por alguns momentos para que eu possa esquecer o medo da vida e da morte que estão adiante, à minha espera.

PARA GOSTAR DE LER
Marta Gouvêa Trench
O Globo, 03-03-08

"Precisamos acabar com a idéia de que ler é castigo", afirmou recentemente o diretor do comitê diretivo do Plano Nacional do Livro e da Leitura, José Marques Castilho Neto. Segundo Marques, cada brasileiro lê apenas 1,8 livro por ano, abaixo do cidadão colombiano (2,4) e muito abaixo do norte-americano (5) e do francês (7).
Para que o hábito da leitura se instale, desde cedo é preciso despertar o prazer de ler, indispensável para o aproveitamento da leitura. Se o universo lingüístico da criança for muito pobre, ela não terá condições de entender um texto mais complexo, mesmo que seja alfabetizada. Portanto, entender o que se lê supõe a internalização de um código oral mais sofisticado.
A experiência tem mostrado que pelo menos três condições são imprescindíveis para o indivíduo desenvolver o prazer de ler: gostar de ouvir histórias, ter ouvido um número considerável delas para formar um repertório oral e, finalmente, ser capaz de entender o que lê.
É muito importante que a criança tenha escutado histórias muito antes de ser alfabetizada. Há duas experiências que podem, às vezes, coexistir. Alguém conta histórias para a criança. Esse contar tem as características da fala: vivacidade, uma certa dramaticidade, retomada do discurso, um encadeamento menos rígido. O contador se adapta ao seu interlocutor.
Mas contar histórias não basta. A leitura de bons textos para a criança, antes do processo de alfabetização, é condição para que o prazer de ler venha a se instalar. A alfabetização, então, permite que ela redescubra um universo com o qual já está familiarizada há algum tempo. Porém, para que o resultado seja bom, alguns critérios precisam ser observados: a qualidade da leitura, pois ler em voz alta é uma arte. O leitor deve se preparar para ler, não sendo interessante abusar da dramaticidade nesse momento. Ademais, a leitura deve imitar o ritmo e a entonação da fala coloquial, sem exageros. Outro fator a considerar é a qualidade da voz de quem lê.
Há outras experiências que favorecem o prazer de ler, como oferecer livros para as crianças desde a mais tenra idade e permitir-lhes observar adultos lendo, uma vez que o exemplo auxilia bastante. Porém, não é saudável forçar a criança a identificar as letras no papel, sobretudo quando os familiares não foram preparados para alfabetizar, podendo, assim, atrapalhar a criança ao invés de ajudá-la.
Já a questão do repertório está ligada à idade da criança. Aqui, o melhor critério é observar se ela está interessada no que lhe está sendo lido. Desde cedo pode-se optar pela leitura de contos populares. A seleção dos contos deve ser inspirada não só pelo conteúdo, mas também pela qualidade da sintaxe, que envolve correção gramatical, ritmo e elegância. Uma sintaxe frouxa, que tenta imitar a língua falada, não é de grande utilidade se quisermos que um dia essa criança redija bem. Em seguida, é interessante introduzir os contos de autor. Monteiro Lobato ainda não foi superado no que diz respeito aos quesitos ritmo e elegância das frases.
Chegamos ao fulcro da questão. O indivíduo que apresenta lacunas no processo de alfabetização, modernamente chamado "analfabeto funcional", não pode gostar de ler. Podemos reconhecer vários níveis de analfabetismo funcional: há os indivíduos que leem apenas sílabas, outros apenas palavras isoladas; não são capazes de reproduzir o ritmo e a entonação da frase (...)
Há os que conseguem ler grupos de palavras, mas não dominam o ritmo nem a entonação da frase. Evidentemente, nesse caso, a compreensão da mensagem fica comprometida, pois o esforço é sobre-humano, e a pessoa logo se cansa. Como ter prazer na leitura?
Finalmente, há os que conseguem ler razoavelmente as orações independentes, mas se perdem nos períodos compostos ou simplesmente "saltam" as palavras de ligação. Essas pessoas geralmente criam um texto paralelo, porque desprezam conjunções e até preposições. Também aqui a compreensão deixa a desejar.
Quando são respeitadas as três condições já mencionadas - gostar de escutar histórias, ter ouvido um bom número delas e ser capaz de entender o que se lê -, o amor pela leitura nasce "naturalmente".
Mas, dirão alguns, e os adolescentes e adultos que "sofrem" de analfabetismo funcional? É perfeitamente possível recuperá-los num espaço de tempo relativamente curto, desde que o indivíduo reconheça sua dificuldade e aceite ajuda. É aí que reside o verdadeiro problema, pois a vergonha impede a pessoa de aceitar ajuda. Daí por que continua em vigor o velho preceito segundo o qual prevenir é sempre mais fácil.
Num momento em que se fala tanto em investir em educação para o país se desenvolver, seria interessante lembrar que a base de tudo reside na compreensão do que se lê.


Marta Gouvêa Trench é professora de idiomas, especializada em recuperação de analfabetos funcionais.


TEMPO DE DELICADEZAS



TODO O SENTIMENTO
Chico Buarque / Cristovão Bastos

Preciso não dormir / Até se consumar / O tempo / Da gente / Preciso conduzir / Um tempo de te amar / Te amando devagar / E urgentemente / Pretendo descobrir / No último momento / Um tempo que refaz o que desfez / Que recolhe todo o sentimento / E bota no corpo uma outra vez / Prometo te querer / Até o amor cair / Doente / Doente / Prefiro então partir / A tempo de poder / A gente se desvencilhar da gente / Depois de te perder / Te encontro, com certeza / Talvez num tempo da delicadeza / Onde não diremos nada / Nada aconteceu / Apenas seguirei, como encantado / Ao lado teu

 Hollanda, Chico Buarque de. Tantas palavras / Chico Buarque. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.


