quarta-feira, 14 de setembro de 2011

LEITURA, LITERATURA, LIVROS, CIDADANIA



CIDADANIA E LEITURA
Leandro Konder

            Inicialmente, a cidade foi fortaleza, lugar que proporcionava alguma segurança. Depois, foi entreposto, mercado, lugar privilegiado para a troca de mercadorias e de ideias.
            O homem da cidade viveu, historicamente, experiências que o homem do campo não conhecia. Na Grécia clássica, com a pólis, cirou-se um modelo especial, diferente, de cidade: uma cidade na qual os homens livres na cidade discutiam em assembleia e podiam intervir no destino da comunidade. Viraram cidadãos. E faziam política (termo que vem de pólis).
            Desde o começo, a organização da cidade impunha leis e exigia que as leis ficassem registradas por escrito. Veja-se, por exemplo, o Código de Hammurabi, na Babilônia, datado de cerca de 1750 a.C.
            As condições em que se fazia o registro escrito eram difíceis e dependiam do poder do Estado: inscrições na pedra, em pergaminho, mais tarde em papiro. Os livros eram rolos e só podiam ser copiados manualmente.
            Durante séculos, a Ilíada, a Odisséia, o Mahabarata, o Ramayana, os Vedas eram ouvidos e não lidos, porque não haviam sido registrados por escrito. As leis humanas ou divinas, porém, tinham de ser escritas.
            O poder de ler e escrever envolvia a segurança do governo da cidade. A leitura ficava submetida a um rigoroso controle político. As condições em que se vivia na cidade facilitavam a circulação de textos, a multiplicação das leituras.
            Na Idade Média, a Igreja se tornou na Europa uma instituição poderosíssima, que precisava formar seus funcionários qualificados, capazes de ler. No Renascimento, esses funcionários começaram a se tornar mais inquietos e queriam ter acesso a leituras mais diversificadas. Eram os “humanistas”.
            Os “humanistas” incomodavam os censores. O atendimento à reivindicação dos que desejavam leituras mais livres e diversificadas acabou sendo possibilitado pela invenção, por Guttenberg, da máquina impressora.
            Com a multiplicação dos livros (em novo formato) aumentou o círculo de leitores. Mas, mesmo sendo muitos, ainda eram pouquíssimos, constituíam uma elite. O povo não lia. E os historiadores se perguntam como foi que populares como o moleiro Mennochio (resgatado por Carlo Ginzburg em O queijo e os vermes) e o sapateiro Jacob Boehme aprenderam a ler e a escrever.
            No século 18 – o “Século das Luzes” – cresce entre os intelectuais a reivindicação de maior difusão dos textos escritos. A convicção deles era a de que o Mal resultava sobretudo da ignorância. O conhecimento e a razão tinham um efeito libertador mais ou menos garantido.
            Diderot, coerente com essa convicção, dedicou mais de vinte anos de trabalho à edição da Enciclopédia (palavra que vem do grego e significa a difusão “em círculo”, quer dizer, para todos, de conhecimentos capazes de forjar a alma: en kyklos paidéia). Na época, na França, havia 2% de alfabetizados e 98% de analfabetos; 150 anos depois, havia 98% de alfabetizados e 2% de analfabetos.
            Foi no século 19 que começou a sucessão de grandes mudanças desencadeadas a partir da Revolução Industrial. As sociedades passaram a girar cada vez mais em torno do mercado. As cidades cresceram em ritmo vertiginoso.
            Na vida cultural, longe dos tempos em que o poder de ler e escrever era controlado pelo Estado, que se ocupava de registrar o que convinha à ordem constituída, ficaram liberadas as narrativas não edificantes.
            A ficção conquistava o direito de explorar seus próprios, múltiplos caminhos. Chegou-se a uma situação na qual a escrita se tornou mais livre, mas a leitura não trazia mais com ela problemas que, do ponto de vista das classes dominantes, exigiriam a constante intervenção controladora do Estado, porque o mercado, com sua própria dinâmica, transforma tudo em mercadoria. E transforma em mercadorias até os textos mais “subversivos”.
            Nossas cidades, com suas desigualdades sociais monstruosas, se transformaram em caldeirões que parecem prestes a explodir. No entanto, as denúncias escritas dessa situação parecem inócuas.
            Por um lado, a literatura tem poder de nos proporcionar uma maior compreensão da nossa condição de pessoas um tanto bizarras e confusas. Então, ela pode nos incitar a tomarmos atitudes de protesto contra a inumanidade e a mentira, de revolta contra a injustiça e a opressão.
            Por outro lado, porém, apesar do fascínio que a leitura dos textos inquietos exerce sobre os leitores, contribuindo decisivamente para a formação de consciências críticas e de um legítimo espírito de cidadania, a cidade - tal como está organizada - nos coloca na posição melancólica de observadores quase impotentes da dinâmica rudemente pragmática do mercado. 
            Com a generalização da produção de mercadorias, o rosto expressivo do revolucionário serve de ilustração na T-shirt, os versos do poeta "engajado" são aproveitados em jingles publicitários, as fortes imagens eróticas do pintor combativo são adaptadas à linguagem da pornografia mercantilizada.
              Como lidar com esse quadro?
              Uma coisa é certa: não podemos deixar que um cetiismo exagerado nos desmobilize. Contra o desânimo, precisamos insistir na reanimação do espírito inconformista. Como diz o psicanlista Joel Birman, devemos assumir nosso desamparo (desistir de buscar a proteção de um superpai), mas devemos, igualmente, evitar que o desamparo se transforme em desalento.
              Naquilo que escrevemos, naquilo que oferecemos à cidade para que ela leia, é preciso que persista, no mínimo, certa incitação à rebeldia. Certo esforço no sentido de estimularmos nos cidadãos a inquietação que renasce e impede que eles se reduzam a meros consumidores.
               Afinal, consumir é parte do viver. Mas - ao contrário do que surgere o consumismo - a vida não se resume ao consumo.

