quinta-feira, 5 de maio de 2011

CORAÇÃO NA GARGANTA



Eis um monumento à transgressão: Elza Soares. A voz torta (entendeu o “torta”?) dessa diva é simplesmente única. Ela foi eleita pela BBC de Londres a “Cantora do Milênio”. Tortas também eram as pernas de Garrincha, seu grande amor, por quem Elza – brava Elza! - enfrentou grande parte da opinião pública, que, quando quer, mostra toda a tirania de que é capaz. E por falar no craque Garrincha, em 1985, Elza gravou Alegria do povo (Paulo Debétio / Paulinho Rezende / Alex): “Alegria do povo entrou / No gramado do meu coração / Enfeitou os meus olhos com gols / E partiu com os meus sonhos na mão [...] No olhar cristalino / O brilho de uma lua acesa (...)”. Assim que Elza começa a cantar essa canção, já começo a chorar. A voz emocionada de nossa diva torna ainda mais bonita a homenagem ao eterno Garrincha. Nossa “sofisticada dama” vem com tudo. Como em todas as canções que gravou, Elza põe a alma para fora. “Coração na garganta” é pouco. Arraso total! Ainda em 1985, ela gravou Milagres (Cazuza / Denise Barroso / Frejat), do terceiro disco do Barão Vermelho: “Nossas armas estão na rua / É um milagre / Elas não matam ninguém [...] Que tempo mais vagabundo / Esse agora / Que escolheram pra gente viver (...)”. Extraordinária a gravação de uma das mais belas letras de Cazuza. Versatilidade é pouco! Ela diz ter uma “corda vocal” a mais. Daí aqueles sons totalmente diferentes, aquele timbre “crestado”. Ela brinca com a voz, é ousada ao extremo e não desafina nunca. Há décadas, tem o mesmo registro vocal. É um fenômeno. Já causou sensação logo no início, com a “samjazzística” gravação de Se acaso você chegasse, de Lupicínio Rodrigues. Não conheço ninguém que tenha ido tantas vezes ao fundo do poço e voltado à tona com força redobrada. Ela é Dura na queda mesmo, como mostra a linda letra de Chico Buarque. Nos últimos anos, seu grande momento de glória foi, certamente, o lançamento de Do cóccix até o pescoço. O que é aquilo, meu Deus?! Foi o disco do ano em 2002. Todas as canções estão impecáveis. Já o ouvi inúmeras vezes. E ele me parece sempre novo. Não me canso de descobrir belezas nesse disco e na voz de Elza. Ouço Fadas, por exemplo, de Luiz Melodia, bem alto. Sabe por quê? Porque quando ela canta “me leva em qualquer direção”, o “leva” não é simplesmente “leva”. É “leeeeeeva”. Há uma emoção a mais nessa palavra. Há um “trêmulo” especialíssimo na voz.  Há um choro ali. Não dá para explicar. Só ouvindo.  Do mesmo disco, A carne, de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Wilson Cappellette, também não pode passar sem ser ouvida inúmeras vezes. Elza parecer gritar em um ‘mercado’ para que o mundo todo ouça: “A carne mais barata do mercado é a carne negra / que vai de graça pro presídio e para debaixo do plástico / e vai de graça pro subemprego e pros hospitais psiquiátricos (...)”. Há outra gravação da Elza que não pode jamais ser esquecida: O Meu guri, de Buarque. Se alguém quiser conhecer a “mãe” do guri, aquela que o “pariu”, é só ouvir Elza. Que interpretação! De todas as gravações dessa canção, a da Elza é a mais forte. Há inúmeras gravações memoráveis de Elza, como a última faixa de Carioca da gema (disco gravado ao vivo), em que ela “improvisa” sobre o Hino Nacional Brasileiro. Com “efeitos de voz”, a diva simplesmente arrebenta. Impossível descrever. Só conferindo. Elza é “a unha rasgando a garganta”, como nos versos de Raça (Milton / Brant). Elza é a própria transgressão. Em entrevista à revista BRAVO!, ela não deixou barato: “(...) Eu não gosto de nada certinho. Eu gosto daquele que briga, que fala. (...) Só os loucos são perfeitos”. Disse tudo. Salve, salve!


3 comentários:

  1. Elza é “a unha rasgando a garganta”.
    Elza é o prazer de cantar, no mundo dos "arrotos".

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    1. Rodrigo, hoje, ouvi Elza novamente. Que prazer, meu amigo! Que voz! Abração.

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  2. É isso aí, Rodrigo. Não é muita gente que pode "bater no peito" e dizer: "Sou intérprete". Elza pode. Abração, amigo, e obrigado pela visita.

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