TEMPO DE DELICADEZA
Affonso Romano de Sant'Anna
O Globo, 10-05-00

Sei que as pessoas estão pulando na jugular umas das outras.
Sei que viver está cada vez mais dificultoso.
Mas talvez por isso mesmo ou talvez devido a esse maio azulzinho, a este outono fora e dentro de mim, o fato é que o tema da delicadeza começou a se infiltrar, digamos, delicadamente nesta crônica, varando os tiroteios, os sequestros, as palavras ásperas e os gestos grosseiros que ocorrem nas esquinas da televisão e do cinema com a vida.
Talvez devesse lançar um manifesto pela delicadeza. Drummond dizia: "Sejamos pornográficos, docemente pornográficos". Parece que aceitaram exageradamente seu convite e a coisa acabou em "grosseiramente pornográficos". Por isso, é necessário reverter poeticamente a situação e com Vinícius de Morais ou Rubem Braga dizer em tom de elegia ipanemense:
- Meus amigos, meus irmãos, sejamos delicados, urgentemente delicados.
Com a delicadeza de São Francisco, se pudermos.
Com a delicadeza rija de Gandhi, se quisermos.
Já a delicadeza guerrilheira de Guevara era, convenhamos, discutível. Mas mesmo ele, que andou fuzilando pessoas por aí, também andou dizendo: "Há que endurecer, mas sem perder a ternura jamais!".
Essa é a contradição do ser humano. Vejam o nosso sedutor e exemplar Vinícius, que há 20 anos nos deixou, delicadamente.
Era um profissional da delicadeza. Naquela sua pungente "Elegia ao primeiro amigo" nos dizia: "Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente / E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha alma / Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera. / Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento. / Se me entediam, abandono-as delicadamente, despreendendo-me delas com uma doçura de água. / Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim / Desprende esse fluído que as envolve de maneira irremissível / Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher / Mas com singular delicadeza. Não sou bom / Nem mau: sou delicado. Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida / Como um lobo."
Está aí: porque somos ferozes, precisamos ser delicados. Os que não puderem ser puramente delicados que sejam ferozmente delicados.
Houve um tempo em que se era delicado. E houve um tempo em que, citando poetas, até se citava Rimbaud. Esse Rimbaud que Paulo Hecker Filho acabou de retraduzir no livro Só poema bom e o Leandro Konder reinventou numa moderna trama policial em A morte de Rimbaud.
Pois aquele Rimbaud, que aos 17 anos já tinha feito sua obra poética, é quem disse um dia: "Por delicadeza, eu perdi minha vida."
Intrigante isso.
Há pessoas que perdem lugar na fila, por delicadeza. Outras, até o emprego. Há as que perdem o amor por amorosa delicadeza. Sim, há casos de pessoas que até perderam a vida, por pura delicadeza. Não é certamente o caso de Rimbaud, que se meteu em crimes e contrabandos na África. O que ele perdeu foi a poesia. E isso é igualmente grave.
Confesso que buscando programas de televisão para escapar da opressão cotidiana, volta e meia acabo dando em filmes ingleses. Mais que as verdes paisagens, que o elegante guarda-roupa, fico ali é escutando palavras educadíssimas e gestos elegantemente nobres. Não é que entre as personagens não haja as pérfidas, as perversas. Mas os ingleses têm uma maneira tão suave, tão fina de serem cruéis, que parece um privilégio sofrer nas mãos deles.
Tudo é questão de estilo.
Aquele detestável Bukovski, sendo abominável, no entanto, num poema delicado dizia que gostava dos gatos, porque os gatos tinham estilo. É isso. É necessário, com certa presteza, recuperar o estilo felino da delicadeza.
A delicadeza não é só uma categoria ética. Alguém deveria lançar um manifesto apregoando que a delicadeza é uma categoria estética.
Ah, quem nos dera a delicadeza pueril de algumas árias de Mozart. A delicadeza luminosa dos quadros dos pintores flamengos, de um Vermeer, por exemplo. A delicadeza repousante das garrafas nas naturezas mortas de Morandi. Na verdade, carecemos da delicadeza dos adágios.
Vivemos numa época em que nos filmes americanos os amantes se amam violentamente e, em vez de sussurrarem "I love you", arremetem um virótico "Fuck you".
Sei que alguém vai dizer que com delicadeza não se tira um MST - com sua foice e fúria - dos prédios ocupados. Mas quem poderá negar que o poder tem sido igualmente indelicado com os pobres deste país há 500 anos?
Penso nos grandes delicados da história. Deveriam começar a fazer filmes, encenar peças sobre os memoráveis delicados. Vejam o Marechal Rondon. Militar e, no entanto, como se fora um místico oriental, cunhou aquela expressão que pautou o seu contato com os índios brasileiros: "Morrer se preciso for, matar nunca".
A historiadora Denise Bernuzzi de Sant'Anna anda fazendo entre nós o elogio da lentidão, denunciando a ferocidade da cultura da velocidade. É bom pensar nisso. Pela pressa de viver as pessoas estão esquecendo de viver. Estão todos apressadíssimos indo a lugar nenhum.
Curioso. A delicadeza tem a ver com a lentidão. A violência tem a ver com a velocidade. E outro dia topei com um livro - "A descoberta da lentidão" - onde Sten Nadolny faz a biografia do navegador John Franklin, que vivia pesquisando o Pólo Norte. Era lento em aprender as coisas na escola, mas quando apreendia algo o fazia com mais profundidade que os demais.
Sei que vão dizer: A burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados.
 - E eu não sei?
Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados.


LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rocco, 1998.

"(...) Neste mesmo instante estou pedindo ao Deus que me ajude. Estou precisando. Precisando mais do que a força humana. Sou forte mas também destrutiva. O Deus tem que vir a mim já que não tenho ido a Ele. Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu não mereça. Venha. Ou talvez os que menos merecem mais precisem. Sou inquieta e áspera e desesperançada. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor. Às vezes me arranha como se fossem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e no entanto continuo inquieta é porque preciso que o Deus venha. Venha antes que seja tarde demais. Corro perigo como toda pessoa que vive. E a única coisa que me espera é exatamente o inesperado. Mas sei que terei paz antes da morte e que experimentarei um dia o delicado da vida. Perceberei - assim como se come e se vive o gosto da comida. (...)" 