Jornal do Brasil, 17 de agosto de 2002

Pausa: "A sociedade de consumo está convidando as pessoas ao crime, emitindo suas mensagens publicitárias em direção a uma massa imensa de jovens sem nenhuma possibilidade de consumir aquilo que lhes é oferecido. Diz: 'Se você não tem, você não é'. Quem não tem sapatos de marcas não é ninguém. Para ter isso precisam roubar, matar, estuprar, seja o que for. Quem não consome não tem direito de existir. A sociedade de consumo estimula a delinquência tanto quanto as estruturas sociais injustas."

Eduardo Galeano (entrevista concedida ao Jornal do Brasil de 04 de dezembro de 2005 - Caderno B)
               
A LITERATURA E A VIDA
Gilles Deleuze

Escrever certamente não é impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento, como Gombrowicz o disse e fez. Escrever é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre em vias de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir: ao escrever, nos tornamos-mulher, nos tornamos-animal ou vegetal, nos tornamos-molécula, até um devir-imperceptível. Esses devires encadeiam-se uns aos outros segundo uma linhagem particular, como num romance de Le Clézio, ou então coexistem em todos os níveis, segundo portas, limiares e zonas que compõem o universo inteiro, como na obra poderosa de Lovecraft. O devir não vai na direção oposta, e não nos tornamos Homem, apesar de o homem apresentar-se como uma forma de expressão dominante, que pretende impor-se a toda matéria, ao passo que a mulher, animal ou molécula têm sempre um componente de fuga que se furta à sua própria formallização. A vergonha de ser um homem, haverá razão melhor para escrever? Mesmo quando é uma mulher que devém, cabe a ela devir-mulher, e esse devir nada tem a ver com um estado que ela poderá reivindicar. Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mímesis), mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que já não seja possível distinguir-se de uma mulher, de um animal ou de uma molécula: não imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto se singularizam numa população. Pode-se instaurar uma zona de vizinhança com qualquer coisa, sob condição de criar para tanto os meios literários, tal como Dhôtel com o áster. Algo passa entre os sexos, os gêneros ou os reinos. O devir sempre está "entre" ou "no meio": mulher entre as mulheres, ou animal no meio dos outros. Mas o artigo indefinido só efetua sua potência se o termo que ele faz devir é por seu turno despojado dos caracteres formais que fazem dizer o, a ("o animal que aqui está"...). Quando Le Clézio se torna-índio, é um índio sempre inacabado, que não sabe "cultivar o milho nem talhar uma piroga": ele entra numa zona de vizinhança, ao invés de adquirir caracteres formais. O mesmo ocorre, segundo Kafka, com o campeão de natação que não sabia nadar. Toda escrita comporta um atletismo, porém longe de reconciliar a literatura com os espotes, ou de fazer da escrita um jogo olímpico, esse atletismo se exerce na fuga e na defecção orgânicas: um esportista na cama, dizia Michaux. Tornamo-nos tanto mais animal quanto o próprio animal morre; e, contraiamente a um preconceito espiritualista, é o animal que sabe morrer e tem disso o senso e o pressentimento. A literatura começa com a morte do porco-espinho, segundo Lawrence, ou a morte da toupeira, segundo Kafka: "Nossas pobres patinhas vermelhas estendidas num gesto de terna piedade". Escreve-se para os bezerros que morrem, dizia Moritz. A língua tem o dever de alcançar desvios femininos, animais, moleculares, e todo desvio é um devir mortal. Não há linha reta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto de desvios necessários cada vez criados para revelar a vida nas coisas.