O MILAGRE DAS FOLHAS

Não, nunca me acontecem milagres. Ouço falar, e às vezes isso me basta como esperança. Mas também me revolta: por que não a mim? Por que só de ouvir falar? Pois já cheguei a ouvir conversa assim, sobre milagres: "Avisou-me que, ao ser dita determinada palavra, um objeto de estimação se quebraria." Meus objetos se quebram banalmente e pelas mãos das empregadas. Até que fui obrigada a chegar à conclusão de que sou daqueles que rolam pedras durante séculos, e não daqueles para os quais os seixos já vêm prontos, polidos e brancos. Bem que tenho visões fugitivas antes de adormecer - seria milagre? Mas já me foi tranquilamente explicado que isso até nome tem: cidetismo, capacidade de projetar no campo alucinatório as imagens inconcientes.
Milagre, não. Mas as coincidências. Vivo de concidências, vivo de linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um leve e instantâneo ponto, tão leve o instantâneo que mais é feito de pudor e segredo: mal eu falasse nele, já estaria falando em nada.
Mas tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhões de folhas transformadas em uma única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzi-las a mim. Isso me acontece tantas vezes que passei a me considerar modestamente a escolhida das folhas.
Com gestos furtivos tiro a folha dos cabelos e guardo-a na bolsa, como o mais diminuto diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto como lembrança. E também porque sei que novas folhas concidirão comigo.
Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

domingo, 25 de setembro de 2011

SOLIDÃO DE 'CACIQUES'



"(...) Eu acordo pra trabalhar / Eu durmo pra trabalhar / Eu corro pra trabalhar / Eu não tenho tempo de ter / O tempo livre de ser / De nada ter que fazer / É quando eu me encontro perdido / Nas coisas que eu criei / E eu não sei / Eu não vejo além da fumaça / O amor e as coisas livres, coloridas / Nada poluídas (...)"
            Marcos Valle / Paulo Sérgio Valle
            "Capitão de indústria", Paralamas do Sucesso, Nove luas, EMI MUSIC LTDA., Rio de Janeiro, 1996.

SOLIDÃO DE 'CACIQUES'
Por Fábio Brito

Em 1996, quando ouvi “Nove luas”, CD do grupo Paralamas do Sucesso lançado naquele ano, minha atenção se voltou para a regravação de “Capitão de indústria”, canção dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle: “Eu acordo pra trabalhar / Eu durmo pra trabalhar / Eu corro pra trabalhar (...)”, também revisitada, anos mais tarde, por Erasmo Carlos no songbook de Marcos Valle. Pois é, faz tempo que sempre ouço essa canção, que me serve de açoite quando percebo que estou começando a ficar viciado em trabalho.
           Não me canso de dizer que, para quem trabalha além da conta, a vida vira só trabalho. E a vida não pode virar só trabalho. Fico triste porque conheço muitos “viciados em trabalho”. Gostaria – sinceramente – de conhecer menos... ou de não conhecer quaisquer pessoas com esse tipo de vício. São os tais “workaholics”, termo que, de uns tempos para cá, tem sido cada vez mais empregado. Triste isso!
              A grande neurose desse tipo de viciado é achar ('teoria do achismo' mesmo!) que todas as pessoas têm, necessariamente, de ser viciadas também. Quando o tal viciado é um cacique, aí, então, o clima pesa. O todo-poderoso (o onipotente) tenta impor seu ritmo a todos, o que acaba virando loucura. Primeiro, porque o ritmo desses viciados desconhece pausa (até para almoço, lanche ou sono); segundo, porque ninguém tem o mesmo tempo; terceiro, porque descanso faz bem e todos o merecem. Às vezes, quando sinto que estou “fora de mim” e totalmente imerso em alguma atividade de trabalho, dou uma “parada” estratégica: faço algo totalmente diferente. Assim, fujo à neurose.
            Dia desses, estive pensando na aposentadoria dos “caciques” viciados em trabalho. Não existe! Quando é possível, continuam trabalhando depois de aposentados. Sempre alegam que, em casa, vão enlouquecer. Poxa! Que sandice! Será que não há qualquer atividade digna fora do local de trabalho? Sempre digo que, quando minha aposentadoria chegar, haverá uma vida aqui fora 'me' esperando. Há muitos lugares que ainda não conheço, há muitos livros que ainda não li, há muitos filmes a que ainda não assisti, há muitas peças que ainda verei... e por aí vai. Terei tempo - e de sobra! - para minhas caminhadas, para a leitura de meus jornais. Fora essas atividades, há ainda trabalhos voluntários que podem sem prestados e que, certamente, enriquecem o espírito de qualquer pessoa. São atividades que nos fazem pessoas melhores, que nos tornam mais “gente”.
 Para os chefes viciados em trabalho, no entanto, atividades prazerosas são apenas as que têm a ver com seu local de trabalho. Quando ficam em casa, muitos morrem mais cedo. Entram em processo de profunda depressão (há casos e mais casos por aí). O triste (triste mesmo!) é que essas pessoas são, não raro, rigorosos ao extremo. Em nome do rigor que o trabalho exige (pelo menos, é o que eles dizem), humilham, ofendem, escravizam, enfim, passam por cima de tudo com uma naturalidade espantosa. Repeito às individualidades? Não existe! Respeito ao tempo de cada um? Não existe! Desconhecem ética e liberdade de expressão. Ai de quem ousar enfrentá-los! Quer tentar? Vá em frente! No entanto, seja cuidadoso, cauteloso. Seja, acima de tudo, inteligente. Chegue com calma e sabedoria.  
Em se tratando dessas chefias, impossível não pensar, por exemplo, na solidão desse povo. Que vida triste, não? Que pessoas infelizes, meu Deus! Não têm amigos (têm bajuladores), não têm companheiros, não têm lazer, não têm diversão, não têm momentos de ócio (nunca ouviram tal palavra!). Para qualquer encontro prazeroso, são os primeiros nomes descartados. Ninguém os suporta, claro! Quem respira trabalho "vinte e quatro horas por dia" e ainda por cima é "chefe" torna o ar "irrespirável". E quando chegar a velhice (a velhice mesmo!) dessas pessoas? Talvez não vivam tanto, mas... e se viverem "até lá"? Nada mais previsível do que imaginar o fim a que terão direito: sozinhas e remoendo suas dores, suas amarguras, seus rancores, suas decepções, suas faltas, seus excessos, seu ódio, seu rigor exacerbado (que não serviu para nada!). A vida passou...      
             Quando penso nos muitos chefes viciados em trabalho que conheci e conheço, lembro-me de  A VIDA É SONHO, de Calderón de La Barca, em que o homem seiscentista toma consciência de que ele não é o "centro de tudo". Fica sabendo, antes de tudo, que "a vida é sonho", que nada dura para sempre, que tudo muda, que a efemeridade da vida é inevitável. Vale, aqui, um resuminho da história: o protagonista, príncipe Segismundo, foi condenado por seu pai a viver isolado em uma torre, onde viveu do nascimento até a juventude, só conhecendo seu carcereiro. Quando percebe que talvez tenha errado ao isolar seu filho, o rei Basílio decide tirá-lo da prisão e testá-lo, a fim de saber se ele pode (e merece) ser seu herdeiro. Se o príncipe o decepcionar, terá de retornar à prisão. Para evitar o sofrimento do filho, o rei, então, pensa em uma estratégia: a Segismundo será dada uma droga muito forte que o deixará dormindo profundamente. Quando acordar, já estará em um quarto luxuoso do palácio. Assim, o jovem príncipe experimentou as "honrarias e as pompas" do palácio. Mais tarde, porque cometeu ações condenáveis quando exerceu o poder, é obrigado a voltar à torre onde passara boa parte de sua vida. O carceiro o convence, então, de que tudo foi apenas um sonho.
                Para os "chefes-déspotas-viciados-em-trabalho", o regresso à "torre" nada mais é do que a solidão - ou a "sosinhez" - sem remédio a que foram condenados. Nem mais "se" reconhecem ou têm consciência dos abusos que cometeram quando foram "reis", quando julgaram ter um poder sem fim, quando acharam que "eram" o poder, quando todos os bajuladores não os enxergavam nus. A diferença é que, agora, eles continuam nus, usando seus tecidos mágicos, mas até os bajuladores se foram.