Escrever não é contar as próprias recordações, viagens, amores e lutos, sonhos e fantasmas. Pecar por excesso de realidade ou de imaginação é a mesma coisa: em ambos os casos é o eterno papai-mamãe, estrutura edipiana que se projeta sobre o real ou que se introjeta no imaginário. É um pai que se vai buscar no final da viagem, como no seio do sonho, numa concepção infantil da literatura. Escreve-se para o próprio pai-mãe. Marthe Robert levou ao extremo essa infantilização, essa psicanalização da literatura, não deixando outra escolha ao romancista senão Bastardo ou Criança reencontrada. Mesmo o devir-animal não está a salvo de uma redução edipiana, do gênero "meu gato, meu cão". Como diz Lawrence, "se eu sou uma girafa, e os ingleses ordinários que escrevem sobre mim simpáticos cães bem-educados, tudo está dito, os animais são diferentes... vocês detestam instintivamente o animal que eu sou". Regra geral, os fantasmas só  tratam o indefinido como as máscaras de um pronome pessoal ou de um possessivo: "bate-se numa criança" se trasnforma rapidamente em "meu pai me bateu". Mas a literatura segue a vida inversa, e só se instala desco- brindo sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que não é de modo algum uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau: um homem, uma mulher, um animal, um ventre, uma criança... Não são as duas primeiras pessoas do singular que servem de condição à enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu (o "neutro" de Blanchot). Por certo os personagens literários são perfeitamente individuados, e não vagos nem gerais; mas todos seus traços individuais os elevam a uma visão que os arrasta num indefinido como um devir poderoso demais para eles: Ahab e a visão de Moby Dick. O Avarento não é de modo algum um tipo, porém ao contrário, seus traços individuais (amar uma rapariga etc.) o fazem aceder a uma visão, ele vê o outro, de tal maneira que põe-se a fugir sobre uma linha de feitiçaria na qual ganha a potência do indefinido - um avarento..., um tanto de ouro, mais ouro... Não há literatura sem fabulação, mas como Bergson soube vê-lo, a fabulação, a função fabuladora não consiste em imaginar nem em projetar um eu. Ela atinge antes essas visões, ela se eleva até esses devires ou poderes.
Não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a psicose não são passagens de vida, mas estados nos quais se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado. A doença não é processo, mas parada do processo, como no "caso Nietzsche". Por isso o escritor como tal não é doente, mas antes médico, médico de si mesmo e do mundo. O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura aparece então como um empreendimento de saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma gande saúde (haveria aqui a mesma ambiguidade que no atletismo), mas ele goza de uma frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis. Do que viu e ouviu, o escritor regressa com os olhos vermelhos, os tímpanos perfurados. Qual saúde bastaria para liberar a vida em toda parte onde ela se encontra aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros e no interior deles? É a frágil saúde de Spinoza, mesmo que se prolongue, testemunhando até o fim de uma nova visão diante da qual ela abre passagem.