O Grito.jpg
"O grito", de Edvard Munch

A roupa nova do rei
Hans Christian Andersen
Versão livre:
Alfredo Braga

Era uma vez um Rei que apreciava de tal maneira roupas novas que despendia com elas grandes fortunas. Ele não se importava com as bibliotecas, com as escolas, ou com os museus, a não ser para exibir as suas roupas. Para cada hora do dia vestia uma diferente. Em vez de o povo dizer: Ele está em seu gabinete de trabalho, dizia: Ele está em frente ao espelho no seu quarto de vestir. Mesmo assim a vida cultural era muito movimentada naquele reino que postulava ser de primeiro mundo.
Um dia foram contratados, pela Fundação Cultural do Reino, vários curadores e artistas, e entre eles dois que se apresentavam como estilistas-tecelões e que se gabavam de costurar os mais belos trajes com os mais belos tecidos do mundo. Segundo eles, não só os padrões, as tramas e as cores dos modelos eram belíssimos, mas os tecidos fabricados por eles tinham a infalível virtude de ficarem completamente invisíveis para as pessoas dissimuladas, ou as incompetentes, ou as destituídas de inteligência.
— "Essas roupas com esses tecidos serão maravilhosas." — pensou o Rei — "Usando-as poderei descobrir quais pessoas são falsas, ou que não estão em condições de ocupar cargos, e então poderei substituí-las por outras... Mandarei que fabriquem muitas peças desse tecido para mim..."
Fez um adiantamento em moedas de ouro para que começassem a trabalhar imediatamente. Os estilistas então encomendaram uma grande quantidade de bobinas e carretéis dos mais caros fios de seda e fios de ouro (que escamotearam sorrateiramente e guardaram em seus baús enquanto simulavam trabalhar nos teares vazios) e começaram a tecer, mas nada havia na urdidura ou nas lançadeiras.
Depois de alguns dias, o Rei estava ansioso e andava de um lado para o outro enquanto procurava se distrair com algum casaco ou chapéu do qual ainda não estivesse muito enjoado, ou que ainda estivesse na moda.
Eu quero saber como vai indo o trabalho dos tecelões. — dizia o Rei, mas andava vagamente pensativo e preocupado... Ele não tinha propriamente dúvidas sobre a sua honestidade e inteligência, mas achou melhor mandar outra pessoa ver o andamento do trabalho.
Todos na cidade também já tinham ouvido falar no poder maravilhoso do tecido, e cada um estava mais ansioso para saber quem era o mais falacioso e burro entre os seus vizinhos.
— "Mandarei o Primeiro Ministro observar o trabalho dos estilistas-tecelões; ele verá o tecido, pois é inteligente e desempenha as suas funções com perfeição." — cavilou o Rei.
Mandou chamar o Primeiro Ministro e ordenou que fosse ao salão (onde os dois charlatães simulavam trabalhar nos teares vazios) saber do tecido.
— "Deus me acuda!" — pensou o Primeiro Ministro, arregalando os olhos quando lhe mostraram o tear. — "Não consigo ver nada!" — no entanto teve o cuidado de não dizer isso em voz alta.
Os tecelões o convidaram a aproximar-se para verificar como o padrão da trama estava ficando bonito e apontavam para os teares. O pobre homem apertava a vista o mais que podia, tirava e punha os óculos, mas não conseguiu ver coisa alguma.
— "Céus!" — pensou ele — "Será possível que eu seja tão fingido e incompetente? Bem, ninguém deverá saber disto e não contarei a ninguém que não vi o tecido."
Vossa Excelência nada disse sobre o tecido... — queixou-se um dos estilistas.
Ah, sim. É muito bonito. É encantador! — respondeu o Primeiro Ministro, limpando os óculos com um lenço de cambraia de linho — O padrão é lindo e as cores são de muito bom gosto. Direi ao Rei que me agradou muito.
Estamos encantados com a vossa opinião, Senhor Primeiro Ministro. — responderam os dois ao mesmo tempo, e iam descrevendo as cores e a trama especial daquele pano tão caro. O Primeiro Ministro prestou muita atenção a tudo o que diziam para poder depois repetir diante do Rei.
Os estilistas pediram mais dinheiro, mais seda e mais ouro para prosseguir com o trabalho e, como das outras vezes, puseram tudo em seus baús e continuaram fingindo que teciam.
Poucos dias depois o Rei enviou o Ministro da Cultura e das Artes para olhar o trabalho e saber quando ficaria pronto. Aconteceu-lhe como ao Primeiro Ministro: Olhou, olhou, tornou a olhar, mas só via os teares vazios.
Não é lindo o tecido? — indagavam os tecelões, e davam-lhe as mais variadas explicações sobre a trama, o padrão, os brilhos, as cores.
— "Eu penso que não sou muito desonesto..." — refletiu o Ministro da Cultura e das Artes — "e nem estúpido... Se fosse assim, não teria chegado à altura do cargo que ocupo... Que coisa estranha!..."
Pôs-se então a elogiar as cores e o desenho, e mais tarde, não só como Ministro mas como Curador de exposições de artistas e fotógrafos, comunicou ao Rei:
É um trabalho sublime... em seus aspectos de inconcretude material... hã... uma obra-prima em sua fundamentalidade semântica... e visualidade sígnica... hã... o imagético e o invisível se fundem num todo de... hã... expectativas estético-formais... neste simulacro crítico... se percebe a função... hã... as funções, semióticas... da transcendente imaterialidade da arte...
E já completamente tomado:
Assim, neste procedimento referencial do não-objeto... hã... em sua virtual vacuidade... o deslocamento do olhar... em sua intensa... hã... re-significação... a obscurecer ao limite extremo... toda e qualquer possibilidade de reflexão perceptiva... hã... insere-se nesta vertiginosa... pós-modernidade... hã... Mas, por outro lado... o discurso estético... das poéticas da segunda metade do século XX ... hã...
O Rei teve de o interromper:
Está bem, já compreendi.

A cidade inteira só falava nesse deslumbrante tecido, de modo que o Rei resolveu vê-lo enquanto estava nos teares. Acompanhado por um grupo de cortesãos e cortesãs, entre os quais os Ministros que já tinham ido ver o prodigioso pano, e curadores e artistas convidados, lá foi ele visitar os ardilosos tecelões. Eles estavam trabalhando mais do que nunca nos teares vazios.
Veja, Vossa Alteza Real, que delicadeza de desenho! Que combinação de cores! — balbuciavam os altos funcionários do Rei enquanto apontavam para os teares vazios e os curadores desenvolviam os seus discursos. — Ofuscante... Estonteante... — suspiravam as cortesãs.
O Rei, que nada via, preocupado pensou: — "Serei eu o único cretino e não estarei em condições de ser o Rei? Nada pior do que isto poderia me acontecer!" — então, em alto e bom tom, declarou:
Muito bom! Realmente merece a minha aprovação!
Por nada deste mundo ia confessar que não tinha visto coisa alguma. Todos aqueles que o acompanhavam também não conseguiam ver o tecido, mas exclamavam em prolongados murmúrios:
Oh! Deslumbrante... Magnífico... — e aconselharam ao Rei que usasse a roupa nova por ocasião da parada anual que ia se realizar daí a alguns dias. O Rei até concedeu a cada tecelão-estilista a famosa Comenda das Artes e o nobre título de Cavaleiro Estilista-Tecelão.
Na noite que precedeu o desfile, os charlatães tecelões fizeram serão. Iam acendendo todas as lâmpadas do atelier para que todos pensassem que estavam trabalhando à noite para aprontar os trajes do Rei. Fingiam tirar o tecido dos teares, cortavam a roupa no ar com um par de tesouras muito grandes e coseram-na com agulhas sem linha. Na manhã do dia seguinte disseram:
Agora, a roupa do Rei está pronta.
Sua Majestade, acompanhado dos cortesãos, veio provar a roupa nova. Os estilistas embusteiros fingiam segurar alguma coisa e diziam:
Aqui estão as calças, aqui está o casaco e aqui o manto. Estão leves como teias de aranhas; até parece que não há nada cobrindo o Rei, mas aí é que está a rara e fina qualidade deste modelo e deste tecido.
Sim! — concordaram todos, embora nada estivessem vendo.
Poderia Vossa Majestade despir-se? — pediram os impostores. — Assim poderemos vestir-lhe a roupa nova.
O Rei despiu-se e eles fingiram vestir-lhe peça por peça. Sua Alteza Real virava-se para lá e para cá, olhando-se ao espelho (vendo sempre a redonda imagem de seu corpo nu).
Oh! Como lhe assentou bem o novo traje, Alteza! Que lindas cores! Que bonito padrão! — diziam todos com medo de caírem no ridículo e perderem os altos cargos se descobrissem que não viam nada. Entretanto o Mestre de Cerimônias anunciou:
A carruagem está esperando para conduzir Vossa Majestade.
— Estou quase pronto. — respondeu o Rei.
Mais uma vez virou-se solenemente em frente ao espelho, com o rosto erguido sobre o ombro, numa atitude de quem está mesmo apreciando alguma coisa.
Os pagens que iam segurar a cauda do manto, inclinaram-se como se fossem levantá-la e foram caminhando com as mãos à frente, sem dar a perceber que não estavam vendo roupa alguma. Durante o desfile o Rei ia caminhando cheio de pompa à frente da carruagem. O povo nas calçadas e nas janelas, também não querendo passar por tolo, ou mentiroso, exclamava:
Que caimento tem a roupa do Rei! Que manto majestoso! E que brilhante tecido!
Nenhuma roupa do Rei jamais recebera tantos elogios! Entretanto um menino que estava entre a multidão, achou aquilo tudo muito estranho e disse:
Coitado do Rei... Está nu!
Os homens e as mulheres do povo, conhecendo que o menino não era nem falso e nem tolo, começaram a murmurar... e logo a seguir, como numa onda, em altos brados repetiam:
O Rei está nu! O Rei está nu!