A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora inventar um povo. Não se escreve com suas recordaões, a menos que delas se faça a origem oua destinação coletivas de um povo por vir ainda enterrado em suas traições e renegações. A literatura americana tem esse poder excepcional de produzir escritores que podem contar as próprias recordações, mas como as de um povo universal composto pelos emigrados de todos os países. Thomas Wolfe "deita por escrito toda a América, tanto quanto possa encontrar-se na experiência de um único homem". Precisamente, não é um povo chamado a dominar o mundo. É um povo menor, eternamente menor, tomado num devir-revolucionário. Talvez ele não exista senão nos átomos do escritor, povo bastardo, inferior, dominado, sempre em devir, sempre inacabado. Bastardo já não designa um estado de família, porém o processo ou a deriva das raças. Sou um animal, um negro de raça inferior desde tempos imemoriais. É o devir do escritor. Kafka para a Europa central. Melville para a América apresentam a literatura como a enunciação coletiva de um povo menor, ou de todos os povos menores, que não encontram expressão senão no escritor e através dele. Embora ela remeta sempre a agentes singulares, a literatura é agencimento coletivo de enunciação. A literatura é delírio, porém o delírio não trata do pai-mãe: não há delírio que não passe pelos povos, raças e tribos, e que não frequente a história universal. Todo delírio é histórico-mundial, "deslocamento de raças e de continentes". A literatura é delírio, e a esse título seu destino se joga entre dois polos do delírio. O delírio é uma doença, a doença por excelência a cada vez que erige uma raça pretensamente pura e dominante. Mas ele é a medida da saúde quando invoca essa raça bastarda oprimida que não cessa de agitar-se sob as dominações, de resistir a tudo  o que esmaga e aprisiona, e de, como processo, abrir um sulco para si na literatura. Também aí um estado doentio ameaça sempre interromper o processo ou devir; e se reencontra a mesma ambiguidade que para a saúde e o atletismo, o risco constante de que um delírio de dominação se misture ao delírio bastardo, e arraste a literatura em direção a um fascismo larvado, a doença contra a qual ela luta, sob pena de diagnosticá-la em si mesma e de lutar contra si mesma. Fim último da literatura, pôr em evidência no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida. Escrever para esse povo que falta... ("para" esse povo e não "em nome" dele).
O que a literatura produz na língua já aparece melhor: como diz Proust, ela traça aí precisamente uma espécie de língua estrangeira, que não é uma outra língua, nem um dialeto regional redescoberto, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio que a arrasta, uma linha de feitiçaria que foge ao sistema dominante. Kafka faz dizer ao campeão de natação: eu falo a mesma língua que você, e no entanto eu não compreendo sequer uma palavra do que você diz. Criação sintática, estilo, tal é o devir da língua: não há criação de palavras, não há neologismos que valham fora dos efeitos de sintaxe nos quais se desenvolvem.  
Fontes:
Jornal do Brasil
DELEUZE, Gilles. La litérature et la vie, Critique et Clinique, Minuit, Paris, 1993, pp. 11-17.

4 comentários:

  1. Ufa!

    Literatura e seu poder de devir os melhores de nós. Muita coisa poderia dizer. Mas, já disseram muito. -rs

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    1. Literatura salva, não é, Rodrigo? Sabemos disso, meu amigo. Obrigado.

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  2. Respostas
    1. Fernando, que pergunta cruel, meu querido. O Brasil é um país de cantoras maravilhosas. Apontar apenas três? Como?! São muitas que admiro: Ademilde, Alaíde, Alcione, Ângela's', Beth, Bethânia, Cida, Célia, Cássia, Clara, Cláudia, Dalva, Dircinha, Eliana, Elis, Elizeth,Elza, Fernanda's',Gal, Ithamara, Jussara, Leila, Leny, Linda, Maria's', Marina, Marisa's', Ná, Nana, Nora,Paula's', Rita's', Rosa,Selma, Simone's', Teresa, Tetê, Virgínia's', Vânia, Verônica, Zezé, Zélia, Zizi...

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