O Rei, ao ouvir aquelas vozes do povo, ficou furioso por estar tão ridículo! O desfile entretanto devia prosseguir, de modo que se manteve imperturbável e os pagens continuavam a segurar-lhe a cauda invisível.
Depois que tudo terminou ele voltou ao Castelo Real de onde nunca mais pretendia sair. Mas, como sempre acontece, uma semana depois o povo já havia esquecido o escândalo, e os funcionários do reino seguiam como se nada houvesse acontecido: Os cargos continuavam a ser distribuidos entre as mesmas duas ou três famílias e seus agregados; os impostos sonegados; o desvio de verbas continuava em alta, enfim, tudo voltou ao normal.
Quanto aos dois estilistas-tecelões, desapareceram misteriosamente levando o dinheiro, os fios de seda e o ouro. Meses depois um viajante contou que eles haviam pregado o mesmo golpe em outro pequeno reino, onde os cidadãos também andavam de nariz empinado, cheios de soberba e afeitos às pequenas e às grandes hipocrisias.
(...)

sábado, 24 de setembro de 2011

FURACÃO




Cássia Eller é “a” transgressão. Em seu Ao vivo MTV, visitou, com perfeição, o repertório de Piaf, a primeira dama da canção francesa. Gravou lindamente Non, je ne regrette rien, de Michel Vaucaire e Charles Dumont: “Non, rien de rien / Non, je ne regrette rien (...)”. Francês perfeito. E não conhecia a língua, como ela mesma declarou. Coisa de gênio. Em seu primeiro disco, está uma de minhas preferidas: Que o Deus venha, de Cazuza e Frejat sobre texto de Clarice Lispector: “Sou inquieta, áspera / E desesperançada / Embora amor dentro de mim eu tenha / Só que eu não sei usar amor / Às vezes, arranha / Feito farpa (...). O texto está em Água viva, um dos meus livros preferidos e do Cazuza também. Lembro-me de ter visto/ouvido Cássia pela primeira vez cantando em dueto com Edson Cordeiro. A faixa une duas canções: A rainha da noite, da ópera A flauta mágica, com os agudos - que partem cristal – do Edson, e I can’t get no (Satisfaction), do repertório dos Stones, com os graves rascantes da Cássia. É um duelo de titãs, que está no disco do Edson. No som do carro, aumento bem o volume. Dá vontade de gritar para todo o mundo que tenho essa canção. Que preciosidade. Para algumas pessoas, deve ser difícil saber quem é ‘o homem’ e quem é ‘a mulher’ que cantam nessa faixa. Muita gente não deve ter entendido nada. As pessoas gostam dos papéis bem definidos, dos rótulos. Problemas de uma sociedade que não pensa além, que é bem limitadinha, que se acostumou a pôr as pessoas em caixinhas bem certinhas, em compartimentos estanques. Uh! Viva, Cássia Eller! Cássia Eller é sem fronteiras. Cássia é, acima de tudo, uma transgressora.





quarta-feira, 14 de setembro de 2011

LEITURA, LITERATURA, LIVROS, CIDADANIA



CIDADANIA E LEITURA
Leandro Konder

            Inicialmente, a cidade foi fortaleza, lugar que proporcionava alguma segurança. Depois, foi entreposto, mercado, lugar privilegiado para a troca de mercadorias e de ideias.
            O homem da cidade viveu, historicamente, experiências que o homem do campo não conhecia. Na Grécia clássica, com a pólis, cirou-se um modelo especial, diferente, de cidade: uma cidade na qual os homens livres na cidade discutiam em assembleia e podiam intervir no destino da comunidade. Viraram cidadãos. E faziam política (termo que vem de pólis).
            Desde o começo, a organização da cidade impunha leis e exigia que as leis ficassem registradas por escrito. Veja-se, por exemplo, o Código de Hammurabi, na Babilônia, datado de cerca de 1750 a.C.
            As condições em que se fazia o registro escrito eram difíceis e dependiam do poder do Estado: inscrições na pedra, em pergaminho, mais tarde em papiro. Os livros eram rolos e só podiam ser copiados manualmente.
            Durante séculos, a Ilíada, a Odisséia, o Mahabarata, o Ramayana, os Vedas eram ouvidos e não lidos, porque não haviam sido registrados por escrito. As leis humanas ou divinas, porém, tinham de ser escritas.
            O poder de ler e escrever envolvia a segurança do governo da cidade. A leitura ficava submetida a um rigoroso controle político. As condições em que se vivia na cidade facilitavam a circulação de textos, a multiplicação das leituras.
            Na Idade Média, a Igreja se tornou na Europa uma instituição poderosíssima, que precisava formar seus funcionários qualificados, capazes de ler. No Renascimento, esses funcionários começaram a se tornar mais inquietos e queriam ter acesso a leituras mais diversificadas. Eram os “humanistas”.
            Os “humanistas” incomodavam os censores. O atendimento à reivindicação dos que desejavam leituras mais livres e diversificadas acabou sendo possibilitado pela invenção, por Guttenberg, da máquina impressora.
            Com a multiplicação dos livros (em novo formato) aumentou o círculo de leitores. Mas, mesmo sendo muitos, ainda eram pouquíssimos, constituíam uma elite. O povo não lia. E os historiadores se perguntam como foi que populares como o moleiro Mennochio (resgatado por Carlo Ginzburg em O queijo e os vermes) e o sapateiro Jacob Boehme aprenderam a ler e a escrever.
            No século 18 – o “Século das Luzes” – cresce entre os intelectuais a reivindicação de maior difusão dos textos escritos. A convicção deles era a de que o Mal resultava sobretudo da ignorância. O conhecimento e a razão tinham um efeito libertador mais ou menos garantido.
            Diderot, coerente com essa convicção, dedicou mais de vinte anos de trabalho à edição da Enciclopédia (palavra que vem do grego e significa a difusão “em círculo”, quer dizer, para todos, de conhecimentos capazes de forjar a alma: en kyklos paidéia). Na época, na França, havia 2% de alfabetizados e 98% de analfabetos; 150 anos depois, havia 98% de alfabetizados e 2% de analfabetos.
            Foi no século 19 que começou a sucessão de grandes mudanças desencadeadas a partir da Revolução Industrial. As sociedades passaram a girar cada vez mais em torno do mercado. As cidades cresceram em ritmo vertiginoso.
            Na vida cultural, longe dos tempos em que o poder de ler e escrever era controlado pelo Estado, que se ocupava de registrar o que convinha à ordem constituída, ficaram liberadas as narrativas não edificantes.
            A ficção conquistava o direito de explorar seus próprios, múltiplos caminhos. Chegou-se a uma situação na qual a escrita se tornou mais livre, mas a leitura não trazia mais com ela problemas que, do ponto de vista das classes dominantes, exigiriam a constante intervenção controladora do Estado, porque o mercado, com sua própria dinâmica, transforma tudo em mercadoria. E transforma em mercadorias até os textos mais “subversivos”.
            Nossas cidades, com suas desigualdades sociais monstruosas, se transformaram em caldeirões que parecem prestes a explodir. No entanto, as denúncias escritas dessa situação parecem inócuas.
            Por um lado, a literatura tem poder de nos proporcionar uma maior compreensão da nossa condição de pessoas um tanto bizarras e confusas. Então, ela pode nos incitar a tomarmos atitudes de protesto contra a inumanidade e a mentira, de revolta contra a injustiça e a opressão.
            Por outro lado, porém, apesar do fascínio que a leitura dos textos inquietos exerce sobre os leitores, contribuindo decisivamente para a formação de consciências críticas e de um legítimo espírito de cidadania, a cidade - tal como está organizada - nos coloca na posição melancólica de observadores quase impotentes da dinâmica rudemente pragmática do mercado. 
            Com a generalização da produção de mercadorias, o rosto expressivo do revolucionário serve de ilustração na T-shirt, os versos do poeta "engajado" são aproveitados em jingles publicitários, as fortes imagens eróticas do pintor combativo são adaptadas à linguagem da pornografia mercantilizada.
              Como lidar com esse quadro?
              Uma coisa é certa: não podemos deixar que um cetiismo exagerado nos desmobilize. Contra o desânimo, precisamos insistir na reanimação do espírito inconformista. Como diz o psicanlista Joel Birman, devemos assumir nosso desamparo (desistir de buscar a proteção de um superpai), mas devemos, igualmente, evitar que o desamparo se transforme em desalento.
              Naquilo que escrevemos, naquilo que oferecemos à cidade para que ela leia, é preciso que persista, no mínimo, certa incitação à rebeldia. Certo esforço no sentido de estimularmos nos cidadãos a inquietação que renasce e impede que eles se reduzam a meros consumidores.
               Afinal, consumir é parte do viver. Mas - ao contrário do que surgere o consumismo - a vida não se resume ao consumo.

Jornal do Brasil, 17 de agosto de 2002

Pausa: "A sociedade de consumo está convidando as pessoas ao crime, emitindo suas mensagens publicitárias em direção a uma massa imensa de jovens sem nenhuma possibilidade de consumir aquilo que lhes é oferecido. Diz: 'Se você não tem, você não é'. Quem não tem sapatos de marcas não é ninguém. Para ter isso precisam roubar, matar, estuprar, seja o que for. Quem não consome não tem direito de existir. A sociedade de consumo estimula a delinquência tanto quanto as estruturas sociais injustas."

Eduardo Galeano (entrevista concedida ao Jornal do Brasil de 04 de dezembro de 2005 - Caderno B)
               
A LITERATURA E A VIDA
Gilles Deleuze

Escrever certamente não é impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento, como Gombrowicz o disse e fez. Escrever é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre em vias de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir: ao escrever, nos tornamos-mulher, nos tornamos-animal ou vegetal, nos tornamos-molécula, até um devir-imperceptível. Esses devires encadeiam-se uns aos outros segundo uma linhagem particular, como num romance de Le Clézio, ou então coexistem em todos os níveis, segundo portas, limiares e zonas que compõem o universo inteiro, como na obra poderosa de Lovecraft. O devir não vai na direção oposta, e não nos tornamos Homem, apesar de o homem apresentar-se como uma forma de expressão dominante, que pretende impor-se a toda matéria, ao passo que a mulher, animal ou molécula têm sempre um componente de fuga que se furta à sua própria formallização. A vergonha de ser um homem, haverá razão melhor para escrever? Mesmo quando é uma mulher que devém, cabe a ela devir-mulher, e esse devir nada tem a ver com um estado que ela poderá reivindicar. Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mímesis), mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que já não seja possível distinguir-se de uma mulher, de um animal ou de uma molécula: não imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto se singularizam numa população. Pode-se instaurar uma zona de vizinhança com qualquer coisa, sob condição de criar para tanto os meios literários, tal como Dhôtel com o áster. Algo passa entre os sexos, os gêneros ou os reinos. O devir sempre está "entre" ou "no meio": mulher entre as mulheres, ou animal no meio dos outros. Mas o artigo indefinido só efetua sua potência se o termo que ele faz devir é por seu turno despojado dos caracteres formais que fazem dizer o, a ("o animal que aqui está"...). Quando Le Clézio se torna-índio, é um índio sempre inacabado, que não sabe "cultivar o milho nem talhar uma piroga": ele entra numa zona de vizinhança, ao invés de adquirir caracteres formais. O mesmo ocorre, segundo Kafka, com o campeão de natação que não sabia nadar. Toda escrita comporta um atletismo, porém longe de reconciliar a literatura com os espotes, ou de fazer da escrita um jogo olímpico, esse atletismo se exerce na fuga e na defecção orgânicas: um esportista na cama, dizia Michaux. Tornamo-nos tanto mais animal quanto o próprio animal morre; e, contraiamente a um preconceito espiritualista, é o animal que sabe morrer e tem disso o senso e o pressentimento. A literatura começa com a morte do porco-espinho, segundo Lawrence, ou a morte da toupeira, segundo Kafka: "Nossas pobres patinhas vermelhas estendidas num gesto de terna piedade". Escreve-se para os bezerros que morrem, dizia Moritz. A língua tem o dever de alcançar desvios femininos, animais, moleculares, e todo desvio é um devir mortal. Não há linha reta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto de desvios necessários cada vez criados para revelar a vida nas coisas.
Escrever não é contar as próprias recordações, viagens, amores e lutos, sonhos e fantasmas. Pecar por excesso de realidade ou de imaginação é a mesma coisa: em ambos os casos é o eterno papai-mamãe, estrutura edipiana que se projeta sobre o real ou que se introjeta no imaginário. É um pai que se vai buscar no final da viagem, como no seio do sonho, numa concepção infantil da literatura. Escreve-se para o próprio pai-mãe. Marthe Robert levou ao extremo essa infantilização, essa psicanalização da literatura, não deixando outra escolha ao romancista senão Bastardo ou Criança reencontrada. Mesmo o devir-animal não está a salvo de uma redução edipiana, do gênero "meu gato, meu cão". Como diz Lawrence, "se eu sou uma girafa, e os ingleses ordinários que escrevem sobre mim simpáticos cães bem-educados, tudo está dito, os animais são diferentes... vocês detestam instintivamente o animal que eu sou". Regra geral, os fantasmas só  tratam o indefinido como as máscaras de um pronome pessoal ou de um possessivo: "bate-se numa criança" se trasnforma rapidamente em "meu pai me bateu". Mas a literatura segue a vida inversa, e só se instala desco- brindo sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que não é de modo algum uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau: um homem, uma mulher, um animal, um ventre, uma criança... Não são as duas primeiras pessoas do singular que servem de condição à enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu (o "neutro" de Blanchot). Por certo os personagens literários são perfeitamente individuados, e não vagos nem gerais; mas todos seus traços individuais os elevam a uma visão que os arrasta num indefinido como um devir poderoso demais para eles: Ahab e a visão de Moby Dick. O Avarento não é de modo algum um tipo, porém ao contrário, seus traços individuais (amar uma rapariga etc.) o fazem aceder a uma visão, ele vê o outro, de tal maneira que põe-se a fugir sobre uma linha de feitiçaria na qual ganha a potência do indefinido - um avarento..., um tanto de ouro, mais ouro... Não há literatura sem fabulação, mas como Bergson soube vê-lo, a fabulação, a função fabuladora não consiste em imaginar nem em projetar um eu. Ela atinge antes essas visões, ela se eleva até esses devires ou poderes.
Não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a psicose não são passagens de vida, mas estados nos quais se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado. A doença não é processo, mas parada do processo, como no "caso Nietzsche". Por isso o escritor como tal não é doente, mas antes médico, médico de si mesmo e do mundo. O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura aparece então como um empreendimento de saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma gande saúde (haveria aqui a mesma ambiguidade que no atletismo), mas ele goza de uma frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis. Do que viu e ouviu, o escritor regressa com os olhos vermelhos, os tímpanos perfurados. Qual saúde bastaria para liberar a vida em toda parte onde ela se encontra aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros e no interior deles? É a frágil saúde de Spinoza, mesmo que se prolongue, testemunhando até o fim de uma nova visão diante da qual ela abre passagem.
A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora inventar um povo. Não se escreve com suas recordaões, a menos que delas se faça a origem oua destinação coletivas de um povo por vir ainda enterrado em suas traições e renegações. A literatura americana tem esse poder excepcional de produzir escritores que podem contar as próprias recordações, mas como as de um povo universal composto pelos emigrados de todos os países. Thomas Wolfe "deita por escrito toda a América, tanto quanto possa encontrar-se na experiência de um único homem". Precisamente, não é um povo chamado a dominar o mundo. É um povo menor, eternamente menor, tomado num devir-revolucionário. Talvez ele não exista senão nos átomos do escritor, povo bastardo, inferior, dominado, sempre em devir, sempre inacabado. Bastardo já não designa um estado de família, porém o processo ou a deriva das raças. Sou um animal, um negro de raça inferior desde tempos imemoriais. É o devir do escritor. Kafka para a Europa central. Melville para a América apresentam a literatura como a enunciação coletiva de um povo menor, ou de todos os povos menores, que não encontram expressão senão no escritor e através dele. Embora ela remeta sempre a agentes singulares, a literatura é agencimento coletivo de enunciação. A literatura é delírio, porém o delírio não trata do pai-mãe: não há delírio que não passe pelos povos, raças e tribos, e que não frequente a história universal. Todo delírio é histórico-mundial, "deslocamento de raças e de continentes". A literatura é delírio, e a esse título seu destino se joga entre dois polos do delírio. O delírio é uma doença, a doença por excelência a cada vez que erige uma raça pretensamente pura e dominante. Mas ele é a medida da saúde quando invoca essa raça bastarda oprimida que não cessa de agitar-se sob as dominações, de resistir a tudo  o que esmaga e aprisiona, e de, como processo, abrir um sulco para si na literatura. Também aí um estado doentio ameaça sempre interromper o processo ou devir; e se reencontra a mesma ambiguidade que para a saúde e o atletismo, o risco constante de que um delírio de dominação se misture ao delírio bastardo, e arraste a literatura em direção a um fascismo larvado, a doença contra a qual ela luta, sob pena de diagnosticá-la em si mesma e de lutar contra si mesma. Fim último da literatura, pôr em evidência no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida. Escrever para esse povo que falta... ("para" esse povo e não "em nome" dele).
O que a literatura produz na língua já aparece melhor: como diz Proust, ela traça aí precisamente uma espécie de língua estrangeira, que não é uma outra língua, nem um dialeto regional redescoberto, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio que a arrasta, uma linha de feitiçaria que foge ao sistema dominante. Kafka faz dizer ao campeão de natação: eu falo a mesma língua que você, e no entanto eu não compreendo sequer uma palavra do que você diz. Criação sintática, estilo, tal é o devir da língua: não há criação de palavras, não há neologismos que valham fora dos efeitos de sintaxe nos quais se desenvolvem.  
Fontes:
Jornal do Brasil
DELEUZE, Gilles. La litérature et la vie, Critique et Clinique, Minuit, Paris, 1993, pp. 11-